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O mito da (in)eficácia das normas jurídicas

1. CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE TEORIA GERAL DO DIREITO

1.7. Validade, Vigência e Eficácia: uma questão relacional

1.7.2. Relação entre as Partes no Todo: vigência e eficácia

1.7.2.1. O mito da (in)eficácia das normas jurídicas

Tradicionalmente o estudo da eficácia leva em consideração os efeitos das normas jurídicas. Assim, essa noção não se confundiria com a vigência, tendo em vista que esta é a aptidão para a produção de efeitos, enquanto aquela seria a própria produção dos efeitos51.

Todavia, dentro da concepção que adotamos de norma jurídica e de incidência, a noção de eficácia não se sustenta, conforme demonstraremos nesse tópico.

PAULO DE BARROS CARVALHO52, com fundamento nas lições de TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR53, diferencia três pontos de vista no estudo da eficácia: (i) eficácia técnica; (ii) eficácia jurídica; e (iii) eficácia social.

A eficácia técnica diz respeito à observação de que estão presentes no ordenamento todas as condições operacionais que garantem a aplicação da norma. Com base nisso, fala-se em ineficácia técnica quando há falta de condições sintáticas, semânticas ou pragmáticas na aplicação da norma jurídica. Assim, haveria três subtipos de (in)eficácia técnica.

1. A ineficácia técnico-sintática seria quando uma norma está impossibilitada de ser aplicada por falta de regulamentação; ou pela existência de outra norma inibidora. Vê-se, portanto, que a não

51 Nas palavras de AURORA TOMAZINI CARVALHO: “Uma coisa é a norma estar apta a produzir as

consequências que lhe são próprias, outra coisa é a produção destas consequências”. Curso de

Teoria Geral do Direito (o Constructivismo Lógico-Semântico). São Paulo: Noeses, 2009, p. 721.

52 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 5 ed. São

Paulo: Saraiva, 2007, p. 62-65.

53 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação.

aplicação é de ordem formal, e decorre de uma relação entre normas (signo x signo);

2. A ineficácia técnico-semântica ocorreria pela falta de condições materiais que impedem a aplicação da norma. Isso acontece quando para aplicá-la, é necessário que outra norma expresse o conteúdo semântico de determinado vocábulo contido no enunciado prescritivo. Assim, vê-se que a não aplicação decorre da relação entre signo e significação.

3. A ineficácia-pragmática se daria quando os obstáculos para aplicação da norma se encontram naqueles que integram a comunidade linguística do direito. O exemplo que se dá é quando as normas válidas e vigentes caem no desuso, e não são mais aplicadas pela “convicção de certo grupo de pessoas encarregadas de fazer incidir a linguagem do direito sobre a faticidade social”54. Aqui a relação é entre signo e utente.

Assim, a eficácia técnica se refere à possibilidade de aplicação da norma jurídica plenamente, não havendo qualquer óbice de ordem sintática, semântica ou pragmática para isso.

Todavia, relembrando as premissas adotadas, norma jurídica em sentido

estrito se trata da significação contida no intelecto do intérprete. A norma jurídica é

construída a partir de um processo interpretativo, que tem início na leitura de enunciados prescritivos (i.e, norma jurídica em sentido amplo).

Além disso, a norma jurídica em sentido estrito não existe fora do processo de aplicação, sendo impossível falar em normas gerais e abstratas soltas

54 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de Teoria Geral do Direito (o Constructivismo Lógico-

no sistema. Essas são formadas simultaneamente com as normas individuais e concretas no momento da aplicação55.

Assim, não há que se falar em norma ineficaz, ou seja, em norma jurídica

em sentido estrito sem eficácia técnica. Se essa é formada no intelecto do intérprete

participante, no momento em que ocorre a aplicação, é impossível falar de obstáculos sintáticos, semânticos ou pragmáticos que impedem a sua aplicação.

A norma em sentido estrito só é norma quando aplicada. Se não é possível aplicá-la é porque há falta de enunciados prescritivos, ou enunciados prescritivos impeditivos, que não permitem que o intérprete alcance os níveis S3 ou

S4. Como não se chega a esses patamares no processo de construção de sentido,

não há que falar em juízo hipotético condicional (norma em sentido estrito).

Cabe atentar que tal entendimento não passou despercebido nas lições de TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM56:

Norma alguma no sistema do direito positivo tem o condão de irradiar efeitos sem que seja aplicada. Explica-se. A norma jurídica não incide se não for aplicada. Não há possibilidade de incidência (juridicização de fatos) da norma sobre o mero acontecimento social sem enunciação por agente credenciado. Por isso mesmo, quando empregado no sentido de

“possibilidade de irradiar efeitos quando ocorrido o fato previsto em alguma hipótese normativa”, o conceito de eficácia técnica é um mito. Nesse

sentido, nenhuma norma parece possuir eficácia técnica, e, para que a tenha, deve ser aplicada. A eficácia técnica de N1 é constatada no seio da enunciação-enunciada ou do enunciado-enunciado que resultam de sua aplicação. Em resumo, não há eficácia e incidência sem ato de aplicação.

