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A ECOLOGIA DA ESCOLA MULTI/INTERCULTURAL

1 – A ESCOLA PRIMÁRIA PORTUGUESA

1.1. Características do Ensino Primário

As principais características que vão, de alguma forma, ser explanadas aqui são as de carácter curricular e pedagógico e também organizacional.

1.1.1. Curriculares e Pedagógicas

Desmontando um pouco o conceito de ensino primário atrás referido, este, em Portugal, tem a duração de quatro anos e inicia-se aos seis anos de idade, onde a componente curricular continua a usufruir dum grande espaço educativo sendo, explicitamente, o rosto de todo o processo ensino-aprendizagem, uma vez que a existência do programa nacional estandardizado, tacitamente, se impõe na prática dos professores, constatando-se o «método simultâneo do século XVII ainda generalizado nas escolas e que as tem transformado em desertos culturais de vida inautêntica» (Niza, 2005: 22).

Neste início do século XXI, a triologia “aprender a ler, escrever e contar” como função basilar do ensino primário, teoricamente começa a ser abandonada, uma vez que a escola (e o ensino) dos dias de hoje se pressupõe aberta e flexível, onde todo o processo ensino- aprendizagem é orientado pelo professor mas centrado e partindo da criança. Todo o processo educativo visa um desenvolvimento gradual das aprendizagens, invocando a inter-relação e integração das diferentes áreas, assumindo um carácter globalizador, integrador, interdisciplinar e transversal, princípios que se ajustam à educação multi/intercultural esperada numa escola democrática que se supõe resistir a «processos homogeneizantes» (Stoer e Cortesão, 1999: 29).

É nesta argumentação que se defende a escola primária pós-moderna, igualmente com a mesma função de ensinar a ler, escrever e contar, até porque nunca deixou de o fazer, mas compreendida, esta finalidade, duma forma mais lata e envolvendo diversas competências esperadas, quer pelo mercado de trabalho, quer pelas exigências societais resultantes da globalização, como é o caso da interculturalidade, uma vez que esta emergência social, «para todos os efeitos, é uma realização da globalização» (Id., Ib.: 82). Como reforça Sarmento, essa

finalidade de ensinar a ler, escrever e contar «carece de actualidade e de sentido. E carece-o duplamente» (1998: 45), primeiro por ser essa a finalidade que instituiu ao ensino primário e continuar a ser um dos seus principais objectivos mas também por serem as ferramentas essenciais para a aquisição de todas as outras aprendizagens necessárias ao exercício da cidadania e da apropriação de capacidades de literacia, onde se exigem, entre os diversos conhecimentos básicos, conhecimentos para a manipulação das novas tecnologias; a alfabetização informática é imprescindível numa sociedade cada vez mais industrializada, mediatizada e urbanizada, logo, «não é suficiente “ensinar a ler, escrever e contar”; importa que essas aprendizagens signifiquem para os seus utentes, isto é, lhe permitam interpretar o mundo, responder às solicitações dele, construir criticamente o seu próprio caminho, realizar criativamente o seu percurso como pessoas e como cidadãos. É afinal, esta outra finalidade da escola primária – a de dar significado ao ler, escrever e contar, para as crianças, no presente e no futuro» (Sarmento, 1998: 45).

Para operacionalizar o currículo, no que tem a ver com questões pedagógicas, o ensino primário obedece a uma organização diferenciada dos ciclos seguintes, na medida em que todo o processo ensino-aprendizagem é exercido em completa monodocência ou monodocência apoiada, sendo o mais frequente, o apoio aos casos com necessidades educativas especiais. Mesmo assim, o professor do ensino regular tem sobre si toda a responsabilidade relativa a todo o grupo de crianças, e a «todos os processos educativos dos alunos, sejam eles de carácter curricular, pedagógico, social, moral, etc.» (Formosinho, 1998: 13).

Os factores tempo e espaço também auferem de alguma atenção, porque o tempo lectivo de funcionamento do ensino primário está compartimentado sempre no mesmo horário e com o mesmo número de horas diárias. No entanto, o professor tem toda a autonomia para, em cada dia e dentro desse tempo lectivo, construir o seu plano pedagógico e geri-lo de acordo com os interesses das crianças e as suas intenções ou propostas curriculares e pedagógicas, recorrendo constantemente à flexibilização dos tempos lectivos destinados a cada área, cada professor faz uma «gestão integradora do espaço e do tempo escolares» (Id., Ib.) podendo esta transformar-se numa gestão multicultural.

Quanto ao espaço, salvo escassas actividades, todo o processo ensino-aprendizagem se desenvolve dentro da sala de aula que é a mesma desde o início até ao fim do ano lectivo.

