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149. Há, porém, outra corrente de pensamento que considera a distinção anteriormente examinada perfeitamente dispensável. E, a nosso ver, com razão. Um comportamento humano que se ponha em relação de antagonismo com a ordem jurídica não pode deixar de lesar ou de expor a perigo de lesão os bens jurídicos tutelados por essa mesma ordem jurídica. Isso leva à conclusão de que a ilicitude só pode ser uma só, ou seja, aquela que se quer denominar “material”.

Pensar-se em uma ilicitude puramente formal (desobediência à norma) e em outra material (lesão ao bem jurídico tutelado por essa mesma norma) só teria sentido se a primeira subsistisse sem a segunda. Embora não se possa negar, conforme observa Jiménez de A sú a9, essa possibilidade no plano do dualismo entre direito natural e direito positivo, o certo é que o conceito de ilicitude, ainda que não se confunda com a mera inobservância de um certo preceito legal — o que seria anacrônico positivismo jurídico — não pode deixar de ser considerado dentro dos limites de um de­ terminado ordenamento jurídico.

Correta, pois, a afirmação de Bettiol de que a contraposição dos conceitos em exame — antijuridicidade formal e material — não tem razão de ser mantida viva, “porque só é antijurídico aquele

7. Léhrbuch, cit., p. 176- 8. Léhrbuch, cit., p. 176-7. 9. La ley y el delito, p. 278.

fato que possa ser reputado lesivo a um bem jurídico. Fora disso, a antijuridicidade não existe” 10.

150. Assim, em nossa definição, ilicitude é a relação de an­ tagonismo que se estabelece entre uma conduta humana voluntária e o ordenamento jurídico, de modo a causar lesão ou expor a pe­ rigo de lesão um bem jurídico tutelado 11.

Dentro dessa concepção, a ilicitude só poderá referir-se à ação humana. Conseqüentemente, a contrariedade ao direito — essência do conceito em exame — se caracterizará fundamentalmente por dois pressupostos, a saber: primeiro, a existência de uma conduta voluntária na origem, positiva ou negativa (ação ou omissão), em antagonismo com o comando normativo (fazer o que está vedado ou não fazer o que está determinado); segundo, a existência conco­ mitante de possíveis ou reais conseqüências danosas, sobre o meio social, dessa mesma conduta (lesão real ou potencial ao bem ju­ rídico tutelado)32.

151. O primeiro pressuposto exclui da área do juízo de ili­ citude os fenômenos puramente causais, inevitáveis, ocorridos sem qualquer interferência da vontade humana, ou seja, o puro resultado físico. Isso quer dizer que somente as condutas dolosas ou, no mínimo, as culposas, nas quais a vontade está presente (nas pri­ meiras a vontade vai até o resultado típico, nas segundas a vontade só alcança até a causa desse resultado), serão passíveis de se submeterem ao juízo de ilicitude. Conseqüência desta colocação, dentro de uma visão finalista do tipo, que nele inclui o dolo e a negligência, é a afirmação de que a ilicitude do delito será necessa­ riamente e sempre uma ilicitude típica. O tipo, por sua vez, conterá um juízo de ilicitude condicionado. O injusto, a ação típica e ilí­ cita. O crime será, conclusivamente, um injusto culpável ( = ação típica, ilícita e culpável).

O segundo pressuposto — a exigência de lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico tutelado — revela o conteúdo material da ilicitude que deixa de ser um conceito puramente formal, ou seja, a mera infração de um dever. Não haverá, pois, duas ilici- tudes, uma formal e outra material, mas apenas uma — a que se

10. Diritto penale, cit., p. 292.

11. Ilicitude penal, cit., p. 8.

diz material. As conseqüências de ordem prática serão enormes. Em primeiro lugar, dentro desta concepção material, permite-se a construção de causas supralegais de justificação, ao lado das causas legais. Com isso, dar-se-á maior dinamismo ao direito penal que, a nível dogmático, procederá, sempre que necessário, à despenali- zação dos fatos que, diante de sensíveis mutações sociais, perderam o caráter lesivo ou a reprovabilidade ético-social. Assim é que, por exemplo, a esterilização consentida do homem ou da mulher já poderá não ser um ilícito penal, pois a ilicitude desse fato estará excluída pelo consentimento do ofendido. Certas lesões cometidas durante práticas esportivas não constituirão um injusto penal, pela observância de certas regras e de sua aceitação generalizada, causa excludente da tipicidade. As lesões insignificantes, inexpressivas, ficarão igualmente excluídas do tipo de injusto, porque, realmente,

de minimis non curat pretor. E desse estreito intercâmbio entre o

tipo e a ilicitude, no interior do conceito de injusto, que os unifica, surgirá, seguramente, um renovado direito penal.

152. Por fim, a ilicitude, na área penal, não se limitará à

ilicitude típica, ou seja, à ilicitude do delito, esta sempre e necessa­

riamente típica. Um exemplo de ilicitude atípica pode ser encon­ trado na exigência da ilicitude da agressão ( “agressão injusta” significa “agressão ilícita” ) na legítima defesa. A agressão que autoriza a reação defensiva, na legítima defesa, não precisa ser um fato previsto como crime, isto é, não precisa ser um ilícito penal, mas deverá ser no mínimo um ato ilícito, em sentido amplo, por inexistir legítima defesa contra atos lícitos. Essa constatação, que nos parece óbvia, revela-nos que a jlicitude possui mais de uma função no direito penal: ora atua como elemento geral e estrutural de todo delito, com função delimitadora do ilícito penal; ora ca­ racteriza o ato ilícito, em sentido amplo, penetrando na esfera penal para aí produzir efeitos distintos e atuar como fator de identifi­ cação daquelas lesões a bens jurídicos que podem ser legitimamente repelidas pela reação defensiva e daquelas outras que estamos obri­ gados a suportar, contra as quais nada podemos fazer. Essa di­ versidade de funções conferida pelo legislador ao conceito de ilici­ tude foi enfatizada, na área do direito civil, por Karl L arenz13. Não vemos como negá-la, igualmente, no direito penal.

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