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47Encontramos uma outra conceptualização baseada no modelo inicial de Hill,

proposta por Burr (1973 cit. in Kornblit, 1996), que inclui as ideias de “vulnerabilidade familiar” e o seu “poder regenerativo”. Nesta tem-se também a ideia de que as crises normativas e não normativas são consideradas acontecimentos que provocam tensão. De entre os factores de tensão não normativos encontramos a doença e a incapacidade, perante a qual a família atribuirá um significado, influenciando a magnitude da tensão e o estilo de resposta. O seu poder de regeneração prende-se com a sua capacidade de ultrapassar a desorganização resultante da influência do factor de tensão, e expressa-se na disponibilidade de recursos que a família pode por em jogo (Kornblit, 1996).

Esta concepção, fundada na perspectiva interaccional, vê este tipo de crise como o grau de desorganização que o impacto da doença produz na família, dependendo este fundamentalmente da interacção de duas variáveis: tipo de doença e dinâmica do grupo familiar (Kornblit, 1996). A forma como é equacionada a resposta adaptativa da família inscreve-se nas ideias da Primeira Cibernética em torno dos sistemas auto-regulados, concepções das quais nos afastamos, preferindo conceber os sistemas como auto- organizados.

1.1.4. A resiliência familiar

O termo resiliência tem sido associado a um conjunto de capacidades do ser humano relativas à regeneração, adaptação e flexibilidade.

Os primeiros estudos publicados sobre a resiliência no âmbito da psicologia datam da década de 70 (Souza, 2003), tendo o conceito sido equacionado de diferentes formas e discutido em diversas áreas científicas, desde então. Numa visão restrita, a resiliência pode ser concebida como traço de personalidade (Anthony & Cohler, 1987, cit. in Souza, 2003), assim como resultado de uma combinação de traços de personalidade e relacionamento com figuras significativas, ou como forma de adaptação perante circunstâncias difíceis, sendo aqui tidas como referência um conjunto de factores de risco e protectores em interacção. Fonagy et al. (1994, in op. cit.) identificam um conjunto de factores de protecção que passam pela inteligência e habilidade na resolução de problemas, estilos superiores de coping, sentido de eficácia, autonomia, bom relacionamento com as figuras parentais, apoio social e existência de uma boa rede de relacionamentos. No entanto, nenhum factor de protecção o é em si mesmo e a sua dimensão protectora depende da interpretação que dele é feita, da fase desenvolvimental da família e do contexto (Souza, 2004). Aliás, a própria família pode ser um factor protector ou um factor de risco para os seus membros (Hawley & DeHann, 1996), ou um

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factor de protecção de hoje pode tornar-se num factor de risco de amanhã (Rutter, 1989, cit. in Hawley e DeHann, 1996).

Alargando o conceito da esfera individual para a esfera relacional, aparece a ideia de resiliência familiar, que ultrapassa em muito a ideia da família como recurso, inscrevendo-a como fonte de resiliência (Walsh, 1996). Este conceito foi sendo consolidado no seio da evolução da perspectiva sistémica e pelas teorias referidas anteriormente. As pessoas deixaram também de ser vistas como sujeitos passivos, à mercê da interacção entre factores de risco e protectores, e passaram a serem avaliadas pela capacidade de enfrentar situações que provocam stress (Souza, 2003). Neste sentido, Walsh (2005) concebe a resiliência como a acção do homem sobre os recursos, pois não basta que eles existam, mas há que agir sobre eles e usá-los a nosso favor.

Froma Walsh (2005) concebe um conjunto de processos-chave recursivos que fortalecem a resiliência, agrupados em torno de três dimensões: 1) sistemas de crenças; 2) padrões de organização; 3) processos comunicacionais.

A primeira dimensão abrange valores, atitudes, tendências e suposições que formam as premissas básicas que guiam acções, relações e respostas emocionais, assim como organizam a experiência. A segunda dimensão, relativa à estrutura familiar, funda- se nas ideias de adaptabilidade e coesão familiares, permitindo a sua evolução e adaptação à mudança, por um lado, e a continuidade da unidade familiar, por outro. A autora inclui ainda nesta dimensão os recursos sociais e económicos, na relação da família com a comunidade. Na terceira dimensão sobressai a metacomunicação na família, destacando neste processo a clareza na comunicação, a expressão emocional aberta e a solução participativa de problemas.

Hawley e DeHann (1996) abordam a resiliência familiar como um processo equacionado de forma positiva e salutogénica, relacionando esta característica com os caminhos que a família trilha na resposta às situações de stress, indo de encontro às ideias de Walsh (1996; 2005), que defende também esta inscrição na dimensão temporal. Mais do que um conjunto de capacidades, a resiliência expressa a relação das famílias com os desafios que enfrentam, fortalecendo essas capacidades também através das próprias adversidades (Walsh, 1996; 2005), partilhando a concepção de crise de Salvador Minuchin. Walsh refere a ideia de Wolin & Wolin (1993, cit. in Walsh, 1996) quando fazem notar o paradoxo da resiliência através da ideia de que alguns dos piores tempos podem ser os melhores.

