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António Nóvoa lança uma pergunta bastante pertinente sobre a formação de professores e ofício docente, sobretudo considerando-se os novos paradigmas propostos para a educação brasileira:

Como é que cada um se tornou no professor que é hoje? E porquê? De que forma a acção pedagógica é influenciada por características pessoais e pelo percurso de vida profissional de cada professor? As respostas levar-nos-iam longe demais. Mas talvez valha a pena mencionar brevemente os três AAA que sustentam o processo identitário dos professores: A de Adesão, A de Acção, A de Autoconsciência.

A de Adesão, porque ser professor implica sempre a adesão a princípios e valores, a adopção de projectos, um investimento positivo nas potencialidades de crianças e jovens.

A de Acção, porque também aqui, na escolha das melhores maneiras de agir, se jogam decisões do foro profissional e do foro pessoal. Todos sabemos que certas técnicas

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e métodos “colam” melhor com a nossa maneira de ser do que outros. Todos sabemos que o sucesso ou insucesso de certas experiências “marcam” a nossa postura pedagógica, fazendo-nos sentir bem ou mal com esta ou com aquela maneira de trabalhar em sala de aula.

A de Autoconsciência, porque em última análise tudo se decide no processo de reflexão que o professor leva a cabo sobre a sua própria acção. É uma dimensão decisiva da profissão docente, na medida em que a mudança e a inovação pedagógica estão intimamente dependentes desse pensamento reflexivo.

A identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e estar na profissão. Por isso, é mais adequado falar em processo identitário, realçando a mescla dinâmica que caracteriza a maneira como cada um se sente e se diz professor.

A construção de identidades passa sempre por um processo complexo graças ao qual cada um se apropria do sentido da sua história pessoal e profissional. É um processo que necessita de tempo. Um tempo para refazer identidades, para acomodar inovações, para assimilar mudanças. (2000, p. 16)

É inegável que toda proposta de mudanças de que é alvo qualquer sistema passa, ou deveria passar, pela reflexão e eventuais adesão e ação dos profissionais que dele fazem parte. As rupturas efetivas de antigos paradigmas dependem sem dúvida da conscientização e da vontade de mudar dos profissionais envolvidos, sem mencionar uma adequada transposição das idéias propostas no plano teórico para a prática.

Se centrarmos essas reflexões no universo escolar, tomando como referência as últimas propostas para o ensino médio, certamente esbarraremos em resistências às mudanças que estão profundamente relacionadas à formação geral e específica de professores.

Em um plano geral, deparamo-nos com um quadro de desvalorização da profissão docente, em que o profissional é levado a dar aulas muitas vezes em condições inadequadas para o desenvolvimento de uma prática pedagógica produtiva. A precariedade das instalações dos aparelhos escolares, as dificuldades e carências da clientela, a falta de perspectivas no plano financeiro levam muitas pessoas a desistirem precocemente de uma vocação que, em outras condições, teria tudo para frutificar.

Em um plano específico, mais diretamente ligado à disciplina Língua Portuguesa, percebe-se que o discurso oficial contemporâneo requer um profissional qualificado, e principalmente atualizado diante de teorias da linguagem que ganham espaço na escola. Entretanto, para o profissional que se encontra no mercado há algum tempo, algumas vezes torna-se difícil rever toda a sua formação e abrir-se para repensar o alcance real de sua prática. Diante desse quadro, há quem se pergunte:

– Então não devo mais ensinar gramática? E a leitura dos clássicos nacionais, não deve mais ser exigida?

