• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 DINÂMICAS EVOLUTIVAS NOS SERVIÇOS DE NAVEGAÇÃO AÉREA

3.2 C ULTURA DE SAFETY

3.2.2 Determinantes da Cultura de Safety

3.2.2.4 Sistema de Gestão de Safety

Na navegação aérea distinguem-se duas responsabilidades relacionadas com o safety: a sua regulação e a sua gestão. A primeira está acometida, no território nacional, à ANAC (anteriormente denominado INAC), que estabelece, supervisiona e faz cumprir os níveis mínimos de segurança de interesse público, em representação do Estado. A segunda, pertence ao foro de competências das organizações prestadoras de serviços de navegação aérea ou ANSP’s.

Para ser efetiva, a gestão dos riscos organizacionais deve estar sistematizada e apoiada num sistema que lhe faculte os instrumentos e estruturas necessárias à prossecução dos seus objetivos. Desse modo, e em concordância com o objetivo de “alcançar um aceitável nível de

safety na aviação civil” (ICAO, 2001, p. 35), a ICAO estabeleceu para os Estados soberanos a

disposição obrigatória de implementarem e desenvolverem um programa de gestão de safety, consoante estabelecido pelo ponto 2.27.1 do Anexo 11 da Convenção de Chicago (ICAO, 2001). Este programa deverá incluir um Sistema de Gestão de Safety, (em inglês, Safety Management

System), a ser entendido como “uma abordagem organizada para a gestão de safety, incluindo

as necessárias estruturas organizacionais, responsabilidades, políticas e procedimentos” (ICAO SMM Doc 8589, 2006b, p. 17), cujo principal objetivo consiste em manter o risco associado à operações da organização confinado a limites aceitáveis.

Os ANSP’s são, assim, instados a implementar um Sistema de Gestão de Safety (SGS) em conformidade com o Anexo 11 da ICAO: “O prestador de serviços de tráfego aéreo deve

[89]

desenvolver e manter um processo formal que assegure a avaliação, análise e controlo dos riscos de segurança nos serviços de operações de tráfego aéreo” (ICAO Annex 11, 2001, p. 78), no âmbito do qual se devem desenvolver as seguintes ações:

a) Identificar perigos de safety;

b) Assegurar a implementação de ações corretivas necessárias para manter o desempenho de safety acordado;

c) Prover a monitoria contínua e avaliação regular do desempenho de safety;

d) Visar o desenvolvimento contínuo do desempenho integral do sistema de gestão de

safety (p. 35).

Este sistema serve o propósito de aplicar sistematicamente princípios de gestão de safety e formalizar práticas e procedimentos que assegurem que os objetivos de safety sejam alcançados.

Encontram-se na literatura, a partir de 1980, referências da aplicação de diversos sistemas de gestão de safety em inúmeras indústrias, estaleiros de construção civil e em todas as atividades que se desenrolam em ambientes onde o risco está continuamente presente (e.g. blocos operatórios e unidades de cuidados intensivos, centrais nucleares, plataformas petrolíferas). No âmbito dos serviços de navegação aérea, o SGS é entendido como ”uma aproximação explícita e sistemática que define as atividades de gestão de segurança operacional empreendidas por uma organização, capazes de alcançar uma segurança aceitável ou tolerável” (ESARR3-Use of Safety Management Systems by ATM Service Providers, p. 16), e que contempla “as necessárias estruturas, responsabilidades, políticas e procedimentos” (CANSO/EUROCONTROL, 2012, p. 11).

