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O direito em movimento: incidência e aplicação

1. CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE TEORIA GERAL DO DIREITO

1.4. O direito em movimento: incidência e aplicação

Conforme expusemos anteriormente, uma das formas que as normas jurídicas se relacionam no ordenamento é a subordinação. E essa, basicamente, consiste nas relações verticais de fundamentação e derivação. Dito de outra forma: é por meio das relações entre normas superiores e inferiores que o direito caminha em direção às condutas humanas.

Ocorre que entre essas partes do todo, há sempre algo que as conecta. Esse algo é justamente a incidência das normas jurídicas. Metaforicamente falando, se as normas fossem os tijolos de uma construção, a incidência seria a aplicação do cimento que os liga, e compõe o todo do edifício.

É nesse aspecto que se revela a perspectiva dinâmica do direito positivo, ou seja, na sua construção feita pelos aplicadores.

Por conta disso os temas da incidência, aplicação e processo de positivação são fundamentais para a compreensão da suspensão da exigibilidade, pois o ato de exigir nada mais é do que caminhar na direção da extinção do crédito tributário.

Assim, nesse item falaremos das teorias da incidência, e sua relação com a ideia de aplicação do direito. Compreendido isso, trataremos da classificação das normas jurídicas com base nesse critério. Firmadas essas premissas, analisaremos o processo de positivação, que é a visão macro de toda a fenomenologia.

Comecemos pela incidência.

Quanto a isso, a geometria confere a este vocábulo a acepção de “encontro de duas linhas ou superfícies”33. Em sentido semelhante, os físicos falam sobre a incidência de luz sobre os objetos. Em todos esses campos do conhecimento, a noção de incidência é o encontro de algo com outra coisa.

33 AULETE, Caldas. Aulete Digital – Dicionário contemporâneo da Língua Portuguesa. Disponível em:

No campo do direito, o termo incidência foi cunhado por PONTES DE MIRANDA34. Para esse autor, o conceito se refere à juridicização de fatos e à instalação da relação jurídica correspondente. Dito de outra forma, a incidência seria o encontro da norma jurídica com o fato social por ela regulado, e a produção de seus efeitos jurídicos.

Com base nisso, sua teoria da incidência foi construída pautada na noção de que esta ocorre de forma automática e infalível35. Ou seja, a incidência se verifica no momento em que ocorre o acontecimento na realidade social. A aplicação surge posteriormente, quando a incidência é formalizada pela autoridade competente.

Nota-se, portanto, que para teoria ponteana os conceitos de incidência e

aplicação são distintos. Cada um ocorre em momento diverso, podendo, inclusive,

um ocorrer sem o outro. A aplicação seria apenas a formalização de direitos, supostamente já atingidos pela incidência. Conclusão disso é que a incidência seria algo que ocorre independente de ato humano, enquanto a aplicação é algo que depende da vontade.

Por outro lado, PAULO DE BARROS CARVALHO desenvolve sua teoria da incidência partindo de premissas diversas. Para o autor, “não se dará a incidência se não houver um ser humano fazendo a subsunção e promovendo a implicação que o preceito normativo determina”36.

Dentro dessa perspectiva, o direito positivo e a realidade social são planos que não se confundem. Enquanto o primeiro se caracteriza por uma

34 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Tomo I. Rio de Janeiro:

Editor Borsoi, 1970.

35 “Infalibilidade da incidência. A incidência da lei, pois que se passa no mundo dos pensamentos e

nele tem de ser atendida, opera-se no lugar, tempo e outros ‘pontos’ do mundo, em que tenha de ocorrer, segundo as regras jurídicas. E, portanto, movel. Tal o jurídico, em sua especificidade, frente aos outros processos sociais de adaptação. A incidência ocorre para todos, posto que não a todos interesse: os interessados é que têm de proceder, após ela, atendendo-a, isto é, pautando de tal maneira a sua conduta que essa criação humana, essencial á evolução do homem e á sua permanência em sociedade, continue de existir.” Idem, p. 16.

