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Constituição do crédito tributário: o nascimento

2. CONCEITOS DOGMÁTICOS DE DIREITO TRIBUTÁRIO:

2.2. Obrigação tributária e crédito tributário:

2.2.1. Constituição do crédito tributário: o nascimento

Por conta da distinção que o CTN faz entre obrigação e crédito tributário, o tema da constituição deste está envolto em várias discordâncias doutrinárias. Entre essas, destacamos duas: (i) a questão de como esse é constituído; e (ii) quem é o agente competente para tanto.

Trataremos cada um deles separadamente, começando pela questão da forma como o crédito é constituído.

O art. 3º do CTN traz o enunciado prescritivo que trata da definição de tributo de forma conotativa, estipulando critérios para sua identificação. Entre esses critérios, consta expressamente que o tributo deve ser cobrado “mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.

Como a cobrança é feita por meio de atividade administrativa plenamente vinculada, temos que não basta a norma geral e abstrata que institui o tributo. A cobrança do tributo não advém dessa. Essa precisa ser aplicada, conforme explicamos no item 1.4. Em suma, é necessário que haja norma individual e concreta para que o tributo seja cobrado do sujeito passivo.

A essa produção da norma individual e concreta de cobrança do tributo, dá-se genericamente o nome de “lançamento tributário”. Contudo, cabe advertir que essa expressão é plurívoca, pois remete a mais de um significado92.

Portanto, cabe à ciência do direito examinar a questão, e sempre se atentar para a multiplicidade de significados que a expressão comporta, com a finalidade de afastar eventuais incoerências no discurso científico. Assim, deve, por meio de processos de elucidação, apontar qual sentido está sendo atribuído à expressão, com a finalidade de prezar pela coerência de seu discurso93.

Nesse sentido, destacamos que a Constituição Federal dispõe no artigo 143, inciso III, alínea “b”, que cabe à Lei Complementar estabelecer normas gerais de direito tributário relativas à “obrigação, lançamento, crédito, prescrição e

decadência tributários”.

92 Por exemplo, Eurico Marcos Diniz de Santi aponta dez possíveis significados para a palavra

“lançamento”. SANTI, Eurico Marcos Diniz. Lançamento tributário. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 108.

93 "O direito positivo convive com disposições contraditórias - diferentemente do que ocorre com a

Ciência do Direito, em que isso não pode ocorrer dados os princípios da identidade, da não- contradição e do meio excluído (sic) - e, nesses casos, a função do jurista e do aplicador do direito é justamente a de sanar a aparente incompatibilidade, construindo o conteúdo e o alcance da matéria legislada, a fim de estabelecer a melhor solução para o caso concreto". FERRAGUT. Maria Rita.

Por sua vez, o Código Tributário Nacional, dentro de sua atribuição de estabelecer normas gerais de direito tributário, prescreve que:

Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

Vê-se, portanto, que o referido dispositivo indica que o lançamento tributário se trata de: (i) procedimento administrativo; (ii) de competência privativa de autoridade administrativa; que (iii) tem como finalidade constituir o crédito tributários.

Ocorre que em outros dispositivos, o Código Tributário Nacional trata do lançamento como um ato, e não como um procedimento. Isso acontece, por exemplo, no artigo 150, que assim dispõe:

Art. 150. O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa.

Daí surge a primeira controvérsia doutrinária quanto à natureza do lançamento. Afinal, o lançamento é ato ou procedimento?

Tal questão dividiu a doutrina clássica do direito tributário, havendo autores que entendem que o lançamento se trata de procedimento, enquanto outros entendem se tratar de ato.

Entre os autores que entendem se tratar de procedimento, destacam-se ALFREDO AUGUSTO BECKER94 e RUY BARBOSA NOGUEIRA95. Já dentre os que

94 “O lançamento (‘accertamento’) tributário consiste na série de atos psicológicos e materiais ou

jurídicos praticados pelo sujeito passivo (contribuinte), ou pelo sujeito ativo (Estado) da relação jurídica tributária, ou por ambos, ou por um terceiro (...).” BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do

direito tributário. São Paulo: Lejus, 2002, p. 359.

95 “(...) desde logo, podemos acentuar a verdadeira natureza de ato declaratório do lançamento, tendo

em vista que uma vez concluído, êle nada mais faz do que declarar, na conformidade da lei material e preexistente, se há um débito tributário, qual o montante devido e quem é o devedor.” NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Teoria do lançamento tributário. São Paulo: Resenha Tributária, 1965, p. 39.

defendem quem o lançamento tributário tem natureza de ato, destacamos AMILCAR ARAÚJO FALCÃO96 e ALBERTO XAVIER97.

