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CICLOS VITAIS : DO DOENTE , DO SISTEMA FAMILIAR E DA DOENÇA

Como já percebemos, a família vai enfrentando diferentes desafios na trajectória que a doença segue, sendo esta determinada por um conjunto de factores clínicos, nomeadamente relacionados com o tipo de cancro e estádio da doença. Veach, Nicholas e Barton (2002), no que concerne ao cancro referem-se a quatro grandes trajectórias clínicas que a doença pode seguir ou, reportando-se a Holland (1989, cit. in Veach, Nicholas, & Barton, 2002:5), às várias “voltas da montanha russa”24 do cancro:

1) a situação que resulta na sobrevida de longa duração e na cura, situação essa que envolveu os sintomas, o diagnóstico, os tratamentos, a reabilitação ou a remissão;

2) a situação sem tratamento primário possível que resulta em doença terminal e morte;

3) a situação em que os tratamentos não obtêm resposta, resultando igualmente em doença terminal e morte;

4) a situação em que, após os tratamentos, reabilitação ou remissão, ocorre uma recidiva ou se verifica a existência de metástases, e que vem a resultar em doença terminal e morte.

Em cada uma destas situações encontramos distintas fases da experiência com o cancro25, desde logo em virtude da sua própria duração, como da ocorrência simultânea

de diferentes tarefas e resultados. Nestas quatro trajectórias clínicas podem identificar-se seis fases (Veach, Nicholas, & Barton, 2002): 1) sintomas/diagnóstico/tomada de decisão; 2) primeiros tratamentos/sem possibilidade de tratamento primário; 3) conclusão dos tratamentos/reabilitação/remissão; 4) sobrevida de longa duração; recidiva/ etastática/doença avançada; tratamento sem resultados/cuidados paliativos/doença terminal/luto.

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24 Tradução livre de “roller-coaster rides”.

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Relativamente a estas fases é também estudado o ajustamento emocional do doente ao cancro (Geer & Watson, 1982, Kneier & Temoshoc, 1984, Seligman, 1996; Anderson, 1992, cit. in Pereira & Lopes, 2002; Santos, Ribeiro, & Lopes, 2003) e mais recentemente o da família (Santos, Ribeiro, & Lopes, 2006), identificando-se um conjunto de reacções emocionais típicas. A intensidade da reacção pode variar ao longo do ciclo da doença (Davidson & Baum, 1986, Krause, 1991, Fox, 1995, cit. in Smith, Redd, Peyser, & Vogl, 1999).

Numa outra concepção deste entrecruzamento, Wheis e Reiss (1996) descrevem um modelo de desenvolvimento relacional das famílias quando um dos seus membros tem cancro, perspectivando o cancro como uma ameaça ao ciclo vital da família e ao seu funcionamento, atendendo à imprevisibilidade que comporta a experiência da doença. Os autores admitem que a família, perante o desafio de colocar a doença no seu lugar, se move entre fases em que está “centrada na vida” e outras em que está “centrada no cancro”26. Propõem uma representação esquemática do cruzamento destes dois ciclos, o

da família e o da doença, numa aproximação à complexidade das relações entre os diferentes sistemas e subsistemas (onde constam os membros do sistema familiar, o membro doente e a equipa médica) e às possíveis triangulações e quadrangulações, ao longo das diferentes fases do ciclo de doença (id., ibid.:11). Este esquema é reinterpretado por nós na Figura nº. 8. Wheis e Reiss (1996) alertam para o risco de existir um ajustamento psicológico pobre quando as exigências da doença são altas e a família se torna “centrada no cancro”. Os autores abordam ainda o contributo do significado da doença na família para a percepção da ameaça, assim como as relações entre os membros de uma família que enfrenta a doença, baseando-se no estilo de vinculação.

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26 Tradução livre da expressão «“living centered” and “cancer centered”» (Wheis & Reiss, 1996:10).