36 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 5ª Ed. São

linguagem prescritiva de condutas (mundo do dever ser), o segundo se caracteriza por uma linguagem descritiva (mundo do ser).

Essa premissa faz com que o autor chegue à conclusão de que enquanto não houver relato em linguagem jurídica, nada existe para o direito. É preciso que os fatos sociais sejam constituídos em linguagem prescritiva para que ingressem no ordenamento e produzam efeitos jurídicos.

No que tange essas duas teorias, destacamos que TÁCIO LACERDA GAMA apresentou estudo sobre as premissas adotadas por esses dois autores, e chegou à conclusão que as duas teorias são compatíveis. As conclusões de cada um são divergentes pelo simples fato de partirem de pontos de vistas distintos: o ponto de vista do observador e o ponto de vista do participante37.

Nesse sentido, a teoria da incidência de PONTES DE MIRANDA vê a incidência do ponto de vista do observador, ou seja, de quem está fora do ordenamento jurídico. Da perspectiva do observador, não se distingue o ordenamento jurídico da realidade social. É por isso que esse autor entende que a linguagem do direito vai diretamente ao encontro da linguagem da realidade social, sem precisar de qualquer ato humano para incidir.

Já a teoria de PAULO DE BARROS CARVALHO parte do ponto de vista do participante, ou seja, de quem atua dentro do ordenamento jurídico. Sob essa perspectiva, a incidência é dependente de ato humano que constitua em linguagem jurídica os eventos ocorridos na realidade social. Por conta disso, não haveria distinção entre incidência e aplicação. Em outras palavras, “não há hipótese da

norma incidir por conta própria e não ser aplicada. Sempre que ela incidir é porque foi aplicada por alguém”38.

37 “Os participantes seriam órgãos do sistema de direito positivo que interpretam e aplicam normas,

produzindo, assim, mais normas. Esses sujeitos positivam suas interpretações. Já os observadores, diversamente, expõem aquilo que entendem da leitura dos textos legais. Fixam conceitos, classificações e sugerem como deve ser entendida uma norma. Ao fazer isso, produzem doutrina, ciência jurídica, não direito positivo.” GAMA, Tácio Lacerda. Competência tributária – fundamentos

para uma teoria da nulidade. São Paulo: Noeses, 2008, p. 128.

38 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de Teoria Geral do Direito (o constructivismo lógico-

Dentro de tudo que foi exposto, a posição que será adotada nesse trabalho é a de PAULO DE BARROS CARVALHO, tendo em vista que o que se pretende é analisar o fenômeno da suspensão da exigibilidade sob a perspectiva do participante.

Portanto, no presente trabalho incidência e aplicação serão utilizados como conceitos sinônimos.

Dessa forma, é importante reafirmar a premissa adotada de que os planos de linguagens do direito positivo e da realidade social não se confundem, apesar de admitirmos a possibilidade de uma linguagem interferir na outra, ou seja, de norma jurídica influenciar comportamentos sociais39.

É nesse sentido que se diz que a linguagem do direito é semanticamente aberta (heterogeneidade semântica), e sintaticamente fechada (homogeneidade sintática).

Aliás, a percepção da homogeneidade sintática do direito positivo – norma como estrutura bimembre (antecedente e consequente) - é que torna possível a classificação das normas jurídicas com base no fenômeno da incidência. Esse é o tema que será abordado a seguir.

39 “Convém esclarecer, entretanto, que aludir-se a ‘alterar a conduta’ não significa uma intervenção

efetiva, concreta, de tal modo que a linguagem do dever-ser mexesse materialmente no seu alvo, o ser da conduta. Opero sobre a premissa que não se transita, livremente, sem solução de continuidade, do dever-ser para o mundo do ser. Aquilo que se pretende comunicar com a expressão ‘alterar a conduta’ é a formação de um crescente estímulo para que os comportamentos sejam modificados. E o direito, com seu aparato coativo, sempre representou u’a motivação muito forte para se obter a transformação dos comportamentos sociais”, CARVALHO. Paulo de Barros. Direito

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