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Promoção da Interculturalidade através de Dispositivos Pedagógicos

A (RE)CONSTRUÇÃO DO AMBIENTE EDUCATIVO DAS SALAS DA ESCOLA PRIMÁRIA

2. A ESCOLA PÓS-MODERNA COMO ESCOLA ECOLÓGICA

2.3. Promoção da Interculturalidade através de Dispositivos Pedagógicos

É atentando nas possibilidades da pós-modernidade que as escolas e os professores tentam ultrapassar habitus homogeneizadores e políticas educativas uniformizantes. É através da construção do professor consciente das diferenças sociais, que as reconhece e promove, que ele próprio recorre à construção de dispositivos pedagógicos dentro da sala de aula, e de acordo com as diferenças aí em coexistência.

No dizer de Bernstein, a educação desempenha uma função de «reprodução das desigualdades de classe social, género, raça, região e religião» (1998: 55), sendo esta desigualdade reproduzida, principalmente, pelo discurso pedagógico utilizado pelos professores relativamente aos seus alunos, uma vez que é pela pessoa do professor, autorizada pelo sistema educativo, que são transmitidos conhecimentos definidos pelo mesmo, tornando-se este discurso, regulador das suas práticas e reprodutor duma identidade nacional que neutraliza as possíveis diferenças sociais, ou seja, por analisar somente aquilo que é dito mas não a forma como é dito. É neste sentido que Bernstein afirma que o discurso pedagógico, na sua substância, constitui um importante dispositivo pedagógico e por isso um dos mais valiosos para a operacionalização da multi/interculturalidade por poder penetrar nas diversas constelações da diversidade através da comunicação, impondo-se aqui a «constituição do transmissor» (Bernstein, 1998: 55), ou melhor, do professor posicionado numa política da diferença, capaz de alterar essa «neutralidade do acto educativo» (Cortesão, 2000: 49).

É nesta argumentação que a construção gradativa do professor multicultural se movimenta entre dois eixos, «um eixo do conhecimento e um eixo pedagógico» (Cortesão e Stoer, 1995: 25), dizendo o primeiro respeito aos alunos e seu contexto de vida (no seu grupo de pertença) e o segundo para os alunos, no sentido em que o professor, a partir da ponte

estabelecida entre o «oficial e o local» (Bernstein, 1998: 55), ou seja, entre a escola e a comunidade, faz a recontextualização e posteriormente a produção de dispositivos pedagógicos, que vão funcionar como recursos e ferramentas multiculturais. Estes emergem a partir do eixo do conhecimento «sobre os alunos e que permite produzir agora para os alunos» (Cortesão, 2000: 47) entrando em operacionalização o eixo pedagógico, por «oferecer aos alunos o domínio de competências curricularmente consideradas relevantes e, simultaneamente, oferecer também a valorização da imagem do seu grupo de origem» (Id., Ib.: 46). Será a partir da ponte estabelecida entre a cultura da escola e a cultura da comunidade e procedendo à recontextualização dos seus modos de vida, através das crianças, que se justifica a construção de dispositivos pedagógicos.

O dispositivo pedagógico é definido por Bernstein como uma «forma especializada de comunicação» (1998: 58) que permite «matizar explicações» (Stoer e Cortesão, 1999: 54). Explicações essas, necessárias para o entendimento entre o código da escola e o código da comunidade envolvente, na medida em que, para que a ponte seja construída com suficiente solidez, deve-o ser em direcção à existência duma comunidade educativa que trabalhe em prol das crianças e dos seus estilos de aprendizagem, relativamente às suas diferenças, uma vez que estas esperam igualdade de oportunidades numa escola que se espera democrática.

As respostas da escola à multiculturalidade não podem ser unilaterais por correr o risco de «esvaziar a cultura local, a cultura da comunidade» (Stoer e Cortesão, 1999: 54), por ser conotada de algum imperialismo, principalmente, pela voz estruturadora do seu discurso que estabelece ordens de poder e ainda, por subverter a sua verdadeira função. É neste aspecto que os dispositivos pedagógicos detêm «possibilidades desafiadoras destes dois processos-espelho de recontextualização: isto é, por um lado, pretendem subverter a subversão, da acção pedagógica na escola, e, por outro, promover a descentração da escola para fazer frente ao imperialismo» (Id., Ib.: 54).

O professor continua a deter o papel principal na função que a escola tem de ensinar e educar na e para a multiculturalidade, a ele cabe o papel de arranjar estratégias para transformar, quer o discurso pedagógico quer o currículo uniforme, que conferem a cultura nacional e preparados para servir o aluno que se caracteriza como «criança portuguesa, branca, de classe média, oriunda de meios urbanos e que professa religião católica» (Cortesão e Stoer, 1995: 24) e promotores da «miopia educativa» (Magalhães, 1998a: 6).

