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CAPÍTULO 2 DINÂMICAS EVOLUTIVAS NOS SERVIÇOS DE NAVEGAÇÃO AÉREA

3.2 C ULTURA DE SAFETY

3.2.2 Determinantes da Cultura de Safety

3.2.2.3 Gestão do risco

O safety é um conceito dinâmico e prospetivo, tendo evoluído duma abordagem reativa que vingou até aos anos 70, para uma atitude proativa daí em diante, com tendência para assumir uma atitude preditiva, mais adequada ao aumento expressivo do volume de tráfego. A evolução para o caráter preditivo implica, contudo, a existência de sistemas de reporte confidencial voluntário ou obrigatório, análise de dados de voo, monitoria da normal operação, auditorias e verificações de segurança.

Conforme relembram Booth e Lee (1995), a gestão do safety requer quatro funções essenciais: a definição de políticas e planeamento, organização e comunicação, gestão dos perigos, monitoria e revisão (p. 395). Sendo certo que, a segurança absoluta em sistemas complexos manipulados e criados pelo ser humano (i.e. sócio tecnológicos) é inatingível, torna-se

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fundamental a identificação dos perigos e gestão dos riscos operacionais para reforçar e garantir a segurança das operações.

Este reconhecimento da impossibilidade de cenários de total inexistência de risco é consensual entre os investigadores de safety (Dietrich & Jochum, 2004; Miyagi, 2005; Reason, 1997, 2009), remetendo-nos para a consideração da noção de gestão do risco. A própria definição de safety, enunciada no Manual de Gestão de Safety da ICAO (2012c) como, “o estado em que a possibilidade de dano em pessoas ou bens é reduzido a, ou mantido em, ou abaixo de um nível aceitável, através de um processo contínuo de identificação dos perigos e gestão dos riscos de

safety” (p. 11), prevê esta necessidade.

No contexto da navegação aérea, o conceito de safety implica “a ausência de um inaceitável risco de danos”, ou mais prosaicamente, uma operação “livre de perigo ou riscos” (ESARR3-Use of Safety Management Systems by ATM Service Providers, 2000, p. 16), o que introduz os conceitos de perigo e risco na complexa abordagem da gestão do risco.

Estes dois conceitos são basilares, na navegação aérea, para a compreensão dos processos relacionados com o safety. A ICAO (2012b), clarifica o entendimento de perigo de safety da seguinte forma:

Um perigo é genericamente definido por profissionais de safety como uma condição ou um objeto com o potencial de causar a morte, ferimentos no pessoal, danos a equipamentos ou estruturas, perda de material, ou redução da capacidade para executar uma função prescrita. Para efeitos de gestão de riscos de segurança da aviação, um perigo deve ser focado nessas condições que podem causar ou contribuir para o funcionamento seguro da aeronave ou equipamento relacionado com a segurança da aviação, produtos e serviços (p. 33).

Embora constitua uma condição com potencial para causar danos, um perigo necessita da conjugação com outros fatores para enformar um risco, mais ou menos severo, de gerar uma consequência negativa.

Patankar e Taylor (2004), definiram genericamente o conceito de risco no domínio da aviação como “a probabilidade de ocorrência de um efeito adverso, (...) na indústria da aviação, o risco pode ser expresso em termos de número de acidentes por x-número de horas de voo” (p. 1). Pragmaticamente, Janic (2000) refere-o como “a probabilidade de ocorrência de um evento perigoso num dado período” (p. 43), o que estatisticamente pode corresponder a um valor que traduz a medida da probabilidade de severidade do efeito adverso. A definição da ICAO apresenta risco de safety como um conceito bidimensional no qual “a perceção de risco

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associada a um evento perigoso depende da probabilidade de ocorrência do evento conjugada com a severidade das suas consequências (ICAO SMM Doc. 9859, 2012c, p. 155).

Uma das formas de assegurar a diminuição da probabilidade de ocorrência de eventos de carácter anómalo ou perigoso para a navegação aérea será através da cultura de safety, conforme vem enfatizado no referencial de excelência para os sistemas de gestão de safety elaborado pela CANSO e EUROCONTROL (2012):

A gestão dos ANSP deve assegurar que os riscos para a prestação dos serviços operacionais são, tanto quanto possível, reduzidos. Isto requer uma abordagem formal e dinâmica da identificação de perigos, análise de riscos e tomada de medidas de controlo adequadas. Esta abordagem requer estruturas organizacionais, políticas, práticas e cultura (p. 4).

A gestão do risco pretende constrangê-lo a limites toleráveis que permitam a sua aceitação ao ponto de se considerar determinada operação segura. Conforme assinalado por Pidgeon (1991), os sistemas sócio tecnológicos, como é o caso do ATM, caraterizam-se por uma interdependência entre os “artefactos tecnológicos” e os “recursos comportamentais” (p. 131) individuais, de grupo e organizacionais, necessários para a operação em qualquer tecnologia de larga escala.

