20. Outro corolário do princípio da legalidade é a proibição da aplicação da analogia para fundamentar ou agravar a pena (ana
logia in malam partem). A analogia, por ser uma forma de supri-
rem-se as lacunas da lei, supõe, para sua aplicação, a inexistência de norma legal específica. Baseia-se na semelhança.
Estando regulamentada em lei uma situação particular, aplica-se por analogia essa mesma regulamentação a outra situação particular, semelhante mas não regulamentada. Ê uma conclusão que se extrai do particular para o particular6. Conclui a respeito de um caso o que se aplica a outro caso semelhante. Um exemplo, citado por Engisch, é a aplicação da eficácia justificadora do consentimento do ofendido, em certas lesões corporais, para excluir igualmente o crime na privação da liberdade (cárcere privado), sob fundamento de que a ofensa corporal e a privação da liberdade apresentam certas seme lhanças, de sorte que aquilo que for justo para a primeira sê-lo-á igualmente para a segunda 7.
A analogia pode ser considerada sob o aspecto da lei ou do direito: analogia da lei e analogia do direito. No primeiro caso, parte-se de um preceito legal isolado; no segundo, parte-se de um conjunto de normas, extraem-se delas o pensamento fundamental ou os princípios que as informam para aplicá-los a caso omisso, seme lhante ao que encontraria subsunção natural naquelas normas ou
princípios. \
6. Karl Engisch, Introdução, cit., p. 234. 7. Introdução, cit., p. 234.
De um modo geral é possível, portanto, afirmar-se, conclusiva mente, com o autor por último citado, que: “Toda regra jurídica é suscetível de aplicação analógica — não só a lei em sentido estrito, mas também qualquer espécie de estatuto e ainda a norma de direito consuetudinário. As conclusões por analogia não têm apenas cabi mento dentro do mesmo ramo do direito, nem tampouco dentro de cada Código, mas verificam-se também de um para outro Código e de um ramo do direito para outro” 8. Essa a regra.
21. No direito penal, contudo, importa distinguir duas espé cies de analogia: a analogia in malam partem e a analogia in bonam
partem. A primeira fundamenta a aplicação ou agravação da pena
em hipóteses não previstas em lei, semelhantes às que estão previstas. A segunda fundamenta a não-aplicação ou a diminuição da pena nas mesmas hipóteses. A primeira agrava a situação do acusado, a segun da traz-lhe benefícios.
22. A exigência da lei prévia e estrita impede a aplicação, no direito penal, da analogia in malam partem, mas não obsta, obvia mente, a aplicação da analogia in bonam partem, que encontra justi ficativa em um princípio de eqüidade. É preciso notar, porém, que a analogia pressupõe falha, omissão da lei, não tendo aplicação quan do estiver claro no texto legal que a mens legis quer excluir de certa regulamentação determinados casos semelhantes. Segundo Bettiol, “a proibição do procedimento analógico em matéria penal há que assi nalar limites precisos. Recai sobre todas as normas incriminatórias e todas as que (mesmo eximentes) sejam verdadeiramente excepcio nais . . . Quaisquer outras normas do Código Penal são suscetíveis de interpretação analógica” 9.
23. As restrições feitas à analogia não se aplicam por inteiro à denominada interpretação extensiva, ou analógica, embora esta apresente problemas semelhantes. Na interpretação extensiva am plia-se o espectro de incidência da norma legal de modo a situar sob seu alcance fatos que, numa interpretação restritiva (procedi mento oposto), ficariam fora desse alcance. Não se trata, aqui, de analogia, visto que a ampliação referida está contida in potentia nas palavras, mais ou menos abrangentes, da própria lei. O tema é controvertido, pois quase sempre, nestes casos, tropeça-se com a