Para uma adequação educativa, o professor dispõe do discurso (entendido como dispositivo pedagógico), que sendo utilizado para a interculturalidade, implica alteridade na reprodução social, como refere Bernstein (1998), pois a comunicação é o primeiro meio de que

se serve a escola para se relacionar com a comunidade, a ela se explicar e se revelar como espaço institucional onde coexistem as suas crianças, onde a diferença é tida como mais um recurso educativo e um complemento curricular, baseada nas relações e interacções entre todos os actores envolvidos e participativos, pois «as ”boas pontes”, que tomam em conta as margens em que se apoiam, terão de valorizar também outras culturas para além da escola, estimulando, simultaneamente, atitudes reflexivas face aos processos globais de educação» (Stoer e Cortesão, 1999: 60). É nesta lógica que o eixo do conhecimento se intrica no pedagógico por valorizar «não só o que é dito mas como é dito» (Leite, 2002b: 107) e também por valorizar a comunicação como dispositivo pedagógico, que não é somente exercida pelo professor mas também, pelos alunos entre si, tornando-se numa «fonte alimentadora da ética democrática e da cooperação no trabalho e na comunicação – uma pedagogia da comunicação autêntica ... promove-se o desenvolvimento humano que radica na interacção comunicativa» (Niza, 2005: 23).

Há trabalhos realizados que dão a conhecer alguns dispositivos pedagógicos, cuja construção tinha como principal objectivo, criar «estratégias de desenvolvimento curricular» (Cortesão, et al., 1995: 25) como seja o recurso aos jogos e brincadeiras, as genealogias (Araújo e Stoer, 1993), as histórias contadas por crianças (Cortesão, 1994) ou ainda, o «Código de Não Discriminação» (Stoer e Cortesão, 1999: 63-71), materiais esses que se podem considerar património pedagógico de interferência multi/intercultural.

Pode-se então concluir que a construção e devida utilização de dispositivos pedagógicos detém grande relevância na diferenciação pedagógica perante a multi/interculturalidade, desenvolvendo-se a dois níveis, ao nível do discurso linguístico (Bernstein, 1998) como recurso contra a reprodução e veículo optimizador da ponte entre a cultura da escola e a cultura da comunidade, no sentido da recontextualização de quotidianos das crianças, vindo a tornar-se num «processo gerador de formação, quer dos alunos, quer dos docentes ... quer uma tomada de consciência da situação de diversidade cultural e social e a aceitação dessa diversidade» (Leite, 2002b: 110) e ao nível dos materiais interculturais construídos, com a intervenção directa das crianças, na sala de aula, pela orientação do professor não daltónico. Assim, o conceito de dispositivos pedagógicos não coincide «com o de material didáctico, uma vez que este, tendo como objectivo fundamental aspectos de ordem instrumental que permitem a aquisição de conhecimentos escolares, pode limitar-se a um instrumento mediador entre o ensino e a aprendizagem ... o dispositivo pedagógico constitui um meio de produzir conhecimento num processo de construção de saberes que envolve a participação efectiva dos diversos agentes

sociais e desloca o discurso recolocando-o de acordo com o princípio de reordenação e de recontextualização» (Id., Ib.: 110).

Sintetizando, os dispositivos pedagógicos «são propostas educativas que visam construir uma “boa ponte” na ligação necessária entre a cultura da escola e a da comunidade envolvente, comunidade essa representada através da presença dos alunos na instituição» (Stoer e Cortesão, 1999: 60) e com o objectivo de conseguir «o domínio por parte de cada aluno e aluna de um “bilinguismo cultural” como estratégia não só de sobrevivência, como de acesso ao poder por parte dos grupos “minoritários” e o usufruto activo de cidadania numa sociedade baseada na economia de mercado» (Id., Ib.: 60).

Assumindo que o discurso pedagógico utilizado pelo professor, na sala de aula, é um dispositivo pedagógico, assim como todos os materiais que possam ser construídos e reconstruídos pelos alunos, também na sala de aula, vêm suscitar nas crianças alteridades multi/interculturais e assim a aquisição dum bilinguismo cultural que vem enriquecer e apetrechar o espaço físico das salas da escola primária e portanto, construir um ambiente educativo intercultural, sendo através da construção dos dispositivos pedagógicos que os alunos realizam um trabalho «que contribui para estimular um autoconhecimento reflexivo, que inclui também o conhecimento do seu grupo de pertença, uma valorização, um respeito pelas suas próprias raízes culturais, ao mesmo tempo que, aprendizagens curricularmente consideradas como importantes vão sendo adquiridas com mais facilidade e sobretudo com mais prazer» (Stoer e Cortesão, 1999: 61). Como a diversidade é inconstante, os dispositivos pedagógicos não podem ser considerados como construções definitivas, eles têm de ser assumidos como pontos de partida que o professor terá de reconstruir e adequar de acordo com o grupo com que trabalha, através do «exercício do espírito crítico e da reflexividade como instrumentos para uma intervenção pedagógica avisada, capaz de desconstruir as subtilezas de que se revestem as relações de poder e dominação» (Ferreira, 2002: 35).