A dificuldade em avaliar os riscos nos sistemas sócio tecnológicos advém da dificuldade na sua previsão devido à multicausalidade associada aos acidentes, particularmente, aqueles que têm origem humana ou organizacional. As interações entre a componente técnica e social do sistema variam de um modo complexo e imprevisível. No entendimento de Pidgeon (1991), a gestão do risco poderá ser vista como “um mero exercício condicional” (p. 132), visto a avaliação e gestão do risco serem efetuadas com base em técnicas probabilísticas para a sua previsão e fortemente sujeitas à perícia e julgamento do avaliador.

Conforme relembram Booth e Lee (1995), o objetivo primeiro da gestão de safety é “intervir no processo causal do acidente para quebrar a cadeia de causalidade” (p. 395), através de um processo contínuo de identificação de perigos; avaliação, controlo e monitoria de riscos (Figura 10), a fim de prevenir ou detetar falhas latentes ou ativas. Um contribuinte determinante para o sucesso desse processo será a existência de uma “consciência coletiva” do perigo que Weick, Sutcliff e Obtfeld (1999), identificaram nas organizações para as quais o safety é crítico (e.g. indústria química, nuclear, aviação).

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Figura 10: Processos de gestão do risco e garantia do safety

Fonte: Adaptado de Stolzer Halford e Goglia (2008, p. 182)

No passado, a segurança operacional na aviação seguia uma abordagem reativa fly-crash-fix-fly que identificava as causas dos acidentes (Stolzer et al. 2008, p. 13), limitando-se nas situações de evidência de erro humano a encorajar os restantes não envolvidos (e.g. pilotos, controladores de tráfego aéreo), a não repetir os mesmos erros. Entretanto, na prevenção dos acidentes passou a valorizar-se: o contributo proveniente da averiguação das causas, a compreensão holística da identificação dos perigos e gestão de riscos, a cultura organizacional e os fatores humanos. Descrição do sistema Identificação de perigos Análise de risco de segurança Garantir risco de segurança Controlar risco de segurança Inaceitável Acção preventiva/correctiva Avaliação do sistema Análise de dados

Monitoria contínua Auditoria Investigação Novo perigo potencial ou controlo ineficaz Operação do sistema de aviação Aceitável Não conformidade Conformidade Aquisição de informação Gestão de Risco de Segurança Garantia de Segurança

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A suposição que um bom nível de safety corresponde à ausência de acidentes ou incidentes é falaciosa, pois este indicador não nos dá pistas sobre os agentes patogénicos que podem contribuir insidiosamente na organização para a quebra desses níveis de safety. Nesse sentido, reconhece-se relativamente aos SNA, a necessidade da identificação e deteção de ameaças com a necessária contenção do risco dentro de limites razoavelmente praticáveis.

Importa, nomeadamente reconhecer, primeiro que a gestão de segurança é a componente dos serviços de tráfego aéreo que garante que todos os riscos em matéria de segurança são identificados, avaliados e reduzidos de forma satisfatória e, depois, que uma abordagem formal e sistemática da gestão da segurança maximizará os benefícios em termos de segurança de forma visível e rastreável (CE, 2005, p. 14).

A rastreabilidade dos riscos operacionais engloba a supervisão de segurança nas alterações dos sistemas de navegação aérea, conforme previsto pela normativa comunitária (CE, 2007, p. 16):

Todos os serviços de navegação aérea, bem como a gestão de fluxos de tráfego aéreo e a gestão do espaço aéreo, utilizam sistemas funcionais que permitem a gestão do tráfego aéreo. Em consequência, quaisquer alterações nos sistemas funcionais devem ser objeto de supervisão da segurança.

Para este efeito, todos os prestadores de serviços de navegação aérea são instados a proceder à implementação de um Sistema de Gestão de Segurança (Regulamento (CE) Nº 2096/2005, 2005).

A literatura ecoa, igualmente, esta consciencialização, conforme espelha a conclusão de Helmreich (2000), baseada em “lições” de safety retiradas do domínio da aviação: “Dada a ubiquidade da ameaça e do erro, o segredo do safety é a sua gestão efetiva” (p. 782).

Em termos procedimentais, a gestão do risco na aviação, particularmente na navegação aérea (Figura 11), inicia-se com a identificação de perigos e avaliação dos riscos que estes comportam, para decidir o que não é aceitável e obriga a alterações no plano inicial com a finalidade de mitigar os riscos.

Para ser eficaz, o processo de gestão de safety deve considerar o eventual processo de erosão do safety, geralmente gradual ao longo do tempo. Este pode advir na sequência de desvios na própria cultura ou nos procedimentos (Dekker, 2005), ou ser resultante de condições latentes e outras potenciais condições causadoras de acidentes que, por estarem sujeitas a “períodos de incubação” (Reason, 2009, p. 215), aparentam um normal funcionamento do sistema.

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Figura 11: Modelo de gestão de risco aplicado à navegação aérea

Fonte: Adaptado de Dietrich e Jochum (2004, p. 97)