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1 DECISÕES PÚBLICAS NO BRASIL: PATRIMONIALISMO E CLIENTELISMO

1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O Estado brasileiro, forjado a partir de uma colonização em bases eminentemente patrimoniais, foi sempre marcado por práticas clientelistas. Não se pretende, neste trabalho, enveredar pelo campo dos fenômenos sociais e políticos que dizem respeito à formação do Estado. Porém, consagradas teses e discussões sobre o tema, encontradas em autores como Caio Prado Júnior, Raymundo Faoro e Vitor Nunes Leal, entre outros, devem ser lembradas, pelas relevantes contribuições que oferecem para o entendimento de aspectos comuns aos processos decisórios referentes à coisa pública no Brasil — aí compreendidos, logicamente, os investimentos em grandes obras de infra-estrutura, com todo o rol de benefícios sociais, vantagens pessoais e disputas políticas que envolvem.

Se a manipulação dos gastos públicos tem constituído, ao longo de toda nossa história, poderoso instrumento de criação e manutenção de clientes políticos (BURSZTYN, 1985), pode-se destacar, nesse cenário, os investimentos em infra-estrutura. As grandes obras, além de movimentarem vultosos recursos, possuem cronogramas dilatados, compreendendo sucessivas etapas, gerando empregos diretos e indiretos e dinamizando as economias de

pequenas localidades durante a fase de implantação, que se estende por alguns anos. Visam a atividades econômicas como a geração de energia elétrica, a agricultura irrigada ou o escoamento de produtos, entre outras, que asseguram o retorno dos investimentos, inclusive pelo aumento na arrecadação de impostos. No caso de empreendimentos que envolvam, por exemplo, a implantação de reservatórios ou a formação de perímetros irrigados, requer-se a desapropriação de extensas áreas, cujas indenizações despertam grandes interesses; valorizam as terras — sendo raros os casos em que se cobram contribuições de melhoria. Asseguram também as grandes encomendas, que fazem o negócio de fornecedores de materiais e equipamentos e a carteira de obras do restrito grupo de grandes empreiteiras, que detêm a tecnologia e a capacidade instalada para sua execução.

Isso posto, cumpre destacar o que afirma FAORO (1979) — os negócios públicos no Brasil são, originariamente, conduzidos e supervisionados pela comunidade política como negócios privados seus. A sociedade, em nossa tradição política, é compreendida no âmbito de um aparelhamento para a exploração e a manipulação. Tanto mais quando predominam interesses eleitorais. No dizer de LEAL (1978, p. 240), “A corrupção eleitoral tem sido um dos mais notórios e enraizados flagelos do regime representativo no Brasil”. A partir dessa realidade é que se projeta, como forma de poder institucionalizada, o patrimonialismo.

Encontramos também em LEAL (1978) estas observações de WILLENS8:

No Brasil, o patrimonialismo lançou raízes nas estruturas políticas locais dominadas por latifundiários. A velha e bem conhecida competição entre poder estatal e poder “privado” geralmente é favorável a este. O governo da metrópole e, mais tarde, o governo imperial e republicano são obrigados a transigir com o chamado poder privado (WILLENS, apud LEAL, 1978, p. 43).

Citando Max Weber, MARTINS (1999) argumenta que o poder patrimonialista possui uma dimensão arbitrária e imprevisível, à qual se adaptavam satisfatoriamente os modos capitalistas colonial e mercantil, de plantation, que imperou até o século XIX. Por outro lado, esse modo de poder não se coaduna com o capitalismo moderno, industrial, apoiado na racionalidade de certas convenções, com força de lei. Existe, portanto, uma aparente contradição no processo de modernização da sociedade brasileira.

O processo de modernização de algumas sociedades, sem abrir mão do conservadorismo que as caracterizam, como no caso brasileiro, dificulta seu enquadramento nas tipologias bem estabelecidas, tanto das sociedades mercantis pré-modernas, como das

8 WILLENS, Emilio. Burocracia e Patrimonialismo. Separata de Administração Pública, São Paulo, ano 3, n.º 3, set. 1945.

sociedades ocidentais modernas. Justifica-se, assim, a tese do neo-patrimonialismo, defendida por SCHWARTZMANN9 (apud MARTINS, 1999). Ao invocar essa tese, MARTINS (1999) utiliza a expressão “modernização patrimonial”, reforçando argumentações sobre a atualidade do poder oligárquico na vida brasileira. A modernização da nossa sociedade no período pós- colonial e sua organização institucional teriam sido, na opinião desse autor, fruto da iniciativa de uma burocracia autoritária, simultaneamente apoiada por forças oligárquicas e industrialistas.

Tratando do tema, FAORO (1979, p. 738) afirma ainda que “Não impera a burocracia, a camada profissional que assegura o funcionamento do governo e da administração, mas o estamento político”. O sistema burocrático deve ser entendido como um mero aparelhamento do Estado, qualquer que seja a forma de poder estabelecida. Já o estamento seria incompatível com um governo de soberania popular, ajustando-se, no máximo, aos regimes autocráticos com concessões à democracia. Nessa mesma linha, MARTINS (1999) afirma que a experiência democrática contraria, na atualidade, os “príncipes” das sociedades neo- patrimonialistas.

Quaisquer que sejam os rótulos — patrimonialismo ou neo-patrimonialismo, burocracia autoritária ou estamento burocrático, etc. —, a modernização conservadora da sociedade brasileira apóia-se em um sistema presente em todas as esferas da administração pública. No campo econômico, esse sistema vai além da regulamentação formal da ideologia liberal, alcançando as concessões estatais e a gestão direta de empresas e empreendimentos — como os que dizem respeito às grandes obras de infra-estrutura.

Ao analisarmos o modo como a Administração Pública brasileira transaciona, desde suas origens, com os interesses privados, visando ao lucro rápido e fácil de uma elite política e econômica do País, percebemos com clareza o significado dessas observações de LEAL (1978), FAORO (1979), BURSZTYN (1985) e MARTINS (1999). Apresenta-se, portanto, a seguir, uma abordagem desses fenômenos, seguindo o fio condutor dos principais períodos de nossa História — da colonização, aos dias atuais.

1.2 O CARÁTER PATRIMONIAL DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA E A