Dessa forma, por não se coadunar com a premissa metodológica de que o direito é um plano linguístico, a noção de eficácia técnica deve ser abandonada.

55 Nesse sentido, JOÃO MAURÍCIO ADEODATO, na esteira de pensamento de FREDRICH MÜLLER,

ensina que somente se pode falar em normas abstratas e concretas no momento da decisão, ou seja, no momento de aplicação: “Fredrich Müller, (...), defende a tese de que só na norma decisória é que efetivamente se constitui a norma jurídica, isto é, não cabe falar em norma jurídica em abstrato. Esse processo Müller denominou ‘concretização’ da norma jurídica, o qual se insere em um fenômeno mais amplo da linguagem humana, podendo a sua ser considerada uma teoria linguística do direito”. Uma

Teoria Retórica da Norma Jurídica e do Direito Subjetivo. São Paulo: Noeses, 2011, p. 223.

56 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Revogação em Matéria Tributária. São Paulo: Noeses, 2005, p.

No que diz respeito à eficácia jurídica, ensina-se que se trata de uma propriedade do fato jurídico, e não da norma, atribuída em decorrência da sua aplicação57.

Vê-se, portanto, que a eficácia jurídica seria o desenlace do consequente normativo decorrente da ocorrência do antecedente das normas individuais e concretas (i.e., fato jurídico).

Todavia, essa noção de eficácia jurídica também não se sustenta, tendo em vista que os fatos jurídicos (i.e., antecedentes das normas concretas), não existem isoladamente no sistema.

Os fatos estão sempre inseridos no bojo de uma norma jurídica concreta. E se há norma jurídica, necessariamente deve estar composta por meio de uma estrutura de juízo hipotético-condicional, em que necessariamente há um consequente.

Dito de outra forma, o sistema não comporta antecedentes desconectados de consequentes normativos. É nesse sentido que se deve compreender a expressão que a norma jurídica é o mínimo irredutível de manifestação do deôntico. Pois, sem pelo menos um antecedente e um consequente não é possível falar em norma jurídica em sentido estrito. Pensar de forma diversa é reduzir o irredutível.

Mais uma vez TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM58 observa o seguinte:

Dizer que a eficácia é qualidade do fato e não da norma parece olvidar que o fato jurídico está no interior da norma concreta (seja enunciação- enunciada, seja enunciado-enunciado). Não há fato jurídico fora da norma jurídica. Sem que haja enunciação por agente credenciado, o simples

57 Nas palavras de AURORA TOMAZINI CARVALHO: “A eficácia jurídica decorre do vínculo, da

causalidade jurídica, vínculo segundo o qual verificado para o direito o fato descrito na hipótese normativa, instala-se a relação jurídica como seu efeito imediato”. CARVALHO, Aurora Tomazini de.

Curso de Teoria Geral do Direito (o Constructivismo Lógico-Semântico). São Paulo: Noeses, 2009, p.

726.

58 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Revogação em Matéria Tributária. São Paulo: Noeses, 2005, p.

acontecimento no mundo social que encontra contraparte em uma hipótese normativa permanece fora da realidade normativa sem produzir qualquer efeito jurídico. Isso não significa dizer que a eficácia não existe. Antes, pelo contrário, ela se faz presente a todo momento no seio da norma positiva e o direito pode protraí-la ou retrotraí-la como bem entender, é claro, desde que em conformidade com os postulados do sistema.

Portanto, como a estrutura mínima é composta por antecedente e consequente, a conclusão seria que todas as normas possuem eficácia jurídica, tornando esse conceito pouco útil.

Por fim, fala-se de eficácia social, também denominada de efetividade, que seria a verificação se há coincidência entre a realidade jurídica e a realidade social. Ou seja, a efetividade diz respeito à repercussão da norma jurídica na sociedade59.

Tal noção não interessa ao estudo dogmático do direito positivo. Isso porque é irrelevante para o direito se a conduta regulada é cumprida ou descumprida pelos indivíduos no plano social. Tais efeitos são observados fora do âmbito jurídico e por isso seu estudo interessa apenas dentro da metodologia própria da Sociologia do Direito.

Feitas essas considerações, concordamos com TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM60, no sentido que “da forma como postos, os conceitos de ‘eficácia técnica’, ‘eficácia jurídica’ e ‘eficácia social’ encontram-se fora de contexto com a teoria segundo a qual o direito é um fato dependente de linguagem”.

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