Perguntas como essas revelam todo o peso da tradição segundo a qual o professor de Português seria uma espécie de guardião da língua nacional.

das lacunas deixadas pelo ensino da língua pátria ao longo de seu próprio processo de escolarização. O exame atento do desempenho oral e escrito de bacharéis recém-formados em letras ou de candidatos a concursos de ingresso ao magistério deixa antever uma série de dificuldades no domínio das situações comunicativas a que são submetidos aqueles que se propõem a trabalhar, junto às futuras gerações, com a Língua Portuguesa. De fato, o simplismo com que são transpostas e recebidas algumas teorias da comunicação pode levar a grandes confusões conceituais e metodológicas. Apenas para citar um exemplo: não é porque a escola deva acolher as variedades lingüísticas de seus estudantes, para posteriormente realizar atividades de linguagem em torno delas, que o professor deva se eximir de conhecer muito bem o padrão culto da língua e as bases da gramática normativa.

Diante desse panorama, é preciso reconhecer que a formação de docentes é uma tarefa delicada, que hoje exige muita atenção – tanto no que diz respeito à importância social do ofício de ensinar quanto no que tange ao papel do professor de língua portuguesa.

Philippe Perrenoud, um dos principais teóricos do desenvolvimento das matrizes de competências e habilidades na escola, sustenta a tese de que o professor contemporâneo precisa ele mesmo desenvolver algumas competências que terão reflexo direto no trabalho com os alunos. Enumeramos e comentamos, a seguir, as dez competências para ensinar propostas por ele (2000).

1. Organizar e dirigir situações de aprendizagem

Uma vez internalizado seu ofício de mediar a aprendizagem, o professor deve ter, além de um bom conhecimento dos conteúdos a serem desenvolvidos com os alunos, clareza sobre a transposição desses conteúdos para que a aprendizagem se efetive.

Um dos caminhos mais férteis para concretizar esse processo parece ser considerar com toda seriedade a realidade, a bagagem, as representações que o aluno já traz consigo, uma vez que ele não é uma tábula rasa, capaz de ser moldada conforme a vontade exclusiva do professor. As contribuições individuais dos estudantes podem efetivamente se tornar objeto de trabalho voltado para a aprendizagem coletiva. Essa aproximação desarmada do universo dos alunos permite que se instale uma relação de confiança e respeito, capaz de tornar aproveitáveis para uma aprendizagem significativa até mesmo “erros” e inadequações.

Tendo claras algumas intencionalidades sobre seus objetos de ensino, o professor poderá partir para a elaboração ou adoção de materiais didáticos que mediem o percurso da aprendizagem, valendo-se ainda de outras maneiras de geração do conhecimento, como a proposição de atividades de pesquisa e projetos de trabalho.

2. Administrar a progressão das aprendizagens

O estabelecimento dos conteúdos assim como das competências e habilidades a serem trabalhados ao longo do ano letivo parece representar um passo decisivo para clarear os horizontes da aprendizagem relacionados a uma dada disciplina.

Para que possa desempenhar essa tarefa a contento, o professor precisa deter uma clara noção sobre como progridem os conteúdos que elegeu para trabalhar com a turma, baseada no domínio teórico das situações de aprendizagem e em uma visão longitudinal

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dos objetivos de ensino. Ao fazer balanços periódicos das competências desenvolvidas junto aos alunos, o professor pode administrar melhor aquela progressão observando sempre as possibilidades e os ganhos na aprendizagem dos alunos.

3. Conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação

Não é incomum que, ao assumir a tarefa de conduzir uma turma rumo à aprendizagem de conteúdos próprios de sua disciplina, o professor se depare com alunos que se situam em diferentes estágios no domínio das competências previstas para determinado ciclo. Diante desse quadro, cabe a ele a difícil tarefa de administrar as diferenças e, sem desmotivar aqueles que estão aquém ou além do esperado, promover um ambiente de trocas entre os próprios alunos, que, de um lado ou de outro, podem beneficiar-se bastante desse processo.

Agindo dessa forma, o professor pode despir-se um pouco de seu papel de único sujeito a centralizar o conhecimento, mostrando aos alunos que eles têm muito a contribuir para que o processo de ensino e aprendizagem se efetive. É claro que haverá casos – aqueles em que as dificuldades de aprendizagem são mais evidentes – em que o professor deverá atuar mais de perto, fornecendo apoio e atenção.

