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Regulação Sociocomunitária

ESTADO, REGULAÇÃO E GOVERNAÇÃO

5. Novos modos de regulação

5.3. Regulação Sociocomunitária

Com o virar do milénio diminui a euforia “neoliberal” e assiste-se à emergência de propostas alternativas incluindo a que vai no sentido de reactivar formas de intervenção sociocomunitária na gestão da coisa pública.

Azevedo (2008) defende a “regulação sociocomunitária da educação” à luz da teoria sistémica (Rosnay, 1977), da teoria da regulação social Reynaud (2003) e Terssac (2003), da reflexão sobre as práticas comunitárias (Butcher, Banks, Henderson & Robertson, 2007) e advoga projectos sociocomunitários como alternativa a uma regulação de controlo degradada, hiper-regulamentadora e “regrívora” e a uma regulação autónoma e conjunta incipientes. Os projectos sociocomunitários apresentam as seguintes características:

 centram-se numa multirregulação que valoriza a regulação que brota das práticas comunitárias e de construção do bem comum educacional;

 estimulam o poder local, a cooperação entre as instituições e as pessoas, cooperação esta geradora de compromissos concretos e de uma cidadania activa, capaz de contrariar a “lassidão dos actores” e a cristalização dos “silos” sociais;

 acreditam nas pessoas, no diálogo entre elas e as suas instituições;

 as práticas comunitárias em prol da educação aumentam e melhoram a responsabilidade social dos cidadãos e das instituições locais, revitalizam o “poder com” e promovem o capital social existente nas comunidades;

 fomentam a procura de equilíbrios, o desenvolvimento de projectos comunitários que mobilizam ao máximo o capital social existente;

 sustentam a mudança nos processos e a melhoria da educação, em visões partilhadas, e na capacidade de exercício de efectivo poder por parte das instituições locais, numa base de participação democrática (Azevedo, 2008, pp.18-19). .

Também numa lógica sociocomunitária, Barroso (2004, p. 63) defende a autonomia da escolas como processo social pelo qual os professores, os pais, os alunos e outros cidadãos se mobilizam numa determinada escola para, num quadro de orientações gerais de um sistema público nacional de ensino, obterem um

compromisso e empreenderem uma acção colectiva – a construção de um projecto educativo e a prestação de um serviço público local de educação. Preconiza este autor lógicas de contratualização e formas de acção através de “contratos de acção pública”, a partir de negociações explícitas como nova forma de fazer políticas públicas, ou seja, a lógica do “governar por contrato” (Gaudin, 1999), surgindo uma nova forma de governo onde o Estado perde a sua centralidade em benefício de parcerias e se transforma em mediador destinado a desencadear um trabalho em rede. Esta modalidade de regulação conjunta de matriz sociocomunitária é sustentada numa aprendizagem permanente com cooperação e compromisso e num esforço de supervisão e de formação científica e pedagógica dos intervenientes. Ela procura responder à questão que consiste em saber quais são e como se mobilizam os meios colectivos de uma dada comunidade, para dar um sentido comum social e comunitário à acção dos actores sociais, em prol de mais e melhor educação para todos os cidadãos, como pedra angular da construção do bem comum.

Também o contrato tem uma dimensão socioorganizacional. Ele resulta da interacção, conflito e compromisso dos diferentes interesses, racionalidades e estratégias em presença (Azevedo, 2007, p. 4). Nele são evidentes práticas de participação e negociação na gestão de interesses no interior das organizações, bem como a construção de acordos e compromissos para a realização de projectos comuns. No caso da escola pública, a contratualização interna tem como referência o projecto educativo e corresponde à construção social do “bem comum” que fundamenta a prestação do serviço educativo (Azevedo, 2008, p. 31).

O contrato, ao mesmo tempo que combina estratégia de negociação, mobilização e promoção de autonomia, tem também um sentido de controlo, garantia de resultados e da sua obediência a princípios gerais, referindo Derouet e Dutercq (1997) que a relação contratual dá maior liberdade de acção, mas, em contrapartida, exige transparência e possibilidade de avaliação. Para Vandenberghe (2002, p. 113), a existência deste tipo de dispositivo de contratualização como forma de promover a descentralização da gestão para as escolas é acompanhada, quase sempre, do aumento das lógicas de avaliação ou regulação externa. O Ministério delega por um lado, mas ao mesmo tempo desenvolve instrumentos de controlo à distância, por

vezes baseada na medição dos resultados alcançados pelas escolas e pelos professores. Assiste-se à emergência de uma lógica de contratualização que não só indica zonas de autonomia mas também obrigações como a submissão à avaliação externa. O contrato aparece como instrumento aparentemente eficaz para “gerir a autonomia profissional dos professores, num quadro de crise da regulação burocrática e da emergência de novas formas de governance substituindo o controlo hierárquico pelo autocontrolo, a obrigação dos meios pela obrigação dos resultados, a

regulamentação pela avaliação (Barroso, 2006, p. 32). A regulação sociocomunitária, enquanto regulação local, é um processo de

coordenação da acção dos diferentes actores sociais em cada comunidade local. Esta regulação, em complemento da acção reguladora do Estado central, torna-se nevrálgica nos processos de mudança social na medida em que só ela dá conta dos actores, das situações sociais concretas, das dinâmicas de articulação territoriais (perspectiva horizontal), e das medidas e políticas geradas e desencadeadas pela Administração (perspectiva vertical) (Azevedo, 2002; Barroso, 2006).

Segundo Azevedo (2008, pp.12-14) a regulação sociocomunitária apresenta cinco vantagens:