Embora definido por Kirwan (1998), como um conjunto de políticas, estratégias, práticas, procedimentos, papéis e funções associados ao safety, este sistema de gestão não se confina a um mero sistema de papéis composto de políticas e procedimentos (Mearns et al., 2003), assumindo um caráter muito mais interventivo. Para tanto, a cultura de safety exerce uma função fundamental no sentido de evitar o SGS que se restrinja a uma mera componente burocrática documentada pelos procedimentos, contribuindo para o seu desenvolvimento através do estímulo do envolvimento participante dos indivíduos nos assuntos de safety. A necessidade de identificar perigos, mitigar os riscos associados e desenvolver a proteção do sistema carece do apoio de “uma poderosa estrutura de filosofia de safety, ferramentas, e

[90]

metodologias que melhoram a sua capacidade para compreender, construir e gerir sistemas proativos de safety” (Stolzer et al. 2008, p. 13). O principal contributo destes sistemas para o desenvolvimento do safety consiste em requerer à organização que examine as suas operações e as decisões com estas relacionadas. Contribuem ainda, na adaptação à mudança e promoção da melhoria contínua através da identificação de perigos com base na recolha de dados e informações reportadas.

Zhang et al. (2002), sublinharam a importância do valor duradouro e prioridade dada ao safety “por todos dentro de todos os grupos em todos os níveis de uma organização” (p. 4), o que é uma caraterística partilhada pela cultura de safety positiva na navegação aérea, que responsabiliza “todos e cada um” pelo impacto das suas ações (ICAO SMM Doc. 9859, 2012c). Na prática, o SGS atua de acordo com um processo cíclico (Figura 12), numa sequência lógica tipificada.

O ciclo inicia-se com a recolha de dados, uma vez que todos os eventos com impacto na segurança operacional têm de ser conhecidos para se proceder à sua análise, o que carece da iniciativa de relato. A comunicação de eventos críticos, obrigatória ou voluntária constitui, assim, a principal fonte de informação para o estudo do safety.

Figura 12: Ciclo do Sistema de Gestão de Safety

Fonte: Elaboração própria

O ciclo prossegue com a análise e investigação desta informação, o que origina na maioria dos casos recomendações de segurança. Estas recomendações concentram-se em repositórios específicos de informação de safety ou são divulgadas documentalmente como “lições aprendidas”, constituindo um espólio informativo importante para a aprendizagem. Todas as recomendações de segurança são posteriormente sujeitas a monitoria e follow-up, encerrando o ciclo com a realimentação dos dados a analisar.

[91]

Uma abordagem sistemática que garanta níveis aceitáveis de risco é o que carateriza qualquer sistema de gestão de safety. Nesse sentido, a CANSO e o EUROCONTROL desenvolveram conjuntamente um referencial de excelência, com linhas orientadoras que auxiliam os ANSP’s a arquitetar um SGS adaptado à sua dimensão e estrutura, com implementações mais sofisticadas à medida que se progride no seu desenvolvimento e se atinge a maturidade. A cultura de safety assume um importante papel facilitador neste referencial, onde figuram os quatro componentes fundamentais do SGS (CANSO/EUROCONTROL, 2012, p. 6):

 Política de safety – Define o compromisso da gestão sénior em dar suporte e melhorar o safety, define métodos, processos e a estrutura e recursos necessários para atingir os objetivos de safety;

 Garantia de safety – Avalia a eficácia das estratégias de gestão de risco implementadas e suporta a identificação de novos perigos;

 Gestão de riscos de safety – Baseia-se na avaliação do risco aceitável para determinar a necessidade ou adequação do controlo do risco;

 Promoção de safety – Aposta na criação duma cultura positiva de safety, fomentando atividades de comunicação e formação para todos os níveis da força de trabalho.

O apoio conferido à cultura de safety no desenvolvimento das políticas estabelecidas concretiza-se na orientação da implementação das práticas e processos de garantia de safety, bem como, nas atividades que o promovem no seio da organização. Pressupõe-se que a sua evolução seja acompanhada por um aumento da sua eficácia, que se inicia com o seu planeamento e implementação inicial, num percurso faseado de gestão e mensuração que culmina num ciclo de melhoria contínua assim que alcança determinado nível de maturidade (CANSO/EUROCONTROL, 2012). A maturidade da cultura de safety e do inerente sistema de gestão de safety revela-se na consciencialização dos colaboradores relativamente à completa responsabilidade pelas suas atitudes.