4. Envolver os alunos em suas aprendizagens e em seu trabalho

Um dos principais deslocamentos que vêm se operando na educação nas últimas décadas diz respeito à responsabilidade de professores e alunos nos processos de ensino e de aprendizagem. A atribuição ao professor ou ao aluno da responsabilidade quase total pelo sucesso ou fracasso na aprendizagem cede espaço, hoje, para a consciência de que ambas as partes são muito importantes para que o aprendizado se efetive. Mais do que nunca, sabe-se que não basta a disponibilidade do professor para ensinar: é preciso que o aluno também se disponha a participar do “jogo”. Além de ensinar e mediar, cabe ao professor a missão de motivar os alunos para a aquisição de conhecimentos.

Ao valorizar a importância do conhecimento – não só pelo discurso, mas também pela significação efetiva desse conhecimento na prática discente –, o professor estará suscitando os alunos à avaliação do seu próprio processo de aprendizagem, sem perder de vista as negociações e os acordos que implementam a interação em sala de aula.

5. Trabalhar em equipe

Diferentemente de antigos contextos, nos quais o professor trabalhava muito isolado, cuidando quase exclusivamente de suas salas de aula, hoje se requer um profissional capaz de integrar-se aos seus pares e à realidade de sua escola. A necessidade de integrar-se com seus pares de disciplina, de série ou de ciclo justifica-se por algumas demandas: a progressão de conteúdos das disciplinas por série e entre séries; os projetos de trabalho interdisciplinar ou a adoção de centros de interesse temáticos comuns.

permite ainda a formação de grupos de estudo, o enfrentamento de situações complexas ligadas à aprendizagem dos alunos, além de propiciar que as trocas pessoais e a administração de conflitos sejam requeridas.

6. Participar da administração da escola

Diante de certos contextos das escolas públicas e particulares, não se abre ao professor a possibilidade de participar ativamente de sua administração, como sugere Perrenoud. Entretanto o professor é peça central na construção de um projeto coletivo que norteie as ações da instituição escolar. É por meio de ações conjuntas voltadas para a comunidade – e levadas à frente por alunos, professores, corpo técnico e administrativo, famílias – que uma escola realmente passa a fazer diferença no corpo social no qual está inserida, mas com o qual nem sempre interage.

Nesse sentido, pode-se pensar em propostas de trabalho junto à comunidade para integrar famílias e escola ou para atender às carências de um determinado setor da sociedade, por exemplo. Com iniciativas como essas, mediadas pelos professores, os alunos podem começar a perceber com mais clareza o sentido da cidadania.

7. Informar e envolver os pais

Ao matricular seus filhos em uma escola, os pais costumam ter expectativas em relação à aprendizagem, à linha de trabalho pedagógico, à postura dos professores. É importante, portanto, que a escola garanta alguns espaços para a troca de informações e o debate entre pais e professores, tendo em vista o aprendizado dos alunos.

Quando explicita aos familiares dos alunos a linha pedagógica que está seguindo, as características de sua disciplina e o que propõe nas atividades escolares, o professor possibilita aos pais melhores condições de se envolverem com o processo de aprendizagem dos filhos, porque conhecerão as intencionalidades da equipe escolar. Além disso, é sempre recomendável que os professores mantenham uma relação de transparência com as famílias, atentando para resguardarem os limites da posição de autoridade que ocupam.

8. Utilizar novas tecnologias

É inegável que a escola precisa acompanhar a evolução tecnológica e tirar o máximo de proveito dos benefícios que esta é capaz de proporcionar. Longe de omitir-se em relação aos ganhos que a informática trouxe aos sistemas de ensino ou de fanaticamente centrar seu ofício nos avanços tecnológicos, o professor deve manter uma posição de equilíbrio, observando quatro entradas plausíveis e práticas nesse universo:

• utilizar editores de textos;

• explorar as potencialidades didáticas dos programas em relação aos objetivos de ensino;

• estimular a comunicação a distância por meio da telemática; • utilizar as ferramentas multimídia no ensino.

