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Breve cronologia das políticas de saúde mental em Portugal

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1.1. Breve cronologia das políticas de saúde mental em Portugal

Em 1963 a Lei de Bases da Saúde Mental (Lei n.º 2118 de 3 de Abril) estabelece os princípios gerais da política e regulamenta o tratamento e internamento, definindo ainda os princípios orientadores para a descentralização dos serviços através da criação de centros de saúde mental de orientação comunitária (D-L n.º 46102/64 de 28 de Dezembro). Em termos formais, esta lei coloca Portugal entre os pioneiros do modelo de saúde mental comunitária, uma vez que foi muito influenciada pelo Mental Health Act dos EUA, prevendo a criação de Centros de Saúde Mental de base distrital, como estrutura básica de intervenção e prestação da globalidade de cuidados assistenciais à população abrangida (Portugal DGS, 2004). Os primeiros Centros de Saúde Mental surgiram em

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1965, tendo sido criada uma rede de 21 até 1980, cobrindo cerca de 60% da população. Este modelo implicaria necessariamente a reestruturação dos hospitais psiquiátricos existentes, mas as indefinições na lei levaram a algumas ambiguidades; entre elas identifica-se a não criação de Centros nos três distritos do país em que existiam hospitais desta especialidade até 1989. Independentemente de dificuldades registadas, a implementação dos Centros de Saúde Mental alterou profundamente o panorama da prestação de cuidados nesta área, pela acessibilidade dos serviços e facilidade no desenvolvimento de novas formas de intervenção com ligação a outros serviços de saúde e de protecção social (id., ibid.).

Quase trinta anos volvidos após a publicação da primeira Lei de Bases, em 1992, com a publicação da Lei n.º 36/982 de 24 de Julho (Lei da Saúde Mental), e da regulamentação da organização dos serviços assistenciais para a saúde mental (Decreto- Lei n.º 35/993 de 5 de Fevereiro), ficou definido um modelo de referência, de articulação estreita entre os cuidados hospitalares e os comunitários, assente na proximidade dos serviços em relação aos cidadãos, integrados no sistema de saúde geral (supondo-se contribuir para a diminuição do estigma associado às instituições psiquiátricas), com unidades de cuidados prestadoras da globalidade de cuidados. Assim, foi determinada a extinção dos Centros de Saúde Mental e a transferência das suas atribuições para hospitais gerais, centrais e distritais (D-L n.º 127/92 de 3 de Julho e Portarias n.º 750 e 151/92 de 1 de Agosto). Na prática foram extintos 20 Centros de Saúde Mental, para adultos, e 3 Centros de Saúde Mental Infantil e Juvenil, enquanto serviços descentralizados e autónomos, passando a integrar hospitais gerais e pediátricos, respectivamente (id., ibid.).

A saúde mental comunitária demarcava-se das práticas assistenciais ditas tradicionais. Bloom (1977, cit. in González et al., 1988) enuncia dez características que a demarcam dessas práticas: 1) a comunidade proporciona o marco assistencial em detrimento de assistência institucional (hospitais psiquiátricos); 2) o objecto passa a ser uma população ou comunidade total e não o paciente individual; 3) o tipo de serviço desenvolvido centra-se mais em actividades preventivas do que nas de tratamento; 4) a pretensão de um cuidado continuado por parte dos diferentes componentes de um sistema integral de serviços é sublinhada; 5) a ênfase nos serviços indirectos (consulta, assessoria, etc.) é colocada; 6) introduzem-se novas estratégias terapêuticas: psicoterapia breve, intervenção em crise e outras psicoterapias e intervenções; 7) coloca- se a ênfase na planificação sistemática dos serviços considerando a demografia da população, as necessidades não cobertas e a identificação dos grupos de alto risco; 8) promove-se a utilização de novos recursos humanos; 9) postula-se a participação e

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controlo comunitário: os membros da comunidade jogam um papel central no estabelecimento de prioridades e na avaliação de programas; 10) a ênfase é colocada na procura de causas ambientais do stress, contrapondo-se ao ponto de vista tradicional centrado na causalidade intrapsíquica.

Se a nível da concepção das práticas que se preconizavam existia consenso entre a maioria dos profissionais de saúde mental, existia menor acordo na tradução destes conceitos na intervenção quotidiana. Algumas limitações foram apontadas ao modelo de Saúde Mental Comunitária, tais como: a persistência de uma estrutura conceptual procedente do modelo biomédico, isto é, de um modelo centrado na doença; a exigência de que apenas os especialistas são competentes para prestar serviços de saúde mental; a incapacidade para substituir instituições psiquiátricas por serviços de apoio comunitário; as dificuldades na participação dos cidadãos na planificação dos programas de saúde mental comunitária; as limitações operacionais relacionadas com a delimitação de zonas geográficas de atracção. No entanto, as limitações para pôr em prática o projecto de uma saúde mental comunitária parecem ter sido quase sempre de ordem conjuntural e encerravam também a crise associada à mudança no paradigma de saúde.