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1.2. O ciclo vital do doente, da família e da doença

Como foi anteriormente referido, o cruzamento entre os ciclos vitais da família, do indivíduo e da própria doença são um dos elementos centrais do modelo sistémico da doença proposto por Rolland, sendo fundamental compreender o entrelaçamento dos três fios evolutivos (Rolland, 1995). Também outros autores se têm dedicado a este entrelaçado, particularmente no que concerne ao cancro (Wheihs & Reiss, 1996; Veach, Nicholas, & Barton, 2002).

Rolland (1995) cruza dois conceitos chave neste entrelaçado: o de ciclo de vida e o de estrutura de vida humana. O primeiro sugere uma ordem “através da qual a singularidade do indivíduo, da família ou da doença ocorre dentro de um contexto de sequência e desdobramento básico” (id., ibid.: 384). O segundo refere-se ao padrão de transacções e relacionamento recíproco entre sujeitos ou famílias com outros sistemas no ecossistema.

Sabemos que nos ciclos de vida, as fases de transição são potencialmente mais vulneráveis, constituindo um período de reavaliação das estruturas anteriores da vida relativamente às novas exigências desenvolvimentais que se colocam. Sabemos também que há fases do ciclo vital que são tendencialmente mais centrípetas, ou de proximidade ou fechamento familiar, e outras mais centrífugas, ou de maior afastamento ou abertura familiar. Ora, todos estes factores se conjugam e dão ao entrelaçado uma especial complexidade, sendo os estilos e fases centrípetas e centrífugas especialmente úteis para integrar o cruzamento dos três ciclos de vida em causa (Beavers, 1982, cit. in Rolland, 1995).

A doença crónica exerce geralmente uma força centrípeta no sistema familiar, embora o seu grau varie imensamente, nomeadamente de acordo com as fases da própria doença, como veremos adiante. A fase inicial de uma doença numa família é, neste sentido, análoga ao nascimento de um novo membro da família, que vai crescer e socializar-se, pois também é necessário que o sistema se socialize com a doença, criando um novo foco interno (Rolland, 1995). Se o surgimento desta doença coincide com um período centrípeto, pode, no mínimo, prolongar esta fase, podendo mesmo provocar uma “paralisação” nessa fase desenvolvimental. Em suma, esta coincidência incorre no risco de amplificação mútua destes movimentos.

Exemplificando, podemos equacionar diversas situações de risco possíveis. Quando um filho se encontra num movimento de criação de “autonomia e individualidade fora-da-família” (id., ibid.:386), uma doença na criança ou jovem pode comprometer este processo, pela necessidade de cuidados, de acompanhamento e de controlo que

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geralmente apresenta quem adoece. Caso adoeça um dos pais (ou membro do sub- sistema executivo), o impacte sobre os filhos é duplo. Rolland (ibid.) afirma que pode haver a sensação desse pai ser “perdido”, incapaz de exercer as suas funções e de, simultaneamente, “rivalizar” com os filhos na necessidade de ser cuidado, como adulto com necessidades especiais. Estas situações interferem também tremendamente com os planos futuros da família, nomeadamente quando os pais que adoecem assumem um papel determinante no sustento financeiro da família.

Para além das forças presentes no sistema familiar, o aparecimento de uma doença pode coincidir ora com um período de transição entre fases do ciclo vital individual e/ou familiar, ora com um período de construção ou manutenção no seu desenvolvimento. Estas situações representam contextos distintos que potenciam riscos de disfunção igualmente distintos.

Os períodos de transição, também designados por crises normativas, são geralmente caracterizados por desorganização, “tumulto, reavaliação, mudança e maior entropia familiar” (Rolland, 1995:388). Neste contexto, uma doença pode ser “desnecessariamente inserida ou inadequadamente ignorada” no planeamento da próxima fase do ciclo de vida. Por seu lado, uma doença nos períodos de manutenção, caracterizados pela sobrevivência de determinado padrão transaccional, pode trazer necessidade de mudança a esta estrutura, em graus diferentes consoante as características da própria doença, sendo aqui fundamental contar com o nível de adaptabilidade familiar para um ajustamento bem sucedido. É de assinalar que o início de uma doença cria ele próprio um período de transição, cuja duração e intensidade vai depender directamente do seu tipo psicossocial, como já anteriormente referimos.

Geralmente entendemos que a velhice é a altura das nossas vidas em que adoecer é um acontecimento normal e até esperado, podendo afirmar-se que há “um timming normativo e não-normativo da doença” no ciclo de vida (Rolland, 1995:390). Assim, teremos como mais disruptivas a nível desenvolvimental as doenças e as perdas que ocorrem antes ou “fora de fase”, como nos diz Rolland (ibid., citando as investigações de Herz, 1980 e de Neugarten, 1976). Este timming parece influenciar determinantemente a forma de adaptação do sujeito ou da família e a influência dos acontecimentos no ciclo de vida (Levinson, 1978, cit. in Rolland, 1995).

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2.

A DOENÇA ONCOLÓGICA NA INTERFACE DE TRÊS

CICLOS VITAIS: DO DOENTE, DO SISTEMA FAMILIAR E