A implementação de um SGS destina-se a formalizar políticas e práticas de safety, onde se inclui a própria avaliação. Esta é intrínseca ao próprio conceito uma vez que, “para os profissionais de

safety a própria palavra «safety» implica constante mensuração, avaliação e feedback para o

sistema” (Stolzer et. al, 2008, p. 15).

O envolvimento e compromisso dos responsáveis pela gestão deste sistema responde parcialmente pelo seu sucesso, dado que, independentemente da definição de políticas pela

[92]

gestão sénior, os operacionais subvalorizarão a adoção de medidas de segurança caso percebam que os responsáveis pelo sistema preterem o safety em favor da produção (Zohar, 2000). De acordo com Stolzer et al. (2008), um dos aspetos mais importantes do SGS é o impulso que imprime à responsabilidade dos operacionais e o seu envolvimento com o safety, de tal modo que, estes identifiquem as áreas de risco na organização, formas de os mitigar e as consequências dos seus erros. O sucesso deste envolvimento dependerá duma comunicação eficaz, da informação relevante para cada um e da disponibilização de informação sobre os perigos identificados. A gestão do risco deverá por isso estar apoiada numa abordagem de engenharia que, de acordo com Stolzer et al. (2008), deve incluir:

(...) uma rigorosa análise do sistema de identificação de perigos, compreensão das interações entre esses perigos e sistemas de deteção da engenharia, incorporando sistemas redundantes ou paralelos quando apropriado, e determinando pontos de decisão “go/no go”. Finalmente, como o SGS está incorporado num sistema de gestão integrado, o planeamento estratégico de risco deve incluir a transferência do risco, a evitação do risco, e/ou aceitação das consequências - no todo, ou em parte - do risco (p. 20).

Conforme considera Cooper (2000), o SGS é visto como uma manifestação da cultura de safety da organização, na qual se combinam crenças, perceções, atitudes e comportamentos dos indivíduos com o SGS para corporizar a referida cultura. De facto, este sistema traduz a forma como o safety é gerido na organização ao nível da implementação de políticas e procedimentos no local de trabalho (Kennedy & Kirwan, 1998). A sua implementação constitui a forma mais eficiente de alocar recursos ao safety, o que se traduz na melhoria das condições de trabalho e na influência positiva na atitude e comportamento relativamente ao safety com impacto positivo no clima percecionado. Pode considerar-se que o sistema de gestão de safety materializa a competência da organização no que respeita ao safety, dependendo do compromisso e prioridade evidenciados pelos seus gestores.

De acordo com Kirwan e Licu (2008), o sistema de gestão de safety e a respetiva cultura (Figura 13), são os principais elementos que concorrem para o nível de safety dos prestadores de serviços de navegação aérea. A interdependência entre o SGS que incorpora a competência para alcançar o safety, e a própria cultura de safety que representa o compromisso para a alcançar, comunga do objetivo mútuo de manter e desenvolver o safety.

[93]

Figura 13: Interligação entre o Sistema de Gestão de Safety e a Cultura de Safety

Fonte: Adaptado de Kirwan e Licu (2008, p. 2) e EUROCONTROL/FAA (2008, p. 15)

Conforme vem expresso no referencial orientador da CANSO/EUROCONTROL (2012): “Um Sistema de Gestão de Safety fornece uma forte cultura organizacional que prioriza o

safety” (p. 5) e, reciprocamente: “O sucesso de um Sistema de Gestão de Safety é

completamente dependente do desenvolvimento de uma cultura de safety positiva e proativa na organização ANSP” (p. 7).

Nas organizações, a influência da cultura e clima de safety traduz-se na forma como o safety é gerido (e.g. políticas, recursos, práticas), avocando-se ao SGS a responsabilidade organizativa e do modo como as referidas políticas e procedimentos de safety são implementados no local de trabalho.