Neste sentido, a lógica do processo reformista continuava a assentar na reestruturação dos hospitais psiquiátricos, no desenvolvimento de um sistema de cuidados comunitários e na continuidade de cuidados. No entanto, esta decisão gerou muitas contradições e integrou os cuidados de saúde mental a nível exclusivamente hospitalar.

Na senda da reestruturação e integração desta área no sistema geral de cuidados de saúde, foi criada em 1984 a Direcção de Serviços de Psiquiatria e Saúde Mental, no âmbito da nova Direcção-Geral dos Cuidados de Saúde Primários, incorporando as funções do então extinto Instituto de Assistência Psiquiátrica.

Tendo em conta a reestruturação dos cuidados introduzida por este diploma, em

1994 foi constituída uma Comissão para o Estudo da Saúde Mental, da Direcção-Geral

da Saúde, composta por cinco grupos de trabalho temáticos multiprofissionais. Em 1995 é Criada a Comissão Nacional de Saúde Mental (Despacho Ministerial 23 de Agosto) para propor um modelo organizacional para o sector e em 1996 cria-se o grupo de trabalho para a revisão da Lei de Saúde Mental (Despacho n.º 7/96 de 23 de Agosto), sendo criada em 1997 a Direcção de Serviços de Psiquiatria e Saúde Mental (D-L n.º 122 de 20 de Maio).

Em 1998 publica-se a Lei de Saúde Mental (Lei n.º 36/98 de 24 de Julho), actualmente em vigor. A lei estabelece os princípios gerais da política de saúde mental e regula o internamento compulsivo (regime que leva mais tarde, em 1995, à criação de

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uma comissão para acompanhamento da sua execução, através do Despacho Conjunto n.º 980 de 21/11). Enuncia como princípios gerais (art. 3º) a promoção de cuidados na comunidade, num “meio o menos restrito possível”, com internamentos em hospitais gerais, assegurando a reabilitação psicossocial através de “estruturas residenciais, centros de dia e unidades de treino e reinserção profissional, inseridos na comunidade”, devendo a prestação de cuidados proposta ser assegurada por equipas multidisciplinares.

Também em 1998 é publicado o inovador Despacho Conjunto n.º 407/98, de 18 de Junho, que propõe a intervenção articulada do apoio social e dos cuidados de saúde continuados, definindo objectivos para uma área de intervenção em situações de dependência, entre as quais as situações de doença mental, com o desenho de equipamentos específicos para esta população. Mais tarde é convertido em Plano Nacional de Cuidados Continuados Integrados (13/12/2001), sendo criada a Rede de Cuidados Continuados em saúde em 2003 (D-L n.º 281/2003 de 8 de Novembro) e, em

2006, a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (D-L n.º 101 de 6 de Junho).

Tendo sido inicialmente criadas enormes expectativas, pela publicação do referido Despacho Conjunto, quanto à criação de respostas ocupacionais e residenciais (apoiadas ou autónomas) para pessoas portadoras de doença mental, na verdade foi muito pouco expressivo o movimento para a implementação de tais recursos. Dados sobre as respostas de reabilitação criadas ao abrigo desta legislação (fórum sócio ocupacional; unidades residenciais de vida apoiada, protegida e autónoma e grupos de ajuda-mútua) dão conta que, até 2001, foram criados em Portugal Continental 44 programas e 754 lugares, alargados em 2006 para 54 programas e 992 lugares (CNRSSM, 2007).

No ano seguinte, em 1999, é regulamentada a Lei de Saúde Mental através do Decreto-Lei n.º 35/99 de 5 de Fevereiro. Este estabelece os princípios orientadores da organização da prestação de cuidados de psiquiatria e saúde mental, assim como da gestão e avaliação dos serviços. Regulamenta ainda o Conselho Nacional de Saúde Mental e as atribuições dos Hospitais Psiquiátricos. A Lei da Saúde Mental e a sua regulamentação definem a organização dos serviços de saúde mental como tendo o modelo comunitário por referência, elegendo os serviços regionais de saúde mental como estrutura assistencial básica, em funcionamento integrado e em estreita articulação com os cuidados de saúde primários (nomeadamente no acompanhamento em ambulatório) e restantes unidades de saúde. Definem ainda que a actividade assistencial é prestada por equipas multiprofissionais, uma por cada sector geodemográfico (correspondendo a 80 mil habitantes). Prevê-se que incumbiria aos hospitais psiquiátricos assegurarem respostas que exijam intervenções predominantemente institucionais.

