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126. O termo “tipo” exprime a idéia de “modelo”, “esquema” . B utilizado em todas as áreas do conhecimento para separar e agru­ par em classes objetos particulares que apresentem algo de comum. Em criminologia, por exemplo, desde Lombroso, tem-se procurado realizar a classificação dos delinqüentes em tipos, isto é, em grupos homogêneos de criminosos que apresentam traços característicos co­ muns. Em direito penal classificam-se em tipos algumas formas de comportamento humano. De um modo geral, o tipo é, pois, um conceito abstrato elaborado com o material obtido daquele “algo de comum” que retiramos de uma variedade de entes particulares. Não obstante, por um processo de reversão, depois de elaborado o tipo, dele extraímos, igualmente, certo significado que, silogistica- mente, passamos a atribuir aos entes que sob ele se agrupam. Esta­ belece-se, com isso, uma verdadeira interação entre o tipo e os entes particulares que dele participam. Pode-se, pois, afirmar que, nessa acepção, o tipo não é pura criação mental, mas sim descrição esque- mática de indivíduos, coisas, objetos ou fenômenos. Apesar disso, não deixa de ser abstração e também uma idéia-força que agrupa e retém entes particulares, que apresentam certas características uni­ formes, deles recebendo mas igualmente transmitindo-lhes signifi­ cado 15.

15. Consulte-se, a propósito, esta passagem de Engisch: “El tipo es, aunque un universale, un ‘universale in re’, es inmanente a la realidad como ‘entelequia’, o ‘plano’, o ‘estructura’, o ‘tendencia estructuradora real’, o prin­ cipio dinâmico. No es por tanto, simple residuo de consideración de cosas similares, ni simple síntesis mental, ni simple universale ‘post rem’, o ‘in mente’. En este sentido se ha considerado logicamente a la filosofia plató- nico-aristotélica como un pensamiento tipológico. La misma concepción se encuentra en Goethe. Actualmente no la encontramos en los citados traba- jos de Troll. Para él, el tipo es ‘el principio estructurador unitário capaz de regir la pluralidad de formas’, es el plan’, conforme al que ‘se unen los diversos miembros en el todo de la Organización’, el ‘protótipo’ ( Studium

generale, IV, 17). ‘El concepto de tipo propio de Ia morfología hace refe­

rencia a algo hallado previamente en los objetos, a una ordenación previa que sirve de base, como estructura planificada, para la edificación del orga­ nismo’, de manera que sólo una ‘consideración realista permite llegar a Ia esencia del tipo’ ( Philosophisches Jahrbuch, 61, cap. 2, § 1). El tipo es ciertamente una abstracción, pero de tal especie que se refiere a un orden hallado previamente en la naturaleza ( Ibidem, § 5 ) ” (La idea de concreción

O direito penal, para usar-se uma expressão de Sauer, trabalha com tipos e pensa por meio de tipos. Na Parte Especial do Código e na legislação complementar ou especial, vamos encontrar o já re­ ferido rol de fatos típicos penais, isto é, os tipos legais de crime. Na Parte Geral, encontramos os tipos permissivos (causas típicas de exclusão de crime: legítima defesa, estado de necessidade etc.). A própria causalidade entre a ação e o resultado não deixa de ser, na área penalística, conforme vimos, uma causalidade típica que, em confronto com a causalidade física, pode apresentar-se ampliada ou limitada pelo tipo legal. “Dentro do tipo — afirma Sauer —• está a conduta típica, sob o signo da causalidade típica ou adequada” 16.

Da conexão entre o tipo legal e os tipos permissivos, extrai-se o “tipo de injusto”, anteriormente examinado.

Não será, pois, incorreto afirmar-se que a aplicação do direito penal constitui uma complicada arte de manipulação de tipos.

127, Aplicando-se as noções anteriormente expostas, conclui- se que o tipo penal17 é um modelo abstrato de comportamento proi­ bido. É, em outras palavras, descrição esquemática de uma classe de condutas que possuam características danosas ou ético-socialmente reprovadas, a ponto de serem reputadas intoleráveis pela ordem ju­ rídica» A noção de tipo, como um dos elementos estruturais do conceito de crime — não o çrime na sua totalidade — se deve a Beling (Die Lehre von Verbrechen, 1906) que a concebeu, inicial­ mente, como pura descrição objetiva, algo desprovida de valoração. Dessa concepção inicial evoluiu-se, através dos anos, para uma con­ cepção material que vê no tipo uma dupla ordem de valoração. A primeira consiste no juízo de desvalor ético-social que está na origem da própria elaboração do tipo. A segunda está na carga valorativa contida no tipo, que permite a este último desempenhar importante função seletiva sobre as mais variadas formas de comportamento hu­ mano, com isso estabelecendo a grande linha divisória entre o que é permitido e o que não o é, na esfera do direito penal. O legis­ lador seleciona os tipos, transformando-os, com a edição das leis penais, em tipos legais de crime; estes últimos selecionam as con­