Ressaltamos que a compreensão do lançamento como ato ou procedimento não decorre de uma simples divergência verbal, sem qualquer repercussão jurídica. Essa divergência possui efeitos práticos de extrema relevância, conforme bem observado por PAULO DE BARROS CARVALHO98.

Buscando equacionar o dilema (ou trilema), esse autor firma sua premissa de que o lançamento tem natureza jurídica de ato administrativo99. Porém, observa que a concepção de ato é sempre o resultado de um procedimento. E tanto ato como procedimento precisam estar previstos no direito positivo, ou seja, em normas jurídicas. Diante disso, conclui que ato, procedimento e norma são momentos de uma mesma realidade. Em outras palavras, o lançamento pode ser concebido tanto como ato, procedimento ou norma100.

96 FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato gerador da obrigação tributária. Rio de Janeiro: Forense, 1994. 97 “(...) o artigo 142 do Código Tributário Nacional incorre em sério equívoco ao caracterizar o

lançamento como procedimento administrativo, quando na realidade este instituto assume o caráter de um ato jurídico, mais precisamente o ato administrativo que aquele procedimento visa preparar.” XAVIER, Alberto. Do lançamento: teoria geral do ato, do procedimento e do processo tributário. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

98 PAULO DE BARROS CARVALHO dá um exemplo prático decorrente da divergência da natureza

jurídica de ato ou procedimento do lançamento tributário “Esse dilema, ‘ato ou procedimento’, que pode ser transformado num trilema: ‘ato ou procedimento, ou ambos’, reflete uma dúvida sem a solução da qual uma pesquisa mais séria ficaria sensivelmente prejudicada. Perante a Dogmática do Direito Administrativo, sabemos, essas entidades são diferentes e os efeitos práticos a que dão ensejo também apontam para direções distintas. Vejamos um exemplo bem simples. Diante das proposições afirmativas (1) lançamento é procedimento e (2) instaurou-se o procedimento de lançamento, poderíamos concluir: já que existe o procedimento, existe também o lançamento; e se o lançamento existe, vamos começar a contar o prazo que culmina com o fato da prescrição.”. Curso de

direito tributário. 18 ed., São Paulo: Saraiva, 2007, 390-391.

99 “Lançamento é ato jurídico administrativo, da categoria dos simples, constitutivos e vinculados,

mediante o qual se insere na ordem jurídica brasileira u’a norma individual e concreta, que tem como antecedente o fato jurídico tributário e, como consequente, a formalização do vínculo obrigacional, pela individualização dos sujeitos ativo e passivo, a determinação do objeto da prestação, formado pela base de cálculo e correspondente alíquota, bem como pelo estabelecimento dos termos espaço- temporais em que o crédito há de ser exigido”. Idem, p. 404.

100 “A compreensão da figura do lançamento fica mais nítida quando refletimos sobre a convergência

das palavras ‘norma’, ‘procedimento’ e ‘ato’, tomadas como aspectos semânticos do mesmo objeto. Importa dizer, se nos detivermos na concepção que o ato é, sempre, o resultado de um procedimento e que tanto ato quanto procedimento hão de estar, invariavelmente, previstos em normas do direito posto, torna-se intuitivo concluir que norma, procedimento e ato são momentos significativos de uma

Outro ponto que também a redação do Código Tributário Nacional causa divergências doutrinárias é em relação ao agente competente para efetuar o lançamento.

Conforme vimos anteriormente, o art. 142 do CTN prescreve que o lançamento compete privativamente às autoridades administrativas.

Todavia, o parágrafo 1º do art. 150 do CTN possibilita a interpretação de que o crédito também pode ser constituído pelo próprio sujeito passivo:

§ 1º O pagamento antecipado pelo obrigado nos termos deste artigo extingue o crédito, sob condição resolutória da ulterior homologação ao lançamento.

Conforme se verifica na redação do enunciado acima transcrito, ao dizer que o pagamento antecipado extingue o crédito tributário, abre-se margem para a interpretação de que o próprio sujeito passivo é o responsável pela sua constituição.

Se o pagamento antecipado extingue o crédito tributário, ele precisa ser anteriormente constituído. Não se pode extinguir algo que não existe. E, se ele é antecipado, também não há qualquer ato (ou procedimento) da Administração Pública, nos termos do art. 142 do CTN.

Assim, surge mais essa divergência, que diz respeito a quem seria competente para realizar o lançamento tributário.

Entre os autores que defendem que o crédito tributário somente pode ser constituído por autoridades administrativas, destacamos RUBENS GOMES DE SOUZA101, RUY BARBOSA NOGUEIRA102 e JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES103.

101 “só os funcionários do governo, especialmente encarregados dessa missão, é que podem fazer

lançamentos”. SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de legislação tributária. São Paulo: Resenha Tributária, 1975, p. 102.