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Em 2001 é publicado, pela Organização Mundial de Saúde (OMS/WHO), o relatório “Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança”40, visando sensibilizar o

público e os profissionais de saúde para os problemas relacionados com as doenças mentais, bem como para os custos humanos, sociais e económicos provocados por estas patologias. O Relatório analisa a área da prevenção, a disponibilidade de tratamento e acesso a este, e traça 10 recomendações gerais, que cada país pode adaptar de acordo com as suas necessidades.

Reflectindo as recomendações da OMS, a Rede de Referenciação (Hospitalar) de Psiquiatria e Saúde Mental foi publicada em Abril de 2001, revista e actualizada em 2004, caindo nesta versão a expressão “hospitalar”.

A nível europeu, em Janeiro de 2005 decorreu a Conferência Ministerial

Europeia da Organização Mundial de Saúde sobre Saúde Mental. Nesta foram

estabelecidas as linhas gerais de um plano de acção abrangente e assumido um compromisso político com vista à promoção da saúde mental. Posteriormente, é assinada a Declaração de Helsínquia “Mental health: facing the challenges, building solutions” que traça como prioridades a prevenção, o tratamento e a reabilitação do doente mental. A assinatura desta declaração abrange todos os países da Comunidade Europeia, a Organização Mundial de Saúde e o Conselho da Europa. Na mesma sequência, no mesmo ano é publicado o Livro Verde “Melhorar a saúde mental da população - Rumo a uma estratégia de saúde mental para a União Europeia”, que se assume como o contributo da Comissão Europeia para a execução desse plano de acção. Este propõe a definição de uma estratégia comunitária para esta área, visando lançar o debate com as instituições europeias, os governos, os profissionais de saúde, outros interessados dos demais sectores, a sociedade civil, incluindo associações de doentes, e a comunidade científica sobre a importância da saúde mental para a UE, a necessidade de uma estratégia a nível comunitário e as suas eventuais prioridades.

Mais recentemente foi estabelecido o chamado Pacto Europeu para a Saúde Mental e Bem-Estar, na sequência da Conferência Europeia de Alto Nível “Juntos pela Saúde Mental e Bem-estar”, realizada a 12 e 13 de Junho de 2008 em Bruxelas. O pacto, apesar de reconhecer que a principal responsabilidade para a acção nesta área pertencerá aos estados membros da UE, acredita no potencial institucional que esta reúne para informar, promover as boas práticas e encorajar acções com o objectivo de apoiar e promover a saúde mental e o bem-estar, congregando instituições europeias, estados membros, parceiros sociais diversos e a comunidade científica.

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40 Encontra-se este relatório disponível online traduzido pela Direcção Geral da Saúde: http://www.acs.min-saude.pt/wp-

content/uploads/2008/03/rel-mundial-sm-2001.pdf. Encontra-se ainda mais informação da Organização Mundial de Saúde na área do seu site europeu que dedica à saúde mental: http://www.euro.who.int/mentalhealth.

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Em Portugal, a recém-criada Coordenação Nacional para a Saúde Mental, do Alto Comissariado para a Saúde, reflecte a saúde mental como área prioritária no âmbito do Plano Nacional de Saúde 2004-2010. Assim, esta comissão (enquadrada através do Despacho n.º10464/2008, de 9 de Abril) tem como objectivos: o estudo da situação da saúde mental da população portuguesa, a criação de programas de promoção do bem- estar e da saúde mental da população e da prevenção, tratamento e reabilitação das doenças mentais; a organização de serviços de saúde mental de adultos, da infância e adolescência; a articulação dos cuidados psiquiátricos com os cuidados de saúde primários e continuados; a participação dos utentes e dos cuidadores na reabilitação; a integração social das pessoas que sofrem de problemas mentais graves.

Dentro das suas responsabilidades encontra-se o acompanhamento do Plano Nacional de Saúde Mental 2007/2016, aprovado através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 49/2008 de 6 de Março. Este plano, resultante do trabalho da Comissão Nacional para a Reestruturação dos Serviços de Saúde Mental (CNRSSM), tem por objectivos principais assegurar a equidade no acesso a cuidados de qualidade a todos quantos apresentem problemas de saúde mental, incluindo grupos especialmente vulneráveis, proteger os seus direitos humanos, reduzir o impacto das perturbações mentais, descentralizar e integrar os cuidados de saúde mental no sistema geral de saúde. A resolução que aprova o plano cria simultaneamente a Comissão Técnica de Acompanhamento da Reforma da Saúde Mental. No relatório que precede o plano, produzido pela Comissão Nacional para a Reestruturação dos Serviços de Saúde Mental em 2007, apontam-se as diferentes estratégias para assegurar uma melhor qualidade dos cuidados de saúde mental e promover a saúde mental das populações, sendo traçado o plano para a implementação de tais estratégias.