16. Derecho penal, p. 114.

17. Não adotamos as distinções feitas por Zaffaroni, entre tipicidade legal e tipicidade penal, in Manual de derecho penal, p. 318 e s.

dutas humanas, transformando-as em fatos típicos penais e em fatos

atípicos penais. Nessa ordem de idéias, parece-nos perfeitamente

possível admitir-se a estrutura tíipartida do crime (ação típica, anti- jurídica e culpável), sem cair-se necessariamente no “tipo indicia- dor” ou “orientador” (Leitbild) de Beling. Atribui-se ao tipo um conteúdo material, além de funções bem nítidas e inconfundíveis, o que pode ser melhor compreendido quando, numa inversão do ra­ ciocínio usual, se considera não apenas o papel negativo do injusto típico, mas também o positivo, a saber: o tipo não serve apenas para identificar as condutas criminosas, mas se presta igualmente para des­ criminar os fatos atípicos; todavia, ao fazê-lo, não exclui a possível ilicitude desses mesmos fatos que podem configurar algum ilícito não- penal (exemplo: o dano culposo). O fato atípico pode, pois, ser antijurídico; não pode, todavia, ser um injusto penal (isso revela a precedência da ilicitude).

Nessa acepção, o tipo é mais do que mero portador de um indício da antijuridicidade: é, com efeito, uma visão esqúemática do injusto 18 que, em concreto, pode ficar excluído pela incidência de uma norma permissiva ou causa de justificação.

Mas uma coisa é a exclusão da tipicidade — função privativa do juízo de atipicidade — outra é a exclusão da ilicitude — função do juízo de licitude do fato. Não há como confundir-se, portanto, o papel do tipo com o da ilicitude, nem é possível reduzir-se o pri­ meiro à segunda, ou vice-versa. Ambos os conceitos são dogma­ ticamente distintos e necessários, conforme se viu, por se referirem a momentos cognoscitivos diferentes.

128. Observamos, linhas atrás, que os tipos são, de um modo geral, frutos de um juízo de desvalor ético-social, tanto que apre­ sentam denominações bastante vulgarizadas (homicídio, assassinato,

18. Leciona Reale Júnior: “O tipo penal assume a estrutura da ação e se instaura ele próprio como uma estrutura, que se caracteriza pelo seu con­ teúdo axiológico, ponto de convergência de todas as partes que o integram. O tipo revela uma ação paradigmática objetivada e portanto praticamente pos­ sível, cujas partes se integram e apenas ganham significado no todo. O tipo é análogo à realidade, uniformizando e harmonizando, pelos seus caracteres essenciais, o que surge de modo heterogêneo na realidade. O tipo penal como estrutura normativa, como modelo jurídico, é a descrição de conduta para­ digmática, que se sujeita a uma conseqüência penal, em razão de uma qua­ lificação valorativa” ( Antijuridicidade concreta, cit., p. 32).

furto, roubo, estupro etc.). Não obstante, em razão do princípio

nullum crimen, nulla poena sine lege, que entre nós é regra legislada

(CF, art. 5.°, XXXIX; CP, art. 1.°), só a lei federal pode criar tipos penais (CF, art. 22, I). Assim, um fato, por mais danoso que seja, não poderá jamais ser reputado crime antes de ser ex­ pressamente previsto em lei como tal. Essa previsão, como se dis­ se, se faz por meio do tipo legal de crime. Como os tipos são con­ ceitos abstratos, é impossível evitar que sua previsão legal tenha um alcance maior do que aquele que deveria ter. São, por isso, limi­ tados pelos tipos permissivos (causas de justificação). Além disso, condutas socialmente adequadas e até socialmente necessárias podem, pelo seu aspecto externo, ser atraídas para o campo de força do tipo legal de crime. Exigir-se que, nesse caso, o agente se defenda utilizando-se de alguma causa de justificação ou de exclusão da cul­ pabilidade é permitir-se que o cidadão, que age dentro dos padrões dominantes na sociedade em que vive, deva prestar contas, isto é, deva justificar-se a respeito de um comportamento aceito,, normal, praticado pela generalidade das pessoas ou, em certos casos, até ne­ cessário pàra o bom desenvolvimento das relações sociais. O ab­ surdo de uma exigência dessa natureza confirma a conclusão de que o juízo de tipicidade, para não reduzir-se a quase nada, terá que partir de uma concepção material que veja no tipo algo dotado de conteúdo valorativo, verdadeiro modelo de conduta proibida, não apenas pura imagem formal, diretiva. O conceito de tipo legal deve, pois, tanto quanto possível, com os recursos da hermenêutica, coin­ cidir com o conceito de tipo de injusto.

