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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE CASOS

93 CORUMBÁ CONCESSÕES (2006)

5.5 UM PROCESSO DE AIA POUCO EFICAZ

Destacam-se a seguir aspectos positivos e negativos do processo de Avaliação de Impactos Ambientais do Projeto, do modo como conduzido. Esta análise não tem a pretensão de ser exaustiva, em qualquer dos dois sentidos. Mas sim de apresentar aquilo que deve ser ressaltado, à luz das hipóteses e questões orientadoras do presente trabalho de tese.

Aspectos positivos da AIA

• Reação dos profissionais do setor de Saneamento do Distrito Federal com relação ao discurso do GDF em favor de Corumbá IV (1999/2000), anunciado como a solução definitiva para os problemas futuros de abastecimento de água de Brasília. Essa reação contribuiu para tornar evidente a falta de estudos técnicos a respeito (conforme discutido

em 5.2.1) e a natureza eminentemente política da defesa do empreendimento pelos mandatários do Distrito Federal;

• Intervenção do Ministério Público, no sentido de sanar, ainda que tardiamente, o “equívoco” do licenciamento junto ao órgão estadual de meio ambiente de Goiás de um projeto com benefícios e impactos em Goiás e no Distrito Federal (caráter regional do empreendimento);

• Celebração do Termo de Ajustamento de Conduta, com compromissos que buscaram resgatar exigências que deixaram de ser formuladas na fase de licenciamento prévio, face a aspectos que faltavam ou que haviam sido tratados de modo superficial e/ou inadequado no EIA/RIMA;

• Negativa do IBAMA, no segundo semestre de 2004, de conceder a LO para o empreendimento, por conta do não cumprimento de condicionantes da LI;

• Pronta revisão da LI pelo IBAMA, a partir da autorização para enchimento do reservatório, conferida pela Justiça, acarretando mudanças significativas no cenário do empreendimento — emissão da RLI;

• Postura assumida pelos técnicos do IBAMA face ao não cumprimento dos condicionantes da RLI e à falta de respostas adequadas pelo empreendedor, remetendo aos gestores do IBAMA a decisão quanto à concessão da LO;

• Intervenção do Ministério Público, requerendo e obtendo na Justiça (em primeira instância), liminar que suspendia a eficácia da LO, concedida em desacordo com a legislação ambiental vigente (sem o cumprimento de importantes condicionantes das fases de planejamento, projeto e implantação do empreendimento); e

• Uma atitude do empreendedor aparentemente mais compromissada com os aspectos socioambientais, a partir das autuações efetuadas pelo IBAMA, por descumprimento de condicionantes das licenças exaradas.

Aspectos negativos da AIA

• Falta de mecanismos para fazer da Avaliação de Impactos Ambientais referente ao empreendimento um instrumento auxiliar do processo decisório, especialmente no tocante à decisão de empreender — GDF, Governo de Goiás, ANEEL (1999/2000);

• Definição da Área de Influência do empreendimento, no EIA/RIMA, respaldada em uma argumentação frágil e tecnicamente insustentável, evidenciando assim conivência da contratada com objetivos conflitantes com aqueles da AIA, em relação aos empreendimentos de infra-estrutura de um modo geral;

• Omissão, no texto do EIA, de referências à intenção de se utilizar Corumbá IV como manancial para o abastecimento futuro de água do Distrito Federal (fato amplamente divulgado pelo GDF na mídia de Brasília, desde 1999, quando se elaborava o EIA/RIMA); conflito desse texto com o do RIMA, que admite o uso da água para o abastecimento do Distrito Federal, fazendo inclusive referência à vazão necessária nessa “hipótese” (que não constava do EIA);

• Decisão “equivocada” de solicitar licença ambiental prévia à FEMAGO, formalmente atribuída à equipe técnica responsável pelo EIA/RIMA e ao empreendedor inicialmente interessado na construção de Corumbá IV, o consórcio Via — RCV; mas muito provavelmente tomada por outros atores, uma vez que o caráter regional do empreendimento mostrar-se-ia incontestável, o que não poderia ter passado desapercebido aos técnicos com experiência em estudos ambientais dessa natureza, contratados por aquele consórcio;

• Licenciamento prévio e de instalação pela AGMA (sucessora da FEMAGO), baseado exclusivamente no EIA/RIMA, apesar do tratamento superficial e/ou inadequado dado a questões socioambientais relevantes, em se tratando da construção de grandes barragens (como a falta de um levantamento detalhado das famílias atingidas, inclusive a jusante do barramento, e a falta de previsão de um programa de reassentamento);