Outro aspecto relevante do ensino primário é o carácter das práticas pedagógicas, pois como estas se exercem com crianças muito pequenas, dos 6 aos 9/10 anos de idade, elas transformam-se em relações muito pessoais e personalizadas entre professor/alunos e vice- versa, rapidamente se torna evidente uma certa interdependência entre estes actores,

principalmente, porque o docentocentrismo está em decadência e a criança torna-se na principal “fonte” do desenvolvimento de todos as competências esperadas do ensino primário e do programa pré-estabelecido.

Os professores deste nível de ensino assumem-se distintos dos professores dos ciclos seguintes, por serem docentes de aprendizagens e competências globalizadoras, integradoras e de carácter abrangente, aprendizagens essas que são trespassadas continuamente por aspectos curriculares e pedagógicos, significando formação integral. Todo este processo se desenrola de forma particularizada e diferenciada, respeitando a pluralidade e individualidade das crianças que compõem um mesmo grupo de trabalho, «é a oscilação entre a promoção de um desenvolvimento cognitivo para todos na base de competências adquiridas e a possibilidade de particularizar as diferenças no sentido de promover o sucesso de cada um dos alunos» (Stoer e Cortesão, 1999: 83).

Como cada turma do ensino primário tem um único professor, pelo menos durante um ano lectivo, esse docente sente-se duplamente responsabilizado, em primeiro lugar, por ser o titular de tudo o que é desenvolvido e realizado com a sua turma, de todas as aprendizagens propostas e conseguidas, porque a turma “lhe pertence” completa e integralmente desde o início até ao fim do ano lectivo, o professor primário «tem a gestão integral do currículo e de boa parte da organização pedagógica do tempo escolar, do espaço escolar, da relação pedagógica, da disciplina na sala de aula, dos intervalos e dos recreios, das refeições e, até por vezes, dos tempos livres» (Formosinho, 1998: 14), em segundo lugar, por dele depender todo desenvolvimento, formação social e psicológica de cada criança de forma harmoniosa, impõe- se-lhe uma grande responsabilidade «pelos aspectos do desenvolvimento global da criança, ao nível afectivo, ao nível emocional, ao nível social e ao nível moral» (Id., Ib.: 14). Este quotidiano escolar gera uma grande partilha entre alunos e professor que ultrapassa a esfera pedagógica para a afectiva, transformando-se esta proximidade afectiva e emocional num forte contributo para aproximar os professores dos pais e estes da escola e da vida académica dos filhos, contribuindo também para o entrusamento da comunidade envolvente.

1.1.2. Caracterização Organizacional

O ensino primário, na sua génese, só necessitava de um espaço físico, sem exigência de condições que o caracterizassem como uma escola ou a sua adequação ao grupo que ia receber, passando imediatamente a considerar-se uma sala de aula, onde haveria um professor e um

grupo de alunos. Nesse espaço era colocado um quadro preto e giz, um estrado para sobrelevar a pessoa do professor e as crianças a ouvir.

Mais tarde surge o papel e o lápis com os livros escolares de entremeio. O investimento neste nível de ensino resumia-se aos gastos com o pessoal (professores), pois o material de apoio era muito reduzido e a prática educativa sobrevivia às custas da imaginação do professor. As salas eram lugares impessoais, frios e perfeitamente inadaptados ao espírito criativo e dinâmico dos que as preenchiam, aliás as crianças eram o único brilho que ali resplandecia.

Esta realidade alterou-se um pouco, essencialmente nos meios urbanos. São principalmente estes factores que constrangem e dificultam a prática educativa, aliados à ausência de equipamento e material didáctico, pois «os edifícios da escola primária, tradicionalmente, reduzem-se à(s) sala(s) de aula(s), ao recreio, só parcialmente coberto, e às casas de banho» (Sarmento, 1998: 42).

A questão da contínua mobilidade dos docente é um eterno problema que as escolas primárias enfrentam há muitos anos, situação essa, que subverte, de certa maneira, o papel e função da escola que é a continuidade progressiva e gradual da aquisição de competências sociais, académicas e relacionais, por parte das crianças, dificultando ainda «o desenvolvimento de projectos educativos, a concretização de dinâmicas pedagógicas e de inovação e a criação e prossecução de dinâmicas de formação dos professores» (Formosinho, 1998: 29).

O ensino primário mantém, na sua maioria, uma tipologia de pedagogia uniforme (tradicional), em que se continua a verificar «uma ausência de modelos curriculares, de alternativas pedagógicas estabelecidas e, assim, se constata uma aparente uniformidade» (Id., Ib.: 31), o que revela pouca preocupação com a individualização do ensino de acordo com as características ou ritmo de aprendizagem de cada criança, ou das suas diferenças sociais. Convém salientar que há escolas primárias onde a inovação pedagógica é evidente, caracterizadas por vontades de mudança e onde o reconhecimento da multiculturalidade é um facto e a multi/interculturalidade já começa a ser prática educativa.