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Mensuração da cultura e clima de safety: problemática e estudos existentes

CAPÍTULO 2 DINÂMICAS EVOLUTIVAS NOS SERVIÇOS DE NAVEGAÇÃO AÉREA

3.2 C ULTURA DE SAFETY

3.2.4 Enquadramento da cultura de safety na navegação aérea

3.2.4.2 Mensuração da cultura e clima de safety: problemática e estudos existentes

O reconhecimento da importância da cultura de safety na prevenção de acidentes organizacionais motivou vários investigadores (Cooper, 2000; Cox & Cheyne, 2000; Glendon & Stanton, 2000; Guldenmund, 2000), a procurar uma definição e modo de avaliação para este conceito. Apesar de tudo, são ainda escassos na literatura os artigos com referências à avaliação da cultura de safety na aviação (Wiegmann et al., 2004).

A cultura é um conceito sem valor determinável, contrariamente ao safety, pelo que, a avaliação da cultura de safety deve aditar valor, “preferencialmente com recomendações sobre a forma de melhorar a cultura subjacente para melhor dar suporte ao safety” (Guldenmund, 2010, p. 1475). A importância da sua aferição advém da necessidade de identificar os aspetos a

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melhorar e da orientação que imprime nos vários processos decisórios, conforme ressalta da opinião de Kirwan e Licu (2008): “A cultura de safety ajuda a redefinir o retrato de risco da organização, e possibilita clarificar nitidamente as prioridades de safety. Também auxilia a força de trabalho a atuar, reagir e tomar decisões de forma segura, diariamente” (p. 4).

Apesar de se identificarem fatores importantes da cultura de safety nas recentes revisões elaboradas sobre aferições de cultura de safety (Flin et al., 2000; Guldenmund, 2000), não existe consenso sobre aqueles que se podem considerar nucleares. Frazier, Ludwig, Whitaker e Roberts (2013), tentaram colmatar essa lacuna com o desenvolvimento de um inquérito de cultura de

safety em cinco organizações multinacionais de diferentes indústrias, no sentido de determinar

quais os fatores mais importantes para a cultura de safety, sua estrutura e seu valor contributivo.

De acordo com Cooper (2000), a cultura de safety é analisada segundo 3 dimensões principais (pp. 117-119): comportamental, psicológica e estrutural ou do sistema. A dimensão psicológica traduz “como as pessoas sentem”, correspondendo ao clima de safety da organização. Os aspetos comportamentais relacionam-se com “o que as pessoas fazem” e incluem as atividades relacionadas com o safety, atitudes e comportamentos dos indivíduos. Finalmente, os aspetos situacionais descrevem “o que a organização tem” (e.g. procedimentos operacionais, sistemas de gestão, políticas, fluxos de comunicação).

Com base na síntese que efetuou sobre pesquisas anteriores de outros autores (e.g. paradigma

goal-setting, pesquisa de causalidade de acidentes e metodologia de triangulação), Cooper

(2000), criou o “modelo recíproco de cultura de safety” para permitir que a “natureza holística, dinâmica, multifacetada, do constructo da cultura de safety seja melhor analisada em diferentes níveis de organização”(p. 131). Desenvolveu um modelo de vários níveis que replica a trilogia pessoa - trabalho - organização, pelas três dimensões principais da cultura: sistema de gestão de safety, clima de safety e comportamento (behaviour).

É no entanto consensual, que a aplicação de inquéritos regulares (i.e. safety culture surveys), com o objetivo principal de prover a gestão sénior com informação essencial sobre aspetos que possam estar a comprometer a cultura, constitui a melhor abordagem para medir a cultura de

safety. O facto de envolver todo o pessoal (i.e. controladores, assistentes, manutenção,

engenharia, gestores e suporte administrativo) nestas avaliações, proporciona o desenvolvimento do fluxo de informação na organização e a análise das diferenças regionais da organização, o que possibilita visualizar um quadro nítido dos riscos com que a organização tem de lidar.

