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O ensino de gramática não deve ser visto como um fim em si mesmo, mas como um mecanismo para a mobilização de recursos úteis à implementação de outras competências, como a interativa e a textual.

Vale aqui retomar a abordagem gramatical adotada neste documento. Ainda que se reconheça como legítima a conceituação da gramática como um conjunto de regras a partir das quais uma língua se corporifica, parece conveniente lembrar que há pelo menos três visões para esse conjunto de regras:

• aquelas que são seguidas; • aquelas que podem ser seguidas; • aquelas que devem ser seguidas.

Quando se observa que o falante natural de uma língua obedece minimamente às convenções estabelecidas pelo grupo social de usuários, respeitando os acordos praticados no nível morfológico, sintático e semântico, temos um quadro de gramática internalizada.

Quando se observa que esse mesmo falante pode ou não seguir determinadas convenções lingüísticas sem que, com sua atitude e com as variações adotadas, seja mais ou menos reconhecido como um legítimo usuário dessa língua, temos um quadro de gramática descritiva.

Quando se observa que esse falante sofre discriminação por não seguir as convenções lingüísticas adotadas, que estabelecem na medida do possível o que seria certo ou errado no que diz respeito ao emprego das regras, percebe-se que está sendo julgado segundo um ponto de vista gramatical normativo ou prescritivo.

Tradicionalmente, a escola brasileira vem adotando essa última perspectiva no ensino de Língua Portuguesa, sem se preocupar necessariamente em articular as prescrições típicas dessa abordagem gramatical com as práticas de leitura e produção de textos

orais e escritos. O resultado dessa postura é que a maioria dos alunos não entende o porquê de se apresentarem tantas regras sem que haja uma aplicação prática delas na linguagem que usualmente utiliza.

Alternativamente, do ponto de vista da abordagem gramatical descritiva, pode-se considerar que em nosso país convive uma enorme variedade lingüística, determinada por regiões, idades, lugares sociais, entre outros. Assim, as noções de certo ou errado, tão típicas da abordagem normativa ou prescritiva, cederiam espaço para as noções de adequação ou inadequação em virtude das situações comunicativas de que o falante participa. É papel da escola lidar de forma produtiva com a variedade lingüística de sua clientela, sem perder de vista a valorização da variante lingüística que cada aluno traz consigo para a escola e a importância de se oferecer a esse aluno o acesso à norma padrão – aquela que é prestigiada quando se testam suas habilidades para ingressar no mundo do trabalho, por exemplo.

Procedimentos

E n t re o s p ro c e d i m e n t o s re l a t i v o s a o d e s e n v o l v i m e n t o d a c o m p e t ê n c i a gramatical, convém ressaltar aqueles que dizem respeito à variação lingüística, profundamente relacionados também à competência interativa:

• avaliar a adequação ou inadequação de determinados registros em diferentes situações de uso da língua (modalidades oral e escrita, níveis de registro, dialetos);

• a partir da observação da variação lingüística, compreender os valores sociais nela implicados e, conseqüentemente, o preconceito contra os falares populares em oposição às formas dos grupos socialmente favorecidos; • aplicar os conhecimentos relativos à variação lingüística e às diferenças entre

oralidade e escrita na produção de textos;

• avaliar as diferenças de sentido e de valor em função da presença ou ausência de marcas típicas do processo de mudança histórica da língua num texto dado (arcaísmo, neologismo, polissemia, empréstimo).

Outros procedimentos relativos ao desenvolvimento da competência gramatical, dessa vez mais relacionados à competência textual, e particularmente às noções de coerência e coesão no processamento do texto, são:

• comparar textos de diferentes gêneros quanto ao tratamento temático e aos recursos formais utilizados pelo autor;

• estabelecer relações entre partes de um texto a partir de repetição e substituição de um termo;

• estabelecer relações entre partes de um texto a partir de mecanismos de concordância verbal e nominal;

• estabelecer relação entre a estratégia argumentativa do autor, bem como os recursos coesivos e os operadores argumentativos usados por ele;

• analisar as relações sintático-semânticas em segmentos do texto (gradação, disjunção, explicação ou estabelecimento de relação causal, conclusão, comparação, contraposição, exemplificação, retificação, explicitação).