8. Introdução, cit., p. 238.
dúvida, hipótese em que o princípio in dubio pro reo afasta a pos sibilidade da extensão. Pensamos, contudo, qué a melhor solução não está na exclusão dessa forma de interpretação, ou na sua subs tituição simplista pela restritiva ou pela puramente gramatical, mas sim na utilização adequada de todas as formas de interpretação. Haverá, pois, interpretação restritiva, quando o exigir a compatibi- lização do preceito com a sua finalidade ou com o todo do sistema. Um exemplo nos é dado por Hungria: “Quando, no seu art. 24, o Código declara que a emoção, a paixão ou a embriaguez (voluntária ou culposa) ‘não excluem a responsabilidade penal’, tem-se de enten der que se refere a esses estados psíquicos quando não patológicos, pois, de outro modo, seria irreconciliável o citado art. 24 com o art. 22” 10. Outro exemplo do mesmo autor: quando o Código incri mina a bigamia (art. 125), está necessariamente implícito que abrange na incriminação a poligamia. E assim por diante.
Esse problema agrava-se quando, no tipo, encontramos elemen tos normativos. Dependendo eles de um juízo valorativo, ensejam a interpretação restritiva ou ampliativa. É óbvio que o princípio do
in dubio pro reo, bem como o da prevalência dos elementos descri
tivos sobre os normativos, além dos já mencionados critérios siste mático e teleológico, constituem pontos de referência seguros para a decisão final sobre a ampliação ou restrição do preceito que se quer interpretar.
24. O Supremo Tribunal Federal, em acórdão do Pleno, da lavra do Min. Bilac Pinto, teve a ocasião de estabelecer a distinção acima apontada, entre analogia e interpretação extensiva ou analó
gica, decidindo que a vítima de um crime somente através da analo
gia poderia ser equiparada a “testemunha” para a configuração do tipo do art. 343 do Código Penal (corrupção ou suborno de teste munha). Na hipótese, foi concedida a ordem para trancamento da ação penal, concluindo o voto do Relator, após transcrever citação de Alípio Silveira: “ . . . ‘Devemos repelir a analogia, porque, se o Direito Penal é um direito liberal, não admite de modo algum esses perigos à liberdade do homem e do cidadão. Mas uma coisa é repelir a analogia, e outra admitir interpretação analógica. A analogia é a aplicação, a um caso concreto, de uma lei, cuja vontade não era captar este fato que aparece no horizonte da realidade quotidiana.
10. Comentários, cit., v. 1, t. 1, p. 80. Note-se que o autor se refere aos
Ao invés, a interpretação analógica é uma forma de interpretação
extensiva, como dizia Bobbio; é simplesmente um raciocínio jurídico, uma aplicação imanente do Direito, que às vezes se encontra, de modo taxativo, exigida pelos códigos, até empregando a palavra analogia5 (Normas para la interpretación en El Criminalista, tomo V, pág. 195, Hermenêutica no Direito Brasileiro, pág. 182-4). Estamos em que, na espécie, o egrégio Tribunal a quo valeu-se da analogia para configurar um tipo não previsto em lei. Se o ofendido não figura,’no art. 343 do C. Penal, como agente passivo do delito, não se pode recorrer à analogia para inserir na norma legal um novo tipo. Pelo exposto, proponho o exame dessa preliminar. O meu voto é no sentido de reconhecer que a condenação dos pacientes fun dou-se na analogia e de conceder o habeas corpus por falta de justa causa para o processo” (RTJ, 66:687-8).
25. Note-se, finalmente, que a analogia é admitida sem restri ções no processo penal. Assim já decidiu o Supremo Tribunal Fe deral, em acórdão que traz a seguinte ementa: “I. O art. 3.°, do C. P. Penal, admite expressamente a aplicação analógica e o suple mento dos princípios gerais de Direito. II. Não viola a Constituição Federal, nem discrepa de jurisprudência do Supremo Tribunal Fe deral, o acórdão que condena o querelante vencido a indenizar os honorários do advogado que defendeu vitoriosamente o querelado. Essa decisão, longe de ofender o art. 114 do C. P. Civil de 1939, interpretou-o bem razoavelmente em harmonia com os arts. 4.° e 5." da Lei de Introdução ao Código Civil e com o art. 3.°, do C. P. Penal” (Rel. Min. Aliomar Baleeiro, RTJ, 73:909).