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A ECOLOGIA DA ESCOLA MULTI/INTERCULTURAL

1 – A ESCOLA PRIMÁRIA PORTUGUESA

1.5. Currículo Uniforme versus Currículo Crítico

O currículo como criação da modernidade, caracteriza-se pelo seu carácter academicista, definido por um «conjunto de saberes académicos transmitidos pela Escola, circunscrevendo-se, assim, ao conjunto de matérias a ensinar e à estrutura organizativa dessa transmissão» (Leite, 2002: 56), sendo nessa decorrência que o professor detém o papel principal da cena educativa assumindo a função total de transmitir o currículo impregnado de crenças e valores nacionais, prescrevendo toda a herança cultural dum país, como afirmam Stoer e Cortesão (1999), quando se referem à «pesada herança da Portugalidade».

No contexto da modernidade, o currículo caracteriza-se, essencialmente, pelo predomínio do ensino em detrimento da aprendizagem, funcionando como um plano de instrução, em que se esperava que as crianças reproduzissem aprendizagens. É neste sentido que se verifica um total imperialismo da escola meritocrática onde o «currículo etnocêntrico» (Cardoso, 1996) se impõe de forma inflexível e facilitador do daltonismo cultural, da homogeneidade social, da indiferença à multiculturalidade e à multirreferencialidade, provocando a uniformidade, tipo «currículo pronto a vestir de tamanho único» (Formosinho, 1987: 41), onde se privilegia a repetição e a memorização. A escola é tida como um lugar proibitivo de atender cada aluno como um ser único e específico relativamente à sua pessoalidade, um espaço onde a interacção entre diferentes é imposta e acontece como de todos iguais se trate.

Este formato pedagógico pode denominar-se de currículo uniforme, por ser construído para ser implementado de forma igualizadora e não equitativa, prescrito para todos mas com diferenciação de oportunidades. Um currículo que se mantém omisso, passivo, indiferente à diferenciação e às particularidades sociais de cada aluno, portanto promotor da normalização.

Com a expansão da globalização depara-se com uma sociedade heterogénea e plural, formada por diversos grupos que interagem com conflitos específicos, quer na sociedade em geral como na escolar em particular, verifica-se que a prática do currículo uniforme anula a diversidade e não responde ao grande desafio da escola multicultural, pois «a pouco e pouco foi-se evidenciando que o facto do sistema se limitar a oferecer a um público de alunos crescentemente heterogéneo uma igualdade de oportunidade de acesso, acompanhada de uma semelhança de tratamento dentro da escola e de idênticas propostas de ensino/aprendizagem, significa, pelo contrário, muito provavelmente, a obtenção de uma desigualdade ao nível da distribuição de sucessos/insucessos» (Cortesão, 2000: 43).

Perante esta realidade, o currículo nacional é alterado na sua substância e projecto educativo, sofrendo alterações com o Decreto-Lei 6/2002 por não ser consentâneo com as pretensões educativas e sociais da pós-modernidade, insurgindo-se este contra o ensino para proporcionar a aprendizagem.

Repensa-se a função da escola e do professor e percebe-se a necessidade de mudanças, quer nas atitudes como nas práticas para a construção duma escola verdadeiramente democrática, onde se pensa a construção e o desenvolvimento do currículo a partir da correlação permanente entre teoria e prática, sendo nesta conjugação que o currículo estandardizado se flexibiliza coadunando-se à multiculturalidade, ou seja, obedecendo a um «modelo curricular de tronco comum definido a nível nacional com variantes ou opções definidas a nível regional ou local» (Fernandes, 1997: 11).

Deseja-se uma escola que valorize os alunos como actores aprendentes, banindo o deposito de conhecimentos para proporcionar aprendizagens com significado, dando-se espaço ao currículo oculto. Este é de grande relevância por ajudar na recontextualização e aí residir o âmago dos interesses das crianças e da oportunidade da diferenciação ganhar voz e assim promover a interculturalidade, pois são frequentes «as queixas de muitos professores sobre a extensão dos programas e a não presença de conteúdos e de situações significativas para muitas crianças e jovens presentes actualmente nas escolas, as queixas que expressam o desinteresse de muitos alunos por aquilo que os professores lhes têm de ensinar» (Leite, 2002b: 14). A existência do currículo oculto traz à prática pedagógica o imprevisto mas envolve a operacionalização do currículo estabelecido de sinergias construtivas de aprendizagens efectivas através das realidades de vida envolvente à comunidade educativa, em que teoria e prática se encorporam numa relação dialógica pela sua visão integradora, ou seja, entre o pré-definido (o currículo nacional) e o imprevisto (o currículo oculto), «entre o currículo vivido e o currículo expresso nos documentos que o prescrevem» (Leite, 2002a: 67). É esta interactividade que o

currículo (o estabelecido mais o oculto) se ajusta à multiculturalidade na óptica que «pressupõe uma acção educativa que integra a imprevisibilidade inerente às diversas situações e desenvolve, por um lado, um esforço contínuo para conhecer a diferença, reconhecê-la e valorizá-la e, por outro lado, encara esse projecto não como um problema mas sim como um meio de enriquecimento de todos e de cada um» (Id., Ib.: 89).