• Processo de consulta pública sobre o empreendimento pela FEMAGO/AGMA, cuja fragilidade é evidenciada pela falta de contribuições ou questionamentos para o licenciamento (por exemplo, com relação à relocação de estradas, comprometendo diretamente as atividades econômicas das comunidades locais);

• Demora do Ministério Público, a partir da abertura de inquérito civil púbico (março de 2002), em decidir pelo ajuizamento de Ação Civil Pública, o que só ocorreu em dezembro de 2002, quando o rio Corumbá já havia sido desviado (desde setembro de 2002, contrariando deliberadamente orientação expressa dos procuradores que conduziam o inquérito);

• Demora da Justiça em decidir, liminarmente, pela paralisação das obras, o que só veio a ocorrer em outubro de 2003, dez meses depois de ajuizada a ACP, quando o avanço físico acumulado das obras já alcançava cerca de 80%;

• Demora na negociação do Termo de Ajustamento de Conduta, celebrado somente em abril de 2004, com o tempo correndo a favor do empreendedor, uma vez que a Engenharia do projeto exigia, para a segurança das obras, o cumprimento do cronograma, face à condição do rio Corumbá, desviado de sua calha natural através de estruturas provisórias;

• Concessão da LI, em outubro de 2004, teoricamente condicionada pelo cumprimento dos compromissos estabelecidos no TAC; mas exarada sem que a maioria deles houvesse sido cumprida;

• Decisão judicial autorizando o enchimento do reservatório, em janeiro de 2005, sem no entanto impor condições ou penalidades, face ao não cumprimento de condicionantes da LI;

• Decisão da Coordenação Geral de Licenciamento do IBAMA, ouvido, informalmente, apenas o Diretor de Licenciamento (que se encontrava de férias), de conceder a LO, apesar dos termos do Parecer Técnico n.º 151/2005 – COLIC CGLIC/DILIQ/IBAMA; não conclusivo, como alegado no despacho do Coordenador Geral para o Presidente do IBAMA, mas eminentemente contrário à emissão da licença;

• Decisão da Justiça, em segunda instância, suspendendo a decisão que cassara a LO concedida, com base em argumentos técnicos e econômicos pouco consistentes (caráter imprescindível da geração de energia para Brasília e impossibilidade de calcular prejuízos econômicos — não cotejados com os prejuízos socioambientais);

• Falta de transparência no acompanhamento da LO do empreendimento, cuja validade estaria teoricamente condicionada ao cumprimento de uma série de exigências típicas das fases anteriores do projeto, dentro de prazos já vencidos, sem a realização e/ou divulgação tempestiva de vistorias pelo IBAMA, no primeiro semestre de 2006.

Considerações finais

O que o processo de AIA de Corumbá IV mostrou, efetivamente, foi um distanciamento não superado entre os interesses econômicos do empreendedor público — privado (além do interesse político do Governo do Distrito Federal, controlador de sua maior

acionista e compradora exclusiva de energia, a CEB) e o interesse público, na prevenção, mitigação e compensação dos impactos socioambientais dessa grande obra de Engenharia.

O modo como a equipe técnica responsável pela elaboração do EIA/RIMA, da CTE Engenharia Ltda., comprovadamente experiente, defendeu o licenciamento junto ao órgão estadual de meio ambiente de Goiás, limitando de maneira indefensável a área de influência do empreendimento ao âmbito do território goiano e omitindo referências à polêmica em torno do empreendimento, que ganhava espaço na mídia de Brasília em 1999, é sintomático. Fica patente que houve manipulação dos estudos ambientais para direcionar o licenciamento para um fórum possivelmente mais favorável a interesses não declarados. Tanto que, ao assinar o TAC, o empreendedor reconhece expressamente que a competência do licenciamento era do IBAMA (conforme consta dos considerandos do documento). É frágil a argumentação de que o empreendedor que solicitou e obteve as licenças junto ao órgão de meio ambiente de Goiás era outro, uma vez que a formação do consórcio que viria a assumir o empreendimento foi anunciada pelo GDF antes mesmo da conclusão do EIA/RIMA. A Agência Ambiental de Goiás, AGMA, que assumira indevidamente o licenciamento, também aquiesceu com os termos do TAC e encaminhou o processo referente a Corumbá IV para o órgão federal de meio ambiente.