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Figura n.º 7 – O curso clínico do cancro

(traduzido e reproduzido a partir de Veach, Nicholas, & Barton, 2002:6)

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Figura n.º 8 – Ciclo vital da família quando um adulto tem cancro

(Esquema reinterpretado a partir de Wheis & Reis, 1996: 11)

Na fase prévia ao diagnóstico parece dominar uma incerteza associada a níveis elevados de ansiedade (Pereira & Lopes, 2002). Na maior parte das vezes, o doente é confrontado com sintomas suspeitos (Holland, 1989, cit. in Veach, Nicholas, & Barton, 2002). Nesta fase, caso o portador dos sintomas partilhe as suas preocupações, as funções salutogéneas associadas ao suporte social da sua rede (nomeadamente da família) são fundamentais para promover a procura de cuidados médicos. A partir daqui é levado a cabo um conjunto de exames complementares de diagnóstico para suportar o diagnóstico clínico e o plano de tratamento. Perante o diagnóstico, a família entra numa fase aguda em que é fundamental compreender o diagnóstico e tomar decisões relativas aos tratamentos. Aliás, os níveis de ansiedade são geralmente elevados, o que torna impossível digerir toda a informação prestada nestas decisões terapêuticas, assumindo enorme relevância o papel da família ou de outras figuras próximas, nesta fase, que

Legenda: Sistema Familiar

Sub-sistemas (C-conjugal, P-parental, F-filial e Fr-fraternal) Doente (subsistema individual)

Equipa clínica Fase

aguda Fase de tratamento

Remissão Recorrência e Tratamento

Fase Morte do Depois Terminal Doente da morte

Ciclo Clínico do Cancro Ciclo Vital da Família “centrado na vida” C P F Fr

C C C C C P P P P P P F F F F F F Fr Fr Fr Fr Fr Fr

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possam acompanhar o doente. A própria família, como adiante referimos, precisa muitas vezes de suporte neste processo de compreensão do diagnóstico e de apoio terapêutico.

Quando o doente toma conhecimento do diagnóstico, “surge de imediato uma reacção, por parte deste, em resposta a tão ameaçadora notícia” (Pereira & Lopes, 2002:32). Dependendo da duração da fase anterior e das informações a que o doente foi tendo acesso, haverá suspeita maior ou menor relativamente ao diagnóstico, o que necessariamente implicará reacções distintas, contando ainda com a representação individual e social da doença. Rowland (1989, cit. in Veach, Nicholas, & Barton, 2002) descreveu a reacção do doente ao diagnóstico de cancro enquanto envolvendo preocupações relativamente a “cinco D’s”: distância, dependência, invalidez (disability), desfiguramento, e morte (death). Kneie e Temoshoc (1984, cit. in Pereira & Lopes, 2002) descrevem, por seu lado, quatro respostas possíveis que podem passar por enfrentá-lo com espírito de luta e determinação, através do chamado evitamento positivo (ou negação), com fatalismo aceitando passivamente, ou com desesperança e sensação de incapacidade.

Se as primeiras respostas se podem associar a um bom prognóstico na adaptação à doença, desde que complementados com um bom nível de suporte social e com capacidade para lidar eficazmente com o stress, já as últimas se associam a um pior prognóstico e congregam ansiedade e depressão, supressão de emoções e isolamento social (Seligman, 1996, cit. in Pereira & Lopes, 2002). Também as podemos entender como mecanismos de defesa que procuram alterar a realidade para aliviar o sofrimento (Mendes, 2004). Os mecanismos de defesa mais utilizados passam pela alteração artificial dos factos (negando-os, esquecendo-os ou aceitando-os mas minimizando), pela alteração dos sentimentos e preocupações (atribuindo-os aos que lhe estão mais próximos, projectando-os ou deslocando-os) e pela alteração da interpretação dos factos numa regressão infantil ou por uma racionalização dos problemas, analisando genericamente a situação e mantendo-se à parte (Machado, 2003, cit. in Mendes, 2004). Os doentes parecem também ter necessidade de encontrar uma causa para a doença, algo a que possa atribuir-se a culpa (Burish, Meyerowitz, Carey, & Morrow, 1987), sendo de referir que 95% dos doentes estudados por Taylor (1982 cit. in Burish et al., 1987) apresentavam uma explicação causal para a doença, o que pode significar um acréscimo em distress.

A DSM-IV caracteriza a resposta que geralmente se associa a esta fase como Perturbação de Ajustamento, marcada pela depressão e/ou ansiedade, ou por ambas (Massie & Popkin, 1998, cit. in Patrão & Leal, 2004).

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