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1 DECISÕES PÚBLICAS NO BRASIL: PATRIMONIALISMO E CLIENTELISMO

1.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cabe aqui reproduzir esta passagem, encontrada em HOLANDA (1982, p. 106), discorrendo sobre as características do Estado brasileiro:

falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida do Estado burocrático (...) No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal.

Embora o texto original de Sérgio Buarque de Holanda tenha sido escrito na década de 1930, é notável sua atualidade, face às discussões e colocações acima. Não é por acaso que a impessoalidade, que tanta falta faz ao estado democrático, inclui-se no texto constitucional de 1988 como um dos princípios da Administração Pública: a norma sinaliza aquilo que se deseja e se pretende, mas que confronta com a realidade.

É que os acontecimentos não se compassam segundo a norma constitucional, as leis ou demais regulamentos, por mais virtudes que apresente o arcabouço legal. A letra morta da lei, por si só, não é capaz de influir de modo decisivo sobre os rumos da sociedade. Ainda segundo aquele autor,

As Constituições feitas para não serem cumpridas, as leis existentes para serem violadas, tudo em proveito de indivíduos e oligarquias são fenômeno corrente em toda a história da América do Sul (HOLANDA, 1982, p.136/137).

FAORO (1979, p. 741), discorrendo sobre a tese do governo estamental burocrático (que caracterizaria o Estado brasileiro), argumenta que nele prevalece, como sistema político, a autocracia de caráter autoritário, “sem que seja possível aos seus destinatários a participação real na formação da vontade estatal”. O regime autoritário, porém, “convive com a vestimenta constitucional, sem que a lei maior tenha capacidade normativa”.

Todavia, o caráter patrimonialista da modernidade brasileira tem seu preço. Segundo MARTINS (1999) o fenômeno da modernização conservadora representa uma tentativa de conciliar e reproduzir, historicamente, dois imaginários essencialmente antinômicos: o da lógica oligárquica, do personalismo presente na condução dos negócios do Estado como se

privados fossem, e o de um país capitalista moderno, competitivo, liberal, em um mundo globalizado. Advém daí, na opinião desse autor, que compartilhamos, o fracasso das políticas de modernização do Brasil — particularmente da grande estratégia desenvolvimentista dos últimos quarenta anos. Fracasso que compromete, destarte, as principais conquistas dos grandes períodos de desenvolvimentismo nacional que o País conheceu.

Não se poderia concluir essas colocações sobre o patrimonialismo e o clientelismo político do Estado brasileiro e o modo como essas enraizadas características afetam o universo das decisões públicas — inclusive e principalmente aquelas que dizem respeito aos grandes empreendimentos de infra-estrutura — sem fazer referência ao momento político atual e às perspectivas que se abrem com relação ao tema. Trata-se de um momento ímpar na história do Brasil, que autores como Sérgio Buarque de Holanda, no século XX, ao analisarem a formação e evolução do Estado brasileiro, não ousariam antever24. A ascensão ao poder de um partido de inspiração popular e ideologia de bases autenticamente sociais, trouxe uma expectativa muito grande de que se pudessem criar condições, de fato e de direito, para uma retomada do crescimento econômico com justiça social e preservação do Meio Ambiente — referido como Desenvolvimento Sustentável ou, simplesmente, Desenvolvimento.

No entanto, se não houver uma efetiva ruptura com práticas políticas anacrônicas, fruto da lógica de conciliação dos dois imaginários antinômicos a que se refere MARTINS (1999), o fracasso persistirá. O envolvimento do PT em escândalos como o do “valérioduto”, acima referido, coloca em xeque o discurso em defesa da ética na Política, que caracterizou a atuação do partido, em seus 20 anos de existência. Em seu primeiro mandato, que se encerra este ano, o governo dito dos trabalhadores fracassou, ou sequer tentou, levar a cabo essa necessária ruptura. Posto que bem cotado, nas pesquisas eleitorais, para um segundo mandato, já não se apresenta, atualmente, como depositário dessa esperança — ao menos, não com o mesmo suporte com que contava em 2002.

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24 “Na tão malsinada primazia das conveniências particulares sobre os interesses de ordem coletiva revela-se nitidamente o predomino do elemento emotivo sobre o racional. Por mais que se julgue achar o contrário, a verdadeira solidariedade só se pode sustentar realmente nos círculos restritos e a nossa predileção, confessada ou não, pelas pessoas e interesses concretos não encontra alimento muito substancial nos ideais teóricos ou mesmo nos interesses econômicos em que se há de apoiar um grande partido. (...) Isso explica como, entre nós e, em geral, nos países latino-americanos, onde quer que o personalismo — ou a oligarquia, que é o prolongamento do personalismo no espaço e no tempo — conseguiu abolir as resistências liberais, assegurou-se, por essa forma, uma estabilidade política aparente, mas que de outro modo não seria possível. (...) A grande tradição brasileira (...) nunca deixou funcionar os verdadeiros partidos de oposição, representativos de interesses ou de ideologias.” (HOLANDA, 1982, p. 137/138 e 142).

Neste capítulo, vimos como o Estado brasileiro transaciona com o interesse privado, em bases eminentementes patrimonialistas e clientelistas, desde os tempos da colonização portuguesa, até os dias atuais. Na seqüência, abordamos as principais características dos grandes períodos de desenvolvimentismo que o País conheceu: com o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek (1956 — 1961) e, posteriormente, com o chamado milagre econômico brasileiro, dos anos 1970, durante o regime militar. Períodos que se contrapõem ao momento atual, em que o discurso dominante é o de que desenvolvimentismo e ambientalismo não se coadunam.