Com efeito, não fica claro quais os atores teriam determinado esse direcionamento, uma vez que o contratante da CTE era um consórcio investidor, que logo se afastaria do processo. Por outro lado, enquanto os Estudos de Viabilidade e o EIA/RIMA de Corumbá IV eram elaborados (a partir do Inventário Hidrelétrico que confirmara Corumbá III e Corumbá IV como eixos para barramento do alto rio Corumbá), o Governo do Distrito Federal e o Governo do Estado de Goiás assinavam um protocolo de intenções para a construção da barragem (março de 1999). E anunciavam na mídia a formação de um consórcio de empresas públicas, das duas unidades da Federação, com empresas privadas, visando a assumir a construção e exploração do aproveitamento hidrelétrico — que só seria leiloado pela ANEEL mais de um ano depois.

Em vista disso, pode-se afirmar que tinham interesse no empreendimento, e tanto ou mais conhecimento do que o consórcio entre a Via Engenharia e a Construtora RCV, ou a CTE, sua contratada para a elaboração do EIA/RIMA, os seguintes atores: os mandatários dos governos do Distrito Federal e do Estado de Goiás, que assinaram o referido protocolo de intenções; a Serveng-Civilsan, construtora de grande porte de Brasília, com um vasto acervo de obras na região, que integraria o anunciado consórcio público — privado; a Companhia

Energética de Brasília, CEB (com 98% de seu capital controlado pelo GDF), que se tornaria a maior acionista da Corumbá Concessões; além da FEMAGO/AGMA, na esfera do Governo de Goiás, e da ANEEL, no âmbito do Governo Federal.

Foi nesse contexto, em 1999/2000, que se firmou a decisão de empreender Corumbá IV; bem como a de licenciar as obras junto ao órgão estadual de meio ambiente de Goiás. Essas decisões, não alcançadas pela AIA, e a postura reativa do IBAMA, para evitar um conflito de competências com o órgão estadual de meio ambiente, que concedeu as licenças ambientais prévia e de instalação para o empreendimento, seriam determinantes de todo o processo. Resta claro que, sem a intervenção do Ministério Público e da Justiça, o empreendimento poderia ter resultado em um grande escândalo, com prejuízos socioambientais ainda maiores do que aqueles que não se puderam evitar.

A falta de transparência da decisão de empreender, o injustificável licenciamento inicial junto ao órgão de meio ambiente de Goiás e os efeitos que isso produziu, resultaram em um empreendimento que conta, hoje, com uma LO atípica, condicionada à apresentação de levantamentos e avaliações que, pela legislação ambiental brasileira, são requisitos da fase de planejamento e projeto e/ou de instalação dos projetos dessa natureza. Tudo isso descaracteriza a AIA que, assim, perde em efetividade — como enunciado na hipótese central do presente trabalho de tese.

Um último aspecto digno de nota é o que diz respeito à atuação do Poder Judiciário com relação à AIA. O caso de Corumbá IV fornece elementos que merecem uma reflexão final. Quando o IBAMA, em 2005, indeferiu a solicitação de concessão da LO e a adoção das medidas para o enchimento do reservatório, o empreendedor argumentou, na Justiça, que o não enchimento do reservatório impediria a geração dos benefícios esperados. Em se tratando de grandes empreendimentos de infra-estrutura, tal argumento não causa espécie. Em uma prática relativamente comum, são viabilizados, a todo e qualquer custo, a contratação e o início das grandes obras. Isso, por si só, gera poderosas pressões com relação à geração de empregos e aos benefícios esperados. Essas pressões são geralmente direcionadas para a solução de entraves e dificuldades que, de outro modo, poderiam impedir ou postergar os vultosos investimentos previstos.

Embora um outro argumento, com relação à segurança das obras e das comunidades a jusante, face ao caráter provisório das estruturas de desvio, tenha de fato um embasamento técnico que não se poderia simplesmente desconsiderar, fica claro que os magistrados, ao

decidirem favoravelmente ou contra uma das partes, careciam desse embasamento. Essa opinião foi, inclusive, manifestada pela procuradora federal encarregada do caso98.

98 Ana Paula Mantovani, em entrevista ao autor deste trabalho, acerca do processo decisório de Corumbá IV, concedida em 18/5/2006.

6 PROJETO DE INTEGRAÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO COM