Com isso, o tipo legal passa a desempenhar, ao lado da “fun­ ção de garantia”, autêntica função seletiva, decidindo, em primeira mão, sobre:

a) o que é crime;

b) o que não é crime.

Na primeira hipótese tem-se o juízo de tipicidade que, confor­ me vimos, pode não ser decisivo, a menos que se pretenda conceber um tipo total de injusto, ou aceitar a teoria dos elementos negativos do tipo, o que representaria inegável retrocesso em relação à evo­ lução do conceito dogmático de crime, operada a partir do início do século, dificultando a aplicação do direito. Na segunda hipó­ tese, tem-se o juízo de atipicidade que, este sim, é definitivo, pres­ cindindo de qualquer outra valoração na órbita penal.

Para melhor compreensão do que foi dito, consideremos dois exemplos bastante simples: 1.°) Tício é autor de lesões corporais em Caio. Se pudermos afirmar que a conduta de Tício realiza o tipo legal do art. 129, caput, do Código Penal, isto é, que Tício dolosamente causou lesões leves em Caio, proferimos um juízo de formal tipicidade. Mas isso é ainda insuficiente para que se possa saber se Tício realmente cometeu um verdadeiro crime, pois, para tanto, torna-se necessário prosseguir em nossa apreciação da con­ duta típica em exame para submetê-la a outros dois juízos: o de ilicitude e o de culpabilidade. 2.°) Suponhamos, todavia, que al­ guém seja acusado de peculato, por apropriar-se temporariamente de máquina de escrever da repartição em que trabalha, devolvendo-a espontaneamente após algum tempo de uso. Como inexiste em nos­ sa legislação previsão para o denominado peculato de uso, podemos emitir a respeito dessa conduta o juízo de atipicidade, que será único e decisivo para encerramento do caso na esfera penal.

129. O que foi dito, por ser óbvio, pode parecer desprovido de importância. A grande e imprevista significação de observações tão óbvias surge, porém, dentro de uma concepção material do tipo, onde o juízo de atipicidade adquire proporções verdadeiramente inu­ sitadas. é que, se considerarmos o tipo não como simples modelo orientador, ou diretivo, mas como portador de sentido, ou seja, como expressão de danosidade social e de periculosidade social da con­ duta descrita19, ampliar-se-á consideravelmente esse poder de de­ cisão a nível do juízo de atipicidade, fato que conduz a efeitos prá­ ticos tão evidentes que quase não precisariam ser demonstrados. Não será demasiado, contudo, salientar que, se o fenômeno da sub­

sunção ( = sotoposição de uma conduta real a um tipo legal) es­

tiver subordinado a uma concepção material do tipo, não bastará, para a afirmação da tipicidade, a mera possibilidade de justaposição, ou de coincidência formal, entre o comportamento da vida real e o tipo legal. Será preciso algo mais, conforme tivemos oportunidade de salientar em outro trabalho: “Na construção originária de Be- ling (1906), o tipo tinha uma significação puramente formal, me­ ramente seletiva, não implicando, ainda, um juízo de valor sobre o comportamento que apresentasse suas características. Moderna­ mente, porém, procura-se atribuir ao tipo, além desse sentido formal,

19. Sauer, Derecho penal, cit., p. 111; nosso O erro, cit., p. 45 e s.

um sentido material. Assim, a conduta, para ser crime, precisa ser

típica, precisa ajustar-se formalmente a um tipo legal de delito (nullum crimen sine lege). Não obstante, não se pode falar ainda

em tipicidade, sem que a conduta seja, a um só tempo, material­ mente lesiva a bens jurídicos, ou ética e socialmente reprovável” 20 Isso nos leva, ecleticamente, a ter que adotar dois importantes princípios modernos de direito penal — o da adequação social e o da insignificância, a seguir examinados.

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