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Segundo Kirwan (2009), os inquéritos sobre cultura de safety funcionam como um espelho que “dá a oportunidade de observar a organização da mesma forma que um observador externo informado a poderia ver” (p. 32). Este facto, acrescido à reconhecida dificuldade em analisar corretamente a cultura de safety desde o interior da organização, está na base da intervenção de participantes externos na condução dos inquéritos de safety nas organizações. O seu contributo acrescenta uma perspetiva mais objetiva e complementar da análise do observador interno.

Guldenmund (2007), revela-se crítico relativamente à utilização de questionários na tentativa de conhecer o cerne da cultura de safety, pois o seu insucesso parece dever-se ao facto de mostrarem apenas as atitudes que são partilhadas por toda a organização. Desse modo, relativamente ao estudo da cultura de safety e com base na literatura, Guldenmund (2010, pp. 1467-1470), preconizou três abordagens designadas: (i) académica, (ii) analítica e (iii) pragmática. Diferindo entre si no foco temporal, paradigma e técnicas de pesquisa, o autor entende-as como complementares, devendo ser combinadas em proveito do desenvolvimento da dita cultura de safety.

A abordagem académica baseia-se numa metodologia de investigação de campo ou etnográfica que pretende descrever e compreender a cultura e não avaliá-la. Para tal, usa métodos de pesquisa como o estudo narrativo, fenomenológico, estudo de caso ou várias combinações. Recorrendo a técnicas de caráter qualitativo (e.g. entrevistas, observação, revisão de literatura), os resultados não são quantificados pois o que se procura é o seu significado e interpretação. Já na abordagem analítica, o instrumento de recolha de dados preferencialmente escolhido é o questionário autoadministrado, empregando uma metodologia semi-quantitativa cujo objetivo passa por desenvolver um conjunto de conceitos gerais, sejam fatores, dimensões ou escalas, através dos quais as organizações possam ser avaliadas e comparadas. Esta abordagem entende a cultura como um constructo multidimensional. Carateriza-se como descritiva, tal como a abordagem académica, cobrindo conjuntamente a extensão da pesquisa científica relativa à cultura de safety. Esta abordagem tem o seu enfoque no presente do ciclo de vida organizacional, enquanto a precedente é focada na interpretação do seu historial.

A terceira abordagem, dirigida ao futuro organizacional, designa-se pragmática porque se descola da pesquisa empírica para a experiência e julgamento de especialistas. Através de uma aproximação holística, evolui em redor de três importantes caraterísticas organizacionais que são a cultura, estrutura e processos. A sua inter-relação dinâmica vai produzir o desejado nível de desempenho de safety.

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No caso concreto dos processos de aferição da cultura de safety dos últimos cinco anos no domínio da navegação aérea, Kirwan (2009), reporta que os resultados revelam um forte compromisso com o safety por parte dos 12 ANSP’s europeus inquiridos, independentemente de naturais traços culturais, tornados exemplares para outras indústrias. Contudo, não se pode descurar a frequente emergência de questões relacionadas com confiança, entre diferentes departamentos ou unidades orgânicas geograficamente separadas, ou ainda, problemas de comunicação. Estes últimos apresentam origem diversa, podendo relacionar-se com perda de informação importante ou em resultado da ausência reciprocidade da comunicação no sentido descendente que se torna assim unidirecional.

Adverte Kirwan (2009, pp. 32-34), que a pressão que rodeia a atividade de gestão de tráfego aéreo pode originar dilemas que contribuem para criar maior sensibilidade no clima de safety, como sejam:

 Conflito entre “produtividade” e riscos de safety (e.g. procedimentos abreviados ou violações menores de regras, provimento de um serviço ótimo aos pilotos, técnicos que atalham o safety devido a pressões de tempo significativas);

 Dificuldade em manter o nível máximo de safety em períodos de mudanças significativas e upgrade de sistemas;

 Problema em aprender com os relatos de incidentes de modo suficientemente rápido;  Preocupações com a alocação certa de recursos ao safety;

 Dificuldade no relacionamento com a autoridade reguladora, dada a inexperiência de muitos reguladores relativamente ao ATM;

 Gestão desigual ou não otimizada do safety nas equipas de trabalho.

Tal como acontece com a cultura e clima organizacionais, o clima de safety é aferido tradicionalmente por intermédio de questionários, enquanto a avaliação da cultura utiliza métodos mistos que incluem entrevistas qualitativas para compreender os aspetos mais enraizados e profundos da cultura. Esta estratégia de triangulação é apontada por O'Connor, O'Dea, Kennedy e Buttrey (2011), como sintomática das limitações associadas à tentativa de aferição do safety na organização com base em inquéritos de clima de safety.

Atente-se que, autores como Mearns et al. (2003), consideram o clima como uma manifestação da cultura passível de aferição direta, contrariamente à própria cultura cujo nível de abstração a impede de ser mensurável. Pese embora, se confirme a validade da aferição deste constructo, de acordo com Johnson (2007), não ficou estabelecida a validade preditiva do clima de safety

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decorrente da avaliação do clima de safety efetuada por vários investigadores (Neal & Griffin, 2002; Zohar, 2000), o que reduz a sua credibilidade enquanto constructo social significante. No entanto, O’Connor et al. (2011), confirmaram numa revisão de 23 estudos sobre clima de

safety na aviação civil e militar, que os fatores de clima de safety presentes nos questionários

são consistentes com a literatura relativa a outras organizações de elevada fiabilidade, o que valida o constructo nos instrumentos aplicados no domínio da aviação. Estes autores realçam que o constructo do clima de safety na aviação deve ser correlacionado com outras métricas de desempenho de safety que não sejam apenas as relativas à taxa de acidentes e sua mensuração. Por seu turno, Mearns et al. (2013), viriam a aditar à revisão de literatura efetuada por Guldenmund (2000), o período compreendido entre 2001 e 2005 onde localizaram 52 referências, das quais, 43 mensuravam a cultura de safety e nove aferiam o respetivo clima. Identificaram neste período três estudos baseados em inquéritos de cultura de safety conduzidos na aviação e controlo de tráfego aéreo (Quadro 5).

Quadro 5: Estudos de cultura de safety entre 2001 e 2005 no controlo de tráfego aéreo Autores Método de medida Amostra (n) Fatores avaliados (nº de itens)

Gil e Shergill (2004) Questionário de cultura de safety (26 itens) Todos os setores da Aviação, incluindo o ATC N=464

1-Dinâmica organizacional e práticas de safety 2-Papel do regulador 3-Sorte e safety 4-Formação de gestão de safety e tomada de decisão Ek et al. (2003) Questionário 95 itens Entrevistas Observações 2 Centros de Controlo de Tráfego Aéreo na Suécia N=385 1-Situação do trabalho 2-Flexibilidade 3-Comunicação 4-Reporte 5-Justeza 6-Aprendizagem

7-Comportamentos relativos ao safety 8-Atitude para com o safety

9-Perceção de risco Ek e Arvidsson (2002) Cultura de safety Escala de Likert Controlo de Tráfego Aéreo 1-Situação do trabalho 2-Cultura de aprendizagem 3-Cultura de reporte 4-Cultura justa 5-Cultura flexível 6-Comunicação 7-Atitude 8-Comportamento 9-Perceção de risco Fonte: Adaptado de Mearns et al. (2013, p. 126)

Já anteriormente, a relação entre o clima organizacional e a cultura de safety tinha sido reconhecida por Ek, Akselsson, Arvidsson e Johansson (2007), que realizaram várias avaliações

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de cultura de safety em centros de controlo de tráfego aéreo suecos. Comparativamente a estudos prévios conduzidos noutras áreas (e.g. transporte marítimo e handling aeroportuário), verificou-se uma perceção positiva no domínio da navegação aérea.