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Os Documentos Oficiais na Implementação da Multi/interculturalidade

A ECOLOGIA DA ESCOLA MULTI/INTERCULTURAL

1 – A ESCOLA PRIMÁRIA PORTUGUESA

1.4. Os Documentos Oficiais na Implementação da Multi/interculturalidade

As escolas primárias ainda se encontram «fortemente cercadas e domesticadas por um tal conjunto de normas e directivas referentes a currículos, organização pedagógica, avaliação e gestão de recursos em que a autonomia que a administração lhe reconhece é mais ilusória que real» (Fernandes, 1997: 7), e é perante esta realidade que os professores têm de adaptar todo o acto educativo às características dos alunos, para promover uma continuidade da vida das crianças no seio da sua comunidade, na vida da escola, construindo-se pontes através da

recontextualização. Isto converge para o reconhecimento da multiculturalidade, para discernir diferenças e valorizar a heterogeneidade, transformando essas diferenças em riqueza educativa. Para essa prática multi/intercultural contribuem vários factores, entre eles, alguns documentos, de elaboração obrigatória e impostos pelo Ministério de Educação, uns a construir pela comunidade educativa e outros pelo professor, relativamente à sua turma.

Para que a escola seja realmente para todos e para que todos tenham as mesmas oportunidades de sucesso escolar, as especificidades sociais e modos de vida devem ser contextualizados na escola e sala de aula, sendo nesse sentido que o professor multicultural lança mão de alguns documentos legais para operacionalizar a educação multi/intercultural.

A escola primária, actualmente, rege-se por documentos, em que o seu cumprimento é de carácter obrigatório, como sendo o Currículo Nacional do Ensino Básico (Decreto-Lei 6/2001), construído pelo Ministério de Educação, o Projecto Educativo (Decreto-Lei 286/89) e ainda o Projecto Curricular de Escola e de Turma. Os três últimos são elaborados pelos professores, conjuntamente, em cada escola, como vem referido no Currículo Nacional do Ensino Básico, quando este se afirma de «referência nacional para o trabalho de formulação e desenvolvimento dos projectos curriculares de escola e de turma a realizar pelos professores. Situa-se, claramente, na perspectiva de contribuir para a construção de uma concepção de currículo, mais aberta e abrangente, associada à valorização de práticas de gestão curricular mais flexíveis e adequadas a cada contexto» (Abrantes, et al. 2001: 3). É sustentados nesta proposta que os professores se deparam com alguma abertura, por parte do Estado, o que proporciona alguma autonomia à escola, possibilitando-lhe algum poder para atender a diversidade e implementar um trabalho intercultural, uma vez que remete para a especificidade do contexto onde se insere e da sua população escolar, sendo a partir desta adequação, «realizada através da concepção e desenvolvimento de um projecto curricular de escola, que se caracteriza por projectos curriculares de turma, ... e deverá ter como objectivo partir de situações reais para não deixar os “alunos encerrados no seu universo de referência”» (Leite, 2002a: 14).

Convém acrescentar que o Projecto Curricular de Turma é um documento de carácter peculiar, por dizer respeito só a uma turma e a cada elemento desse grupo de crianças, ao seu contexto de vida familiar e comunitário, ou seja, é o desenho descritivo do perfil da turma e de toda a sua particularidade e diferenciação. Este documento é de carácter inacabado, em permanente construção, sofrendo assim, alterações gerais ou específicas relativamente ao seu processamento e desenvolvimento.

Nesta possibilidade de adaptar todo o acto educativo à heterogeneidade que compõe uma turma do ensino primário, indo de encontro às diferenças de cada um, encontram-se as novas áreas não curriculares, que surgem também com o Decreto-Lei 6/2000, que embora não sejam curriculares, são de carácter obrigatório para todos os alunos. São planeadas e executadas no âmbito do Projecto Curricular de Turma, a partir das propostas dos alunos e da orientação activa do professor. Estas áreas surgem em função da reorganização curricular na perspectiva da sua flexibilização, com o objectivo de «ajudar a que a autonomia das escolas na esfera curricular assuma uma expressão mais significativa, contribuindo para que a construção local do currículo responda a necessidades, aspirações e interesses que não podem ser contemplados em determinações centrais, elaborados a nível nacional. Além disso, considerando a escola inserida numa comunidade, convidam ao estabelecimento de parcerias relevantes num contexto local» (Abrantes, et al., 2002: 12).

Será na transversalidade destas novas áreas, às áreas curriculares, que se abre o campo de acção e de intervenção do professor multicultural, cabendo-lhe a ele desenhar o seu roteiro de trabalho dentro da sala de aula, com os seus próprios alunos e com o intuito de debater e analisar questões problemáticas relevantes. Não se trata, decididamente, «de seguir um programa uniforme, independente das vivências individuais e colectivas daqueles alunos concretos» (Id., Ib.: 14). Aqui se abrem novas e mais possibilidades de trabalhar a Educação Multi/intercultural, por parte do Estado, que embora não surja declaradamente expressa, induz à sua prática. Para a sua operacionalização, o próprio currículo nacional sugestiona aos professores mudanças mais tradicionais de práticas pedagógicas, sugerindo uma «lógica de trabalho de projecto» (Abrantes, et al., 2002: 13).

Como o modelo tradicional do saber ler, escrever e contar ainda está muito enraizado nos professores, principalmente nos que se formaram dentro do paradigma da modernidade, é possível que sintam alguma dificuldade para executar todos estes documentos convenientemente. Poder-se-ão insurgir contra essa dispersão documental demonstrando até, algum «sentimento de culpa» (Hargreaves, 1998), por despenderem de muito tempo para executar esses documentos em detrimento da parte curricular, o que pode conduzir à sua construção mas há sua não operacionalização.

É também na gestão do tempo e da execução dos normativos que os professores precisam de formação para mudar mentalidades e adoptar modelos pedagógicos abertos e flexíveis por forma a que o currículo nacional deixe de ser o enfoque do ensino primário mas encarado e assumido como um conjunto de ferramentas essenciais para aquilo que as crianças gostam de fazer verdadeiramente, que é experimentar e pesquisar. Será a partir dos seus

interesses, vontades e propostas que elas começam, tacitamente, a descobrir e a utilizar “obrigatoriamente” as ferramentas para o fazer como sejam, ler, escrever e contar.

É a partir da mudança de processos tradicionais de ensino-aprendizagem, que os professores deixarão de sentir a “pressão” do cumprimento do currículo nacional, dos vários documentos obrigatórios e da escassez de tempo (ou será ingerência do tempo?) (Hargreaves, 1998), isto porque o fazem em paralelo e não em cruzamento. Têm de adquirir competências para articular e cruzar esses documentos com a parte curricular para trabalharem efectivamente a multi/interculturalidade.