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Debate sobre a escola e consagração normativa da autonomia

AUTONOMIA E GOVERNAÇÃO POR CONTRATO

4. Debate sobre a escola e consagração normativa da autonomia

A década de 80, marcada por fortes tensões resultantes, por um lado, do desejo de se consolidar uma escola democrática e, por outro, da dificuldade de o sistema responder às novas realidades com que passou a defrontar-se, especialmente as resultantes dos novos públicos que chegaram à escola, foi a década da identificação da crise do ensino e da educação e da reflexão sobre a política educativa. Promoveu- se o debate sobre o estado da educação e da escola em Portugal, ocorrendo o regresso do tema da autonomia das escolas à ribalta do vocabulário político no âmbito da chamada “Reforma Educativa”.

Os primeiros sinais são dados em Fevereiro de 1986 quando é nomeada uma Comissão responsável pela Reforma do Sistema Educativo (CRSE), fazendo parte do plano de actividades a desenvolver por essa Comissão o "estudo das condições que justifiquem a atribuição de maior autonomia aos estabelecimento de ensino não superior" (p. 44), discutindo-se pela primeira vez o conceito de escola autónoma.

A CRSE, no seu Plano Global de Actividades, denunciava a “inadequação dos esquemas de ensino superior e não superior, na perspectiva da autonomia das instituições, da eficiência e da participação dos agentes educativos” e propõe a “implementação de políticas de efectiva descentralização da administração educativa e da consagração legal e regulamentação do princípio da autonomia relativa das escolas no domínio administrativo e financeiro” (Barroso, 2004, p. 55). No primeiro documento que divulgou, meses antes da aprovação da Lei de Bases, subordinado ao título Projecto Global de Actividades (1986), a Comissão assumia a necessidade de "descentralizar a administração educativa, tanto no plano regional e local como no plano institucional", de proceder ao "reforço das competências dos estabelecimentos de ensino básico e secundário" e à "consolidação e enriqueciment qualitativo da

gestão democrática nos ensinos básico e secundário". A autonomia das escolas e a sua gestão participativa eram expressamente afirmadas.

No último documento que produziu, e que entregou ao governo, intitulado Proposta Global de Reforma, a Comissão admitiu a "falência do modelo centralizador" (1988, p. 29) e apresentou a proposta de "uma ampla autonomia das Escolas, dos pontos de vista administrativo e financeiro e da organização e funcionamento pedagógico" (1988, p. 49), passos essenciais para que a escola portuguesa passasse a deixar de ser vista pelo Estado como uma unidade administrativa da Administração Educativa Central, governada por regras e directivas da administração central e passasse a construir a sua autonomia.

Por sua vez, a Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei n.º 46/86) tornou-se um texto de referência para a elaboração das políticas educativas. Embora não fale expressamente em “autonomia” das escolas, consagra como princípios organizativos “Descentralizar, desconcentrar e diversificar as estruturas e acções educativas de modo a proporcionar uma correcta adaptação às realidades, um elevado sentido de participação das populações, uma adequada inserção no meio comunitário e níveis de decisão eficientes” (art.º 3.º, alínea g) e estabelece, como princípios gerais da Administração do Sistema Educativo que este “deve ser dotado de estruturas administrativas de âmbito nacional, regional autónomo, regional e local que assegurem a sua interligação com a comunidade mediante adequados graus de participação dos professores, dos alunos, das famílias, das autarquias, de entidades representativas das actividades sociais, económicas e culturais e ainda de instituições”, (art.º 46.º, n.º 2) pelo que “serão adoptadas orgânicas e formas de descentralização e de desconcentração dos serviços”( art.º 46.º, n.º 3).

A insistência no tema da autonomia e a sua função de conceito mobilizador para a reforma da administração da educação em geral são visíveis, desde logo, no próprio programa do governo iniciado em 1987:

A reforma da administração educacional prevê o reforço da autonomia da escola, enquanto lugar privilegiado onde se efectiva o processo educativo e o desenvolvimento de projectos pedagógicos próprios. Uma ampla descentralização e desconcentração de funções e de poderes, aproxima a administração dos protagonistas efectivos da acção educativa (…), aumentando os índices de eficiência e eficácia dos meios colocados à

disposição do sector educativo. Será enriquecido o papel da escola, como núcleo activo de promoção de alianças estratégicas entre os vários intervenientes da comunidade educativa e incentivada uma intensa participação da comunidade na gestão da escola, com especial relevo para os pais, os empregadores, as autarquias e instituições locais (Portugal, 1987).

Essa mesma temática e os mesmos princípios estavam presentes nos discursos do Ministro da Educação a quem a comunicação social deu grande visibilidade:

É preciso inverter a lógica do sistema. O nosso objectivo chama-se autonomia de escola. (...) A escola preparatória e secundária tem que ter uma vivência própria, o seu projecto, a capacidade para o realizar com responsabilidade. E tem de ser avaliada pelos seus méritos e deméritos, em função dos projectos. Terá de haver um quadro normativo geral - não estamos a falar de independência das escolas - regras gerais e critérios de fundo, para que cada escola seja capaz de dizer como quer realizar os seus objectivos, e como vai gerir os meios que possui (humanos, orçamentais e institucionais). É necessário resgatar a escola da pressão burocrática e administrativa a que tem sido submetida (Roberto Carneiro, cit in Barroso, 2004, p. 56).

Esta orientação política acabou por ter expressão legal. Assim, em 1989, em pleno XI Governo Constitucional, é consagrada normativamente a autonomia de escola, através do Decreto-Lei n.º 43/89, de 3 de Fevereiro, conhecido na época por “decreto da autonomia”. Este documento definiu pela primeira vez um quadro orientador de regime de autonomia de escola, entendida como “a capacidade de elaboração e realização de um Projecto Educativo, em benefício dos alunos e com a participação de todos os intervenientes no processo educativo”. No seu preâmbulo afirma que “a reforma educativa não se pode realizar sem a reorganização da administração educativa, visando inverter a tradição de uma gestão demasiado centralizada, transferindo poderes de decisão para os planos regional e local”. Dá ênfase à centralidade da escola consagrando: “no contexto de uma mais ampla desconcentração de funções e de poderes assume particular relevância a escola (...) como entidade decisiva na rede de estruturas do sistema educativo”. Acrescenta que a autonomia da escola se desenvolve nos planos cultural, pedagógico e administrativo, dentro dos limites fixados pela lei e se exerce através de competências próprias em vários domínios como a gestão de currículos e programas

e actividades de complemento curricular, na orientação e acompanhamento de alunos, na gestão de espaços e tempos de actividades. Reconhece o mesmo diploma que “a implementação da autonomia de escola exige condições, recursos e apoios de vária ordem pelo que a transferência de competências e poderes para a escola deve ser progressiva“.

Apesar da retórica e da visibilidade dada discursivamente à autonomia, para Barroso (2004, pp. 56-57) o diploma que consagrou a autonomia da escola (Decreto- Lei n.º 43/89) não passou de uma declaração de intenções sobre a necessidade das escolas desenvolverem um projecto educativo e de um inventário de atribuições e competências avulsas que, nuns casos, já correspondiam à prática das escolas e que, noutros, eram irrealizáveis por falta de meios financeiros e de recursos humanos.

Considera Lima (1998, p. 70) que do ponto de vista da lógica reformista, iniciada em 1986, parecerá difícil não concluir que a reforma da administração do sistema educativo e das escolas “ terá sido uma reforma fracassada” tendo persistido o paradigma da administração centralizada permanecendo por cumprir as promessa e expectativas em torno da autonomia das escolas.