102 “(...) a atividade do contribuinte ou do terceiro obrigado, no procedimento de lançamento, é apenas

de colaboração ou cooperação e se é de grande auxílio aos trabalhos administrativos, como de interesse do próprio contribuinte para melhor vigilância de seus direitos, entretanto ela não chega a ser imprescindível. Essa atividade é, pois administrativa e finalmente privativa da autoridade fiscal. Por isso mesmo a participação do particular na atividade de lançamento não é elemento caracterizador da natureza jurídica do lançamento, pois essa participação não faz parte da sua

Em sentido oposto, destacamos o entendimento de PAULO DE BARROS CARVALHO, que entende que a constituição do crédito tributário pode ser feita tanto pelo particular como pela administração pública104.

Porém, mesmo admitindo que a competência para constituir o crédito tributário pode ser atribuída tanto para a Administração Pública, como para o particular, o referido autor, por força do disposto no art. 142 do CTN, emprega a locução “lançamento tributário” apenas para quando o crédito é constituído pela Administração. Para os casos em que a norma individual e concreta é expedida pelo sujeito passivo, a expressão empregada é “autolançamento”105.

Quanto a isso, informamos que a posição adotada nesse trabalho é a de PAULO DE BARROS CARVALHO, que é também o entendimento consolidado na jurisprudência do STJ, conforme se verifica na ementa abaixo:

TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C, DO CPC. TRIBUTO SUJEITO A LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO, DECLARADO E NÃO PAGO PELO CONTRIBUINTE. NASCIMENTO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. CERTIDÃO POSITIVA COM EFEITOS DE NEGATIVA DE DÉBITO. IMPOSSIBILIDADE.

essência.” NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Teoria do lançamento tributário. São Paulo: Resenha Tributária, 1965, p. 61.

103 “No Direito Positivo brasileiro, entretanto, essa distinção carece de qualquer significado e

aplicabilidade, dado que o lançamento, em qualquer hipótese, é sempre de competência privativa da autoridade administrativa (art. 142, caput)”. BORGES, José Souto Maior. Lançamento tributário. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 370.

104 “Quando se fala em expedição de norma jurídica individual e concreta vem, desde logo, à nossa

mente, o desempenho de um órgão da Administração Pública ou do Poder Judiciário. E, se passarmos apressadamente, sem refletir, essa ideia equivocada irá provocar um bloqueio, fixando o preconceito de que o administrado, na esfera de suas múltiplas possibilidades de participação social, reguladas pelo direito, esteja impedido de produzir certas normas individuais e concretas. Mas, não é assim no direito brasileiro. Basta soabrirmos os textos do ordenamento positivo, no que concerne aos tributos, para verificarmos esta realidade empírica indiscutível: o subsistema prescritivo das regras tributárias prevê a aplicação por intermédio do Poder Público, em algumas hipóteses, e, em outras, outorga esse exercício ao sujeito passivo, de que se espera, também, o cumprimento da prestação pecuniária”. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 18 ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 383.

105 Quando celebrado pelo Poder Público, mediante iniciativa que a lei prevê, seja de modo originário,

seja em caráter substitutivo daquele que o contribuinte não fez em tempo hábil, como também a lei estabeleceu, utilizaremos o nome “lançamento tributário”, empregando “autolançamento” para as circunstâncias em que a expedição da norma individual e concreta fique por conta do sujeito passivo.

1. A entrega da Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais - DCTF - constitui o crédito tributário, dispensando a Fazenda Pública de qualquer outra providência, habilitando-a ajuizar a execução fiscal.

(...)

6. Recurso Especial desprovido. Acórdão submetido ao regime do art.543-C do CPC e da Resolução STJ 08/2008.

(REsp 1123557/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/11/2009, DJe 18/12/2009)

Portanto, recapitulando: lançamento é quando o crédito é constituído pela Administração Pública; autolançamento é quando o crédito é constituído pelo particular.

Tais atos são diferentes apenas porque praticados por sujeitos distintos. Porém, em ambos os casos está-se falando em emissão de normas individuais e concretas que constituem o crédito tributário.

O processo de positivação e a fenomenologia da incidência são semelhantes, apesar de não obedecerem exatamente às mesmas normas de competência e regimes jurídicos. Todavia, o percurso gerador de sentido, é feito exatamente da mesma forma.

Constituído o crédito tributário - seja pelo lançamento ou pelo autolançamento -, este tem como destino a sua extinção, que pode ocorrer por qualquer uma das formas do artigo 156 do Código Tributário Nacional.

Todavia, entre seu nascimento e morte, o crédito tributário vive. E sua vida consiste no que chamamos de cobrança do crédito tributário, que é o tema do próximo item desse capítulo.

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