É nesta argumentação que se define um currículo crítico, na medida em que pretende compreender a multiculturalidade, abordá-la e integrá-la ao executar o currículo nacional, na tentativa de «estimular um autoconhecimento reflexivo, que inclui também o conhecimento do seu grupo de pertença, uma valorização, um respeito pelas suas próprias raízes culturais, ao mesmo tempo que, aprendizagens curricularmente consideradas como importantes vão sendo adquiridas com mais facilidade e sobretudo com mais prazer» (Stoer e Cortesão, 1999: 61).

Com o Currículo Nacional actual, é abandonada a terminologia dos “objectivos” para adoptar as “competências”, o que envolve globalidade e integralidade, na pretensão que seja desenvolvido transversal e interdisciplinarmente, por forma a que as aprendizagens curriculares aconteçam e sejam adquiridas em correlação umas com outras, onde se inclui a educação multi/intercultural, mas com sentido e competência para serem aplicadas. Com esta reorganização curricular, são abertas mais possibilidades à multiculturalidade, embora ainda de forma implícita, mas facilitadora, uma vez que o currículo é uma «situação relacional e dialógica entre fases orientadas para a construção, desconstrução e (re)construção dos projectos curriculares e dos processos de desenvolvimento e ... também pode vir a constituir um dispositivo de formação gerador de atitudes reflexivas e críticas das situações sociais» (Leite, 2002b: 52).

Há que referir que um currículo não pode ser tomado como uma teoria construída e acabada, cabe aos professores desconstruir esse currículo estandardizado, adaptá-lo à comunidade que serve a escola e que vive com ela através das suas crianças e, principalmente, a elas que são a vida da escola. É no recontextualizar dos modos de vida da comunidade e das crianças na escola que se flexibiliza o currículo tirando disso partido educativo. Actualmente, as novas áreas curriculares vêm coadjuvar na construção da escola numa perspectiva multicultural e a prática intercultural na sala de aula.

A mudança para modelos pedagógicos mais inovadores como a Metodologia de Projecto (Dewey, 2002; Abrantes, et al., 2002) poderá facilitar o atendimento da multiculturalidade na sala de aula, por um lado, porque o quotidiano da sociedade pós-moderna é pensada e organizada em função de projectos, de maior ou menor duração, realidade com que as crianças estão familiarizadas fora da escola, por isso sem dificuldade em viver essa recontextualização

na sala de aula, e por outro, é que tal como um projecto, o currículo vai-se construindo conforme se vai desenvolvendo, a partir duma participação colectiva e com produção de saberes e competências.

É neste encarar do desenvolvimento curricular como um projecto, por isso imperfeito e inacabado, que se recorda o conceito da «hermenêutica diatópica» descrito por Santos (1997) enquanto procedimento dialógico e dinâmico entre diferentes saberes (escola/comunidade) e por isso diferentes culturas, na medida em que se supõe a coexistência entre eles sem esperar uma completude, até porque essa é inatingível, mas sim «ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenvolve, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro noutra» (Santos, 1997: 18). É nesta postura, de um pé na teoria e outro na prática, que o currículo oculto se operacionaliza, por ter uma visão integrada de valores culturais e sociais, que produz riqueza multidimensional e capaz de apropriar as crianças de um «bilinguismo cultural» (Stoer e Cortesão, 1999). Será a partir desta posição que cada criança aprende a ser, a saber-fazer e a saber-estar, tornando-se competente como cidadão activo e participativo na sociedade onde se insere, capaz de «se compreender a si mesmo e ao outro, através de um melhor conhecimento do mundo» (Delors, 1996: 41) e capaz de atitudes emancipatórias e de intervenção social.

Em síntese, o currículo crítico define-se como um «conjunto de processos de selecção, organização, construção e reconstrução culturais (no seu sentido amplo), ou seja, como tudo o que existe enquanto plano de prescrição e tudo o que ocorre num dado contexto e numa situação real de educação escolar ... nas relações que se estabelecem entre diferentes actores, experiências e saberes, nos valores e nas crenças dos protagonistas da acção, nos papéis atribuídos aos diferentes sujeitos e nos que por eles são assumidos nas diversas dinâmicas, bem como na sua dimensão de intervenção e reconstrução social» (Leite, 2002b: 89-90).

Neste contexto, a «morte do professor» (Lyotard, 1989) carece de sentido, pois sem a intervenção do professor multicultural, o currículo nunca deixaria de ser uniforme para se posicionar criticamente face à diversidade da população escolar, pois o currículo multicultural «caracteriza-se mais pelas atitudes do professor face ao currículo oficial e ao ambiente escolar do que pelos conteúdos. A educação multicultural visa, fundamentalmente, valores e atitudes essenciais para a realização da igualdade de oportunidades, do pluralismo cultural e do anti- racismo. Não decorre, simplesmente, da adição de conteúdos, implica a convicção e o amadurecimento de atitudes por parte do professor» (Cardoso, 1996: 44).

A (RE)CONSTRUÇÃO DO AMBIENTE EDUCATIVO DAS SALAS