• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 DINÂMICAS EVOLUTIVAS NOS SERVIÇOS DE NAVEGAÇÃO AÉREA

3.2 C ULTURA DE SAFETY

3.2.1 Enfoque da Literatura

A cultura de safety tem sido alvo do interesse dos investigadores desde 1980, com significativa produção de literatura sugerindo várias definições para este conceito. Tal não obsta, a que a

[71]

observação de Guldenmund (2000), quanto ao facto deste conceito permanecer “mal definido” (p. 247) passado duas décadas, configure uma incerteza inspiradora de alguns títulos da literatura (Safety culture: philosophers stone or man of straw?, 1998; Culture's Confusions, 2000).

Pidgeon (1991), referia-se à cultura de safety como “o sistema de significados construído através do qual um dado grupo ou população entende os perigos do mundo” (p. 135). Circunscrita ao local de trabalho, a cultura de safety reflete a forma como o safety é aí gerido e, de acordo com Cox e Cox (1991), reflete habitualmente “as atitudes, crenças, perceções e valores que os colaboradores partilham em relação ao safety” (p. 95).

Pidgeon e O’Leary (1994) definiram cultura de safety como sendo, “o conjunto de crenças, normas, atitudes, papéis e práticas sociais e técnicas dentro de uma organização, destinadas a minimizar a exposição dos indivíduos, tanto dentro como fora de uma organização de condições consideradas perigosas” (p. 32).

Segundo Booth e Lee (1995), a cultura de safety “é essencialmente uma descrição das atitudes do pessoal acerca da organização onde trabalham, as suas perceções da magnitude dos riscos a que estão expostos e as suas crenças na necessidade, aspeto prático e eficácia do controlo” (p. 393), referindo ainda, que a sua relação umbilical com a cultura organizacional leva-a a ser entendida como um seu subconjunto. Neste sentido, a apresentação e compreensão da cultura organizacional, previamente à exploração da cultura de safety, justifica-se por esta se integrar num contexto alargado da primeira (Frazier, Ludwig, Whitaker, & Roberts, 2013). Com impacto direto no desempenho de safety, a inerente cultura permite uma clara e compreensiva imagem de risco da organização, entrando em linha de conta com as diferenças regionais. Representando uma subdimensão da cultura organizacional, reflete atitudes, normas e comportamentos, não apenas dos indivíduos, mas também de grupos internos e da organização. A referência de Hale (2000) a este conceito inclui atitudes, crenças e perceções partilhadas por grupos naturais que definem normas e valores, determinantes do modo como reagem relativamente a riscos e sistemas de controlo de riscos (Neal & Griffin, 2002).

O conceito de cultura de safety tem as suas raízes na cultura organizacional e na literatura antropológica (Guldenmund, 2000), derivando da noção que os valores, normas atividades, gestão e historial organizacional modelam os comportamentos dos seus membros (Schein, 2004). É notória, porém, a transferência da ausência de consenso para os respetivos conceitos da área de safety à semelhança dos conceitos de cultura e clima

[72]

organizacionais. Talvez, por esse facto, se observe em grande parte da literatura dedicada à pesquisa empírica a referência indistinta entre “cultura de safety” e “clima de safety”, conforme identificado por Hale (2000).

Não obstante, outros investigadores (Zhang et al., 2002) manifestam a sua divergência sobre a forma como a cultura de safety deve ser definida e na diferenciação entre este conceito e o clima de safety.

As revisões de literatura de Flin, Mearns, O'Connor e Bryden (2000) e Guldenmund (2000), identificam como constructos comuns da cultura de safety, a preocupação da gestão, a responsabilidade pessoal, o suporte dos pares relativamente ao safety e os respetivos sistemas de gestão. Constata-se ainda, uma crescente consciencialização de que “o safety é um fenómeno do sistema” e que, sendo os acidentes resultantes da conjugação de múltiplos fatores não podem ser tratados isoladamente com treino ou tecnologia mas, devem contemplar questões mais alargadas do sistema.

Esta visão abrangente do safety é complementada por uma relação de compromisso e responsabilização, transversal a toda a organização, que se revê nas atitudes e decisões cotidianas. Esta perspetiva transparece na definição de cultura de safety de Kirwan e Licu (2008), ao referir “a forma como o safety é percecionado, valorizado e priorizado numa organização. Ela reflete o real compromisso com o safety em todos os níveis da organização” (p. 1).