Língua Portuguesa

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Convém lembrar ainda que a competência textual não pode prescindir do estabelecimento de relações entre os recursos expressivos presentes em um texto e os efeitos de sentido que provocam no leitor. Considerando-se que os recursos expressivos utilizados por um autor provêm das escolhas que opera nos elementos oferecidos pela língua, pode-se propor, como procedimento de leitura intrinsecamente ligado aos mecanismos gramaticais, que se avalie:

• o e f e i t o d e s e n t i d o c o n s e q ü e n t e d o u s o d a p o n t u a ç ã o e x p re s s i v a (interrogação, exclamação, reticências, aspas);

• a propriedade do uso dos recursos lexicais (jogos metafóricos e metonímicos, expressões nominais definidas, hiponímia, hiperonímia, repetição) em função da estratégia argumentativa do autor;

• a propriedade do uso dos recursos sintáticos (paralelismo, enumeração, inversão, intercalação, coordenação, subordinação etc.) na estratégia argumentativa do autor;

• a propriedade do uso de recursos semânticos (relações de oposição ou aproximação, gradação, campo semântico, atenuação, eufemismo, hipérbole, ironia) na estratégia argumentativa do autor.

Outros procedimentos, relacionados à construção da imagem de locutor e de interlocutor, aplicáveis tanto à leitura e produção do texto escrito quanto às situações de interlocução oral, são:

• identificar índices contextuais e situacionais (marcas dialetais, níveis de registro, jargão, gíria) que permitem a construção da imagem de locutor e de interlocutor;

• analisar mudanças na imagem de locutor e de interlocutor em função da substituição de certos índices contextuais e situacionais (marcas dialetais, níveis de registro, jargão, gíria) por outros;

• analisar as implicações sócio-históricas dos índices contextuais e situacionais (marcas dialetais, níveis de registro, jargão, gíria) na construção da imagem de locutor e interlocutor.

Como vimos pelos procedimentos enumerados, o desenvolvimento das três competências não se dá de uma maneira estanque: muito ao contrário, certos procedimentos mobilizam recursos capazes de implementar simultaneamente duas ou três competências.

Avaliação

É importante que as práticas escolares, entre elas a avaliação, sejam coerentes com os procedimentos descritos. Nesse sentido, é recomendável que se amplie a noção de avaliação escolar, revendo a pertinência de se avaliar exclusivamente um momento específico, como o da prova bimestral, em função da necessidade de se avaliar todo o processo de aprendizagem vivido pelos alunos ao longo de uma proposta de trabalho. Os procedimentos apresentados sugerem que se avalie o aluno de diversas maneiras – alternando-se as modalidades, os suportes, os interlocutores –, de forma a constituir um verdadeiro processo de aferição de conhecimentos.

Em Língua Portuguesa, considerando-se o desenvolvimento das competências interativa, textual e gramatical, podem-se propor diversos formatos de avaliação:

• aferição das habilidades dos alunos de produzir um texto oral, em apresentação individual ou em grupo, de acordo com um gênero pré-estabelecido e com o nível de formalidade exigido para a situação enunciativa;

• observação das habilidades de leitura dos alunos, que podem ser medidas tanto por suas intervenções orais na discussão de uma obra literária ou de uma matéria jornalística quanto por seu desempenho escrito quando produzem uma resenha ou um texto crítico.

• abertura para outras formas de representação das obras originalmente lidas a partir de um suporte escrito: leitura dramática, dramatização com bonecos, montagem teatral, pintura, fotografia, entre outras;

• trabalho a partir de situações-problema que mobilizem uma série de conhecimentos relacionados às três competências;

• implementação de centros de interesse e projetos cujos processos ou produtos finais possam ser avaliados;

• abertura para momentos de auto-avaliação, avaliação mútua, avaliação em grupo, de forma a deslocar a tarefa de avaliar como exclusiva do professor.

Diferentemente do que ocorre no ensino tradicional, privilegia-se hoje a avaliação do processo de aprendizagem como um todo, durante seu desenvolvimento. Em função disso, ao propor determinada atividade o professor precisa ter muita clareza sobre suas intencionalidades bem como sobre os critérios que utilizará para avaliar seus resultados.

Na contramão das práticas tradicionais – em que se buscava encontrar os “erros”, mais do que os “acertos” dos alunos –, o professor de Língua Portuguesa deve v a l o r i z a r o s g a n h o s q u e o e s t u d a n t e o b t e v e a o l o n g o d e s e u p ro c e s s o d e aprendizagem, baseando-se nas matrizes de competências e habilidades, que exigem um outro olhar sobre o ensino.