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(avaliações, projetos, materiais didáticos, entre tantos outros), é recomendável que ele utilize ferramentas que tornem seu trabalho mais rápido, seja na pesquisa, seja na produção e na publicação desses textos. Apesar da resistência de muitos que se formaram fora dessa cultura, as modernas tecnologias sem dúvida têm muito a oferecer nesse sentido.

9. Enfrentar os deveres e dilemas éticos da profissão

Um dos pilares da confiança que os alunos depositam nos professores é a sua postura ética: parece claro que professores éticos criam condições de trabalho fecundo na escola porque conseguem mobilizar a atenção dos alunos para focos de interesse pertinentes.

Para que desenvolva uma postura educativa coerente com a cidadania, o professor deve atentar para alguns pontos:

• prevenir a violência na escola e fora dela;

• lutar contra os preconceitos e as discriminações – sexuais, étnicas e sociais; • participar da criação de regras de vida comum referentes à disciplina na escola,

às sanções e à apreciação de condutas;

• analisar a relação pedagógica, a autoridade e a comunicação em aula;

• desenvolver o senso de responsabilidade, a solidariedade e o sentimento de justiça. Se fizer transparecer esses aspectos em sua prática, não somente em seu discurso, e souber lidar de modo coerente com os inevitáveis dilemas presentes em seu cotidiano, o professor estará cumprindo sua função como formador de mentalidades.

10. Administrar sua própria formação contínua

O professor com clareza sobre referenciais teóricos e procedimentos que norteiam seu ofício tem maior facilidade para explicitar sua prática e se fazer entender não só por seus alunos, como também por seus pares. Hoje em dia é impensável que o professor se contente apenas com a formação específica que recebeu nos anos de curso superior: cada vez mais se requer uma preocupação com a formação e capacitação contínuas.

O professor deve estar atento às lacunas de sua formação e às necessidades apontadas pelo contexto em que atua, programando para si mesmo um projeto de formação que, entre outras medidas, inclua cursos, leituras, estudos, parcerias. Tendo em vista que o conhecimento deve ser constantemente revisto e atualizado em face das demandas da profissão, o professor precisa empenhar-se em fazer das competências adquiridas com sua prática instrumentos que propiciem aprendizagens significativas para os alunos.

O desenvolvimento das próprias competências parece ser o caminho mais fecundo para que o professor crie e sedimente uma verdadeira identidade com o ofício de ensinar e mediar o conhecimento. O docente de Língua Portuguesa certamente poderá se beneficiar muito se investir no desenvolvimento das dez competências propostas. Elas estão, de uma forma ou de outra, inevitavelmente ligadas à implementação das habilidades que o professor dessa disciplina deve ter em relação a:

• saber explorar as potencialidades de um texto, nos diversos gêneros, e transpô-las para os alunos;

• ter clareza quanto às situações comunicativas de que participa, tanto na fala quanto na escrita;

• conhecer os mecanismos que regem a Língua Portuguesa, fazendo uso adequado das gramáticas internalizada, descritiva e normativa;

• ser um produtor de textos que respeita as intencionalidades, os interlocutores e as situações envolvidas no processo de interlocução;

• construir instrumentos didáticos para que o processo ensino-aprendizagem seja realmente significativo para os alunos.

Se deseja de fato desenvolver em seus alunos competências e habilidades que possibilitem um progressivo domínio dos recursos que a língua portuguesa oferece, o professor deve atentar para que seus procedimentos em sala de aula sejam coerentes com os novos paradigmas que vêm norteando a educação brasileira. Para tanto, é preciso que invista com rigor em sua formação geral e específica, consciente de que o profissional em serviço precisa estar em constante capacitação. Esse parece ser o melhor caminho para a construção de sua identidade no ofício docente.

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ANEXO