• Nenhum resultado encontrado

38. Questão polêmica é a de saber se, na determinação da lei mais benigna aplicável, pode o juiz tomar os preceitos ou os crité­ rios mais favoráveis da lei anterior e, ao mesmo tempo, os da lei posterior, combiná-los e aplicá-los ao caso concreto, de modo a ex­ trair o máximo benefício resultante da aplicação conjunta só dos aspectos mais favoráveis de duas leis. Nélson Hungria opina con­ trariamente a essa possibilidade de o jiiiz, arvorando-se em legisla­ dor, criar “uma terceira lei, dissonante, no seu hibridismo, de qual­

7. Comentários, cit., v. 1, t. 1, p. 109 e s.

quer das leis em jogo” 8. No mesmo sentido, Heleno Fragoso 9, e

Aníbal Bruno 10. Opinam favoravelmente à possibilidade da combi­ nação de leis, Basileu G arcia11 e Celso Delmanto 12, entre outros. Frederico Marques, partidário desta última corrente, é o que ofere­ ce melhores argumentos em prol da tese, in verbis: “Dizer que o Juiz: está fazendo lei nova, ultrapassando assim suas funções consti­ tucionais, é argumento sem consistência, pois o julgador, em obe­ diência a princípios de eqüidade consagrados pela própria Consti­ tuição, está apenas movimentando-se dentro dos quadros legais para uma tarefa de integração perfeitamente legítima. O órgão judiciá­ rio não está tirando ex nihilo a regulamentação eclética que deve imperar hic et nunc. A norma do caso concreto é construída em função de um princípio constitucional, com o próprio material for­ necido pelo legislador. Se ele pode escolher, para aplicar o man­ damento da Lei Magna, entre duas séries de disposições legais, "a que lhe pareça mais benigna, não vemos porque se lhe vede a com­ binação de ambas, para assim aplicar, mais retamente, a Constitui­ ção. Se lhe está afeto escolher o ‘todo’, para que o réu tenha o tratamento penal mais favorável e benigno, nada há que-lhe obste selecionar parte de um todo e parte de outro, para cumprir uma regra constitucional que deve sobrepairar a pruridos de lógica formal. Primeiro a Constituição e depois o formalismo jurídico, mesmo por­ que a própria dogmática legal obriga a essa subordinação, pelo papel preponderante do texto constitucional. A verdade é que não estará retroagindo a lei mais benéfica, se, para evitar-se a transação e o ecletismo, a parcela benéfica da lei posterior não for aplicada pelo Juiz; e este tem por missão precípua velar pela Constituição e tom ar efetivos os postulados fundamentais com que ela garante e proclama os direitos do homem” 13.

39. O Supremo Tribunal Federal tem decidido pela impossi­ bilidade dessa combinação de leis, a partir do acórdão do Pleno, no já citado RCrim 1.381, no qual se discutiu a aplicação do Código

8. Comentários, cit.r v. 1, t. 1, p. 109-10. 9. Lições, cit., p. 108.

10. Direito penal, cit., t. 1, p. 256. 11. Instituições, cit., v. 1, t. 1, p. 150. 12. Código Penal anotado, p. 5.

Penal, como lei mais benigna, a crime de roubo contra estabeleci­ mento de crédito, após o advento da Lei n. 6.620/78. Nesse jul­ gado, por votação unânime, no particular, afirmou-se que “é lícito ao juiz escolher, no confronto das leis, a mais favorável, e aplicá-la em sua integridade, porém não lhe é permitido criar e aplicar uma ‘terza legge diversa’ de modo a favorecer o réu, pois, nessa hipóte­ se, se transformaria em legislador” (RTJ, 94:505). Em julgado posterior, a 2.a Turma do mesmo Pretório deu como assente aquele entendimento (RCrim 1.412, RTJ, 96:547).

40. Nossa opinião é a de que, em matéria de direito transi­ tório, não se pode estabelecer dogmas rígidos como esse da proibi­ ção da combinação de leis. Nessa área, a realidade é muito mais rica do que pode imaginar a nossa “vã filosofia”. Basta ver que, no próprio julgado relativo ao RCrim 1.412, em que a 2.a Turma do Supremo Tribunal Federal reafirmava a proibição de combina­ ção de leis, não se logrou impedir, em certa medida, esse mesmo fenômeno ao reconhecer-se a impossibilidade de aplicação da pena de multa do Código Penal (a lei mais benigna aplicada), para não incorrer-se na reformatio in peius. Com isso o resultado final do julgamento foi o seguinte: no tocante à multa, prevaleceu o critério do Decreto-lei n. 898/69 (lei de segurança nacional revogada) que não a previa; no tocante à pena privativa da liberdade, prevaleceu o Código Penal. É certo que, se tivesse havido recurso do Ministé­ rio Público, a decisão poderia ter sido outra, para manter-se a coe­ rência com a doutrina acolhida pelo acórdão. Essa possibilidade, entretanto, não nega o fato de que, no mundo da realidade, alguma forma de combinação de leis pode ocorrer, sem nenhum prejuízo para a ordem e a segurança jurídicas.

Feita essa constatação, parece-nos que uma questão de direito transitório — saber que normas devem prevalecer para regular de­ terminado fato, quando várias apresentam-se como de aplicação pos­ sível — só pode ser convenientemente resolvida com a aplicação dos princípios de hermenêutica, sem exclusão de qualquer deles. E se, no caso concreto, a necessidade de prevalência de certos princípios superiores (como, no exemplo do acórdão citado, a proibição da

reformatio in peius) conduzir à combinação de leis, não se deve

temer este resultado desde que juridicamente valioso. Estamos pois de acordo com os que profligam, como regra geral, a alquimia de preceitos de leis sucessivas, quando umas se destinam a substituir as

outras. Não obstante, não vemos como negar razão a esta prudente observação de Basileu Garcia: “Esse critério, como orientação geral, é exato. Mas há casos em que a sua observância estrita leva a con­ seqüências clamorosamente injustas, e será necessário temperá-lo com um pouco de eqüidade. . . ” 14.

Documentos relacionados