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Comunicação e cultura de safety na cadeia de causalidade: Exemplos da aviação

CAPÍTULO 2 DINÂMICAS EVOLUTIVAS NOS SERVIÇOS DE NAVEGAÇÃO AÉREA

3.3 P ROBLEMÁTICA DOS F ATORES H UMANOS

3.3.2 A problemática dos acidentes organizacionais

3.3.2.3 Comunicação e cultura de safety na cadeia de causalidade: Exemplos da aviação

Exemplos dos mais graves e recentes acidentes de aviação como aqueles que ocorreram em Überlingen, Linate ou a queda do Air France AF447 no Atlântico (Quadro 7), têm em comum uma série de interações complexas e imprevistas.

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Quadro 7: Exemplos de acidentes de aviação relacionados com a cultura de safety

Acidente Data Aeronaves Nº de

fatalidades Tipo Linate (Aeroporto de Milão) 8 de outubro de 2001 Boeing MD-87

Cessna Citation 525-A 118

Colisão devido a incursão de pista

Überlingen 1 de julho de 2002

Boeing B757-200

Tupolev TU154M 71 Colisão no ar

Voo AF447 (Rio de Janeiro-Paris)

1 de junho

de 2009 Airbus A330-200 228

Queda por perda de sustentação Fonte: Compilado a partir dos relatórios de investigação (ANSV, 2004; BFU, 2004; BEA, 2012)

Conforme anteriormente referido, este tipo de acidentes que envolvem sistemas sócio tecnológicos complexos e com elevada exposição ao risco, à semelhança de todos os acidentes organizacionais, diferenciam-se dos individuais pela sua rara frequência, originada por uma multicausalidade complexa e envolvendo sempre perdas bastante significativas e consequências mais gravosas.

Contrariamente a outros domínios de atividade de risco (e.g. plataformas petrolíferas, indústria química e nuclear), que permitem a separação dos componentes críticos do restante sistema e análises compartimentadas, os sistemas de gestão de tráfego aéreo “operam em ambiente aberto e dinâmico onde é difícil identificar inteiramente as interações do sistema” (Felici, 2006, p. 1483).

Nos cenários de Überlingen e Linate, os controladores de tráfego aéreo foram forçados a contornar ou violar procedimentos para lidar com falhas na infraestrutura ou falta de pessoal. No caso de Überlingen, perduraram no tempo atitudes complacentes da gestão relativamente a falhas na presença efetiva dos controladores previstos para assegurar as posições ativas (BFU, 2004, p. 112). Em Linate, a não utilização da fraseologia standard com comunicações entre o controlador e pilotos simultaneamente em inglês e italiano, ausência ou deficiência na sinalização dos corredores e respetiva documentação desatualizada, desconhecimento da parte dos operadores de certas marcas identificadoras nos caminhos de circulação (i.e. taxiways), desconformidade das operações em condições de baixa visibilidade relativamente à regulamentação ICAO e a constatação que “não havia um Sistema de Gestão de Safety funcional em operação” (ANSV, 2004, p. 181), são algumas das causas identificadas que indicam uma deficiência significativa da cultura de safety.

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Nos acidentes de aviação as falhas nos sistemas estão sempre fortemente relacionadas com falhas organizacionais (Felici, 2006; Reason, 1997). A existência de deficiências, ineficiências ou condições latentes organizacionais, são muitas vezes reveladas retrospetivamente através da análise e investigação dos acidentes aéreos, como aconteceu nos dois casos anteriores e no acidente de 1 de junho de 2009, com o voo 447 da Air France entre o Rio de Janeiro (Galeão) e Paris (Charles de Gaulle).

A cadeia de eventos originadora deste acidente teve o seu início numa obstrução das sondas

Pitot por cristais de gelo, o que gerou inconsistência na indicação de velocidade. O procedimento

da tripulação, na sequência da falha no diagnóstico correto da situação, provocou na aeronave a entrada em perda (de sustentação) aos 35 000 pés de altitude, acabando por se despenhar no Oceano Atlântico.

Entre as conclusões do relatório de investigação técnica (BEA, 2012), são referidas: dificuldades da tripulação em reconhecer o que se estava a passar (perda de altitude), ações desadequadas da tripulação, dificuldades de pilotagem em turbulência, falhas no diagnóstico situacional, na gestão de stress, na comunicação e cooperação entre os tripulantes, lacunas no treino de pilotagem manual em elevada altitude e na execução de determinados procedimentos. Foi notória a ação contributiva dos fatores humanos e das falhas de comunicação ao nível do diagnóstico, da colaboração e da gestão do stress, decisivas para o desfecho fatal. Esta evidência corrobora a opinião de Reason (1997; 2009), quando aponta o comportamento individual, com atitudes comprometedoras do safety, como “gatilho” principal e causa direta dos acidentes, apesar dos múltiplos fatores que os originam.

Imprimindo um forte impacto na sociedade, acidentes de aviação como este suscitam a atenção dos media, o que justificou a exploração da influência dos fatores organizacionais e da cultura de safety em dois documentários televisivos dedicados.

O primeiro documentário11 começa por referir o impacto que a crescente automatização das aeronaves, equipadas com computadores de bordo precisos e complexos, exerce na degradação da perícia manual dos pilotos, repercutindo-se no seu desempenho quando os automatismos falham. Identifica, em seguida, falhas importantes ao nível dos fatores humanos

11

Documentário televisivo “Toda a verdade sobre o voo 447”, emitido no canal Odisseia entre as 19:22h-20:11h do dia 14 de dezembro de 2013.

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(e.g. comunicação entre a tripulação), que concorrem com fragilidades da cultura de safety na responsabilidade por este acidente.

Apesar da tripulação estar dotada de treino e qualificação completos, o relatório de investigação (BEA, 2012), recomenda mais treino para os pilotos, consentâneo com a necessidade de lidar com sistemas altamente automatizados, levando a Air France a adaptar o treino de simulador para que as tripulações gerissem melhor incertezas nas indicações de velocidade e altitude ou situações de perda de sustentação.

O segundo documentário televisivo incide a sua atenção sobretudo na organização para estabelecer um nexo causal entre o acidente e a cultura de safety vigente, baseado na análise crítica deste e outros sinistros aéreos da mesma transportadora. O documentário enfatiza o impacto que a cultura organizacional e a postura relativamente ao safety por parte da gestão da Air France aportaram à ocorrência de inúmeros acidentes que esta companhia experienciou nas últimas décadas.

Na peça são reconhecidas inúmeras fragilidades organizacionais, patentes nos relatórios de investigação e concordantes com os testemunhos de comandantes de linha aérea e responsáveis de safety. Conforme referido por um dos entrevistados: “A pressão de produtividade sobre os pilotos é tão grande que, por vezes, estes negligenciam alguns procedimentos de segurança”.12

Vários problemas, como, falhas na transmissão de conhecimentos ou inércia na resolução de perigos identificados, são recorrentemente referidos relativamente aos acidentes desta transportadora aérea.

Este exemplo, fértil em fatores latentes, de causalidade organizacional, elucida sobre a importância da cultura de safety, enfatiza as consequências da falha no compromisso da gestão sénior em priorizar o safety e ilustra, ainda, a forma como a diversidade de problemas de comunicação (e.g. contexto de trabalho de equipa, adaptação da formação e treino), podem combinar-se para culminar num evento trágico.

12 Excerto de entrevista incluída no documentário televisivo “Observatório do Mundo: Rio\Paris - A Queda da Air France”, emitido no canal TVI24 entre as 20:00-21:00h do dia 16 de março de 2014.

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