Já no que concerne ao clima, a terminologia “clima de safety” foi introduzida na literatura por Zohar em 1980 (Zhang et al., 2002; Zohar, 1980). Neal e Griffin (2002) definiram-no, posteriormente, como o conjunto das “perceções de políticas, procedimentos e práticas relacionadas com o safety no local de trabalho” (p. 69), partilhadas por grupos ou por toda a organização. A esta noção, estes autores contrapõem o caráter alargado do conceito de cultura de safety, a que acrescentam constructos adicionais como as atitudes, valores e comportamento.

Foi o reconhecimento da importância que os fatores organizacionais imprimiam no safety que direcionou o interesse da investigação para o clima de safety em várias áreas de risco (Dedobbeleer & Beland, 1991; Donald & Canter, 1994; Neal & Griffin, 2002; Niskanen, 1994; Zohar, 1980), e particularmente na aviação (Ciavarelli, 2007; Lofquist, 2010; Luria & Yagil, 2010; O'Connor, O'Dea, Kennedy, & Buttrey, 2011).

O clima de safety influencia o comportamento e atitude de safety dos colaboradores em todos os níveis da organização e refere-se ao grau em que estes acreditam na real prioridade que lhe

[73]

é atribuído, contribuindo a mensuração do respetivo desempenho para alertar a existência de potenciais problemas (Cooper & Phillips, 2004; Zohar, 1980). Apesar das dimensões principais do clima de safety não serem ainda consensuais, a literatura identifica uma associação positiva entre as respetivas perceções e a observância das normas de safety. Naturalmente, que em relação aos acidentes organizacionais, a relação existente revela uma associação negativa com a perceção do clima de safety (Neal & Griffin, 2002).

A literatura foca-se, sobretudo, na mensuração de fatores constituintes do clima de safety e em algumas diferenças identificadas relativamente à cultura de safety (Flin et al., 2000; Hale, 2000), dividindo o interesse nos aspetos a explorar, sobretudo, pelos fatores constituintes da estrutura do clima de safety e a sua relação com as variáveis resultado (Neal & Griffin, 2002).

Segundo Zhang, Wiegmann, von Thaden, Sharma e Mitchell (2002), multiplicaram-se as definições destes dois conceitos desde a introdução do conceito de clima de safety por Zohar, em 1980, o que dificulta o desenvolvimento de uma metodologia sistemática para medir estas dimensões organizacionais e encontrar estratégias de melhoria da cultura de safety.

Sempre se reconheceu a ausência de consenso na definição de cultura de safety (Cox & Cheyne, 2000; Pidgeon, 1991) e nos seus componentes fundamentais (Frazier et al., 2013), verificando-se um tratamento instrumental pela literatura (Haukelid, 2008), com definições de caráter amplo (Guldenmund, 2000). Complementarmente, Cooper (2000, p. 114) vê refletidas nas várias definições de cultura de safety a ideia de que, muito mais do que algo que a organização “tem”, será aquilo que ela “é”.

A literatura faz referência ao desenvolvimento de vários modelos de cultura de safety (Cooper, 2000; Reason, 1998; Westrum, 2004) e várias revisões de literatura sobre o tema (Chouldry, Fang, & Mohamed, 2007; Gadd & Collins, 2002; Glendon & Stanton, 2000; Guldenmund, 2000; Mearns & Flin, 1999; Wiegmann, Zhang, von Thaden, Sharma, & Gibbons, 2004). Na expectativa de comparar estes dois conceitos, Guldenmund (2000) reuniu 16 definições de cultura e clima de safety numa revisão a duas décadas de literatura (Quadro 3).

O que diferencia, notoriamente, a cultura do clima de safety é a influência da primeira no comportamento de um grupo de indivíduos pela crença que estes têm no safety, enquanto o segundo, baseado em perceções individuais, é variável e pode mudar frequentemente. No entanto, cultura e clima de safety não são entendidos por Guldenmund (2007) como duas entidades separadas, mas antes, diferentes abordagens utilizadas para determinar a importância do safety na organização.

[74]

Quadro 3: Definições de cultura e clima de safety

Referência Definição de cultura e clima de safety

Zohar (1980) Um sumário de perceções molares, partilhadas entre os trabalhadores, acerca do seu ambiente de trabalho.

Glennon (1982 a,b)

A perceção dos trabalhadores acerca das características da sua organização, que têm um impacto direto sobre o seu comportamento no sentido de reduzir ou eliminar o perigo - clima de safety - e, clima de safety é uma forma especial de clima organizacional. Brown e Holmes

(1986)

Um conjunto de perceções e crenças de um indivíduo e/ou grupo acerca de uma entidade em particular.

