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CAPÍTULO 2 DINÂMICAS EVOLUTIVAS NOS SERVIÇOS DE NAVEGAÇÃO AÉREA

3.3 P ROBLEMÁTICA DOS F ATORES H UMANOS

3.3.1 O elemento humano no sistema

3.3.1.1 Impacto dos fatores humanos

Os fatores humanos, que Sakuma (2000) descreve como um “esforço para harmonizar e otimizar o relacionamento entre pessoas nos seus ambientes de trabalho e vivência com o conhecimento e destreza relacionada com o desempenho humano e suas limitações” (p. 330), incorporam-se no cerne nevrálgico da cultura de safety.

A necessidade de analisar e compreender os fatores humanos, reflete para Higton (2005), a “necessidade de olhar para o elemento humano, o impacto das falhas ou caraterísticas da condição humana” (p. 191). Porém, apesar de se reconhecer o seu posicionamento no cerne da cultura de safety, os fatores humanos não têm uma definição exata, o que leva alguns autores (Drury, 1996; Hawkins, 1987), a definirem este conceito de forma ampla. Assim, na opinião de Hawkins (1987), os fatores humanos representam “toda a interação entre as pessoas e o seu ambiente de trabalho, onde se incluem equipamentos, procedimentos e outras pessoas” (p. 72), o que compreende para Drury (1996), “todos os fatores relacionados com os humanos no sistema” (p. 1082).

O conceito de fatores humanos subjaz à interação necessária entre o ser humano e a tecnologia e ainda com outros humanos presentes no sistema. Reporta-se às capacidades e limitações para desenvolver essa interação, o que confirma o seu estudo como contributo chave para analisar e melhorar o desempenho operacional. Tal como opina Hawkins (1987), a evolução na gestão do risco e prevenção dos acidentes na navegação aérea depende em larga escala dos progressos derivados do conhecimento adquirido nesta área.

O estudo dos fatores humanos na navegação aérea aponta essencialmente para a necessária compreensão da contribuição humana para o erro e respetivas taxonomias, a fim de disponibilizar o apoio e suporte necessários à melhoria do desempenho e redução da probabilidade de erro. Na indústria ATM, onde se operam sistemas sócio tecnológicos

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complexos com prestação de serviços em regime de turnos, são críticos os designados fatores de pressão como a fadiga, stress ou sobrecarga de trabalho, dada a constante exposição ao risco. Relevante é, igualmente, o facto das tarefas cognitivas apenas se poderem inferir a partir do comportamento resultante, o que justifica a dedicação de vários autores ao estudo dos fatores humanos, tanto na aviação (Drury, 1996; Helmreich, 2000; Janic, 2000; Johnson, 1997), como no controlo de tráfego aéreo (Finkelman & Kirschener, 1980; Weikert & Johansson, 1999). Direcionada ao relacionamento com os sistemas técnicos, procedimentos e restantes pessoas inseridas no ambiente de trabalho (ICAO, 1998; ICAO, 2011), a investigação nesta área tem presente a premissa que: “O elemento humano é o mais flexível, adaptável e parte valiosa do sistema de aviação, mas também o mais vulnerável a influências que podem afetar adversamente o seu desempenho” (ICAO Doc 7192 AN/857, 2011, p. 150).

Estima-se que o erro humano figure, ou esteja implicado, em 70 a 80% dos acidentes na aviação (Taneja, 2002), o que valoriza a compreensão dos fatores humanos na prevenção dos acidentes neste domínio. Nesse sentido, vários autores não limitam a sua análise à influência do erro humano na causalidade dos acidentes (Booth & Lee, 1995), mas vocacionam o seu estudo para a otimização do relacionamento entre as pessoas e as respetivas atividades, com o propósito de “construir um melhor sistema de safety” (McDonald, Corrigan, Cromie, & Daly, 2000, p. 51). Conforme atestado por Flin et al. (2000), existe a consciência de que, mais do que falhas técnicas puras, a principal causa de acidentes em indústrias de alta fiabilidade e tecnologia envolve fatores organizacionais, humanos e de gestão. Esta é uma opinião corroborada por diversos autores de safety (Mearns et al., 2003; Zohar, 1980), quando sublinham a importância contributiva dos fatores de cariz cultural, de gestão e organizacionais no processo que gera o acidente. O despontar desta tomada de consciência deu-se após a investigação das causas da explosão do reator nuclear de Chernobyl em 1986, durante a qual a importância dos fatores humanos e das atitudes da gestão organizacional no resultado do desempenho de safety sobressaíram de forma conclusiva (Flin et al., 2000; IAEA, 1992).

Na ótica do safety, a análise da contribuição humana para o erro admite duas perspetivas distintas, sendo a predominante a que trata este componente do sistema como passível de contribuir com atitudes não seguras e, por esse facto, constituindo um perigo suscetível de gerar acidentes catastróficos. A outra abordagem, mais positivista, atribui-lhe uma ação impeditiva do acidente por força da sua capacidade adaptativa e compensatória que lhe permite obviar ou

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retroceder o desenrolar de uma situação potencialmente catastrófica nos sistemas onde intervém.

No caso concreto do controlo de tráfego aéreo a importância dos fatores humanos, da cultura de safety e da comunicação, ressalta da própria essência do serviço, conforme descrito por Miyagi (2005):

O serviço de controlo de tráfego aéreo tem uma característica especialmente marcante que o distingue de todos os outros campos de trabalho. Esta peculiaridade é que, em todo o mundo, as informações e as intenções são transmitidas entre as pessoas apenas por meio de comunicação por rádio em períodos de tempo muito curtos e usando um conjunto mínimo de termos em língua inglesa, mesmo fora das áreas em que o inglês é falado. Por essa razão, o controlo de tráfego aéreo é um domínio especial de trabalho em que os fatores humanos são mais facilmente postos em jogo. O piloto deve compreender as intenções do controlador de tráfego aéreo a partir de um conjunto mínimo de termos e expressões em inglês e imediatamente tomar as medidas adequadas. (...) Se houver diferença de sensibilidade entre piloto e controlador, existe uma extremamente elevada probabilidade de que um evento perigoso ocorra imediatamente (p. 143).

A tendência de crescente automatização das tarefas no controlo de tráfego aéreo (e.g. coordenações automáticas entre setores), descentraliza o erro humano do controlador de tráfego aéreo, enquanto ator de primeira linha no teatro operacional. Uma crescente probabilidade e responsabilidade pelo erro transfere-se gradualmente para a área técnica da manutenção (e.g. substituição das fitas de progresso de voo em papel pelo formato eletrónico acessível num ecrã da consola de operações).

Paradoxalmente, uma elevada automatização em sistemas complexos, como é o caso do ATM, pode ter consequências adversas nos fatores humanos que Vanderhaegen (1997), atribui à provável perda de expertise por inatividade prologada na cadeia de supervisão e controlo ou, antagonicamente, por situações de sobrecarga de trabalho (i.e. workload).