Cox e Cox (1991) A cultura de safety reflete as atitudes, crenças, perceções e valores que os trabalhadores partilham em relação à segurança operacional. Dedobbeleer e

Béland (1991) As perceções molares das pessoas acerca do seu cenário de trabalho. International Safety

Advisory Group (1991)

Cultura de safety é o conjunto de características e atitudes nas organizações e indivíduos que estabelece, como prioridade principal, as questões da segurança (...).

Pidgeon (1991)

Um conjunto de crenças, normas, atitudes, papéis e práticas sociais e técnicas, levadas a cabo com a preocupação de minimizar a exposição dos trabalhadores, gestores, clientes e membros do público, a condições consideradas perigosas.

Ostrom et al. (1993) O conceito que as crenças e atitudes das organizações manifestam nas ações, políticas e procedimentos e que afetam a sua performance de segurança. Cooper e Phillips

(1994)

Clima de segurança preocupa-se com as perceções partilhadas e crenças dos trabalhadores no seu posto de trabalho.

Geller (1994) Numa cultura de safety total (TSC1) todos se sentem responsáveis pelo safety e exercem-na numa rotina diária.

Niskanen (1994)

Clima de safety refere-se a um conjunto de atributos que podem ser percebidos por uma organização em particular e que pode ser induzido pelas políticas e práticas impostas aos seus trabalhadores e supervisores.

Coyle et al. (1995) A medida objetiva de atitudes e perceções, face aos aspetos da saúde e segurança ocupacionais.

Berends (1996) A programação coletiva mental, face à segurança, de um grupo de membros de uma organização.

Lee (1996)

A cultura de segurança de uma organização é o resultado dos valores, atitudes, perceções, competências e padrões de comportamento de um grupo ou indivíduo de uma organização, que vão determinar o compromisso, o estilo e a capacidade para a gestão da saúde e segurança da organização.

Cabrera et al. (1997) As perceções partilhadas dos membros da organização acerca do seu ambiente de trabalho, e mais precisamente, das políticas organizacionais, no que diz respeito ao safety. Williamson et al.

(1997)

Clima de segurança é um conceito sumário que descreve a ética de segurança de uma organização ou posto de trabalho e que se reflete nas crenças dos trabalhadores em relação ao safety.

Nota. Definições de clima sombreadas para melhor diferenciação.

[75]

Apesar dos argumentos a favor da sua diferenciação (Schein, 2004), as similitudes que alguns autores (Zhang et al., 2002) encontram entre cultura e clima de safety (Quadro 4), podem revestir um caráter de sobreposição ou envolvimento entre os dois conceitos (Denison, 1996; Mearns & Flin, 1999).

Por outro lado, a análise que Hale (2000) faz da relação entre os dois constructos, sustenta o argumento que a existência de inquéritos de safety e um clima de safety não pressupõe que este clima seja favorável ao próprio safety. Propõe, então, a terminologia “influências culturais no safety” (p. 5), para orientar especificamente a pesquisa para a análise da cultura na sua vertente direcionada à segurança operacional.

Quadro 4: Pontos comuns nas definições de cultura e clima de safety

Cultura de safety Clima de safety

(…) é um conceito definido a nível de grupo ou mais elevado, que refere valores partilhados pelos membros do grupo ou organização.

(…) é um fenómeno psicológico, que é geralmente definido como as perceções do estado do safety num dado momento.

(…) preocupa-se com problemas formais de safety numa organização, e estreitamente relacionados com, mas não restringidos à gestão e supervisão de sistemas.

(…) está estreitamente relacionado com questões intangíveis como fatores situacionais e ambientais. Enfatiza a contribuição de cada um em cada nível da

organização.

(…) é um fenómeno temporal, um snapshot da cultura de safety, relativamente instável e sujeito a mudança. É refletida na vontade da organização em desenvolver e

aprender com erros, incidentes e acidentes. É relativamente estável e resistente à mudança.

Fonte: (Zhang et al., 2002)

Após mais de duas décadas de tentativas de definição dos dois constructos, Glisson e James (2002), reconhecem que a utilização indiscriminada dos termos cultura e clima, sem distinguir os dois contructos, a par do limitado avanço na respetiva mensuração e a falta de evidências empíricas que sustentem a sua diferenciação ou verossimilhança, alargaram as lacunas na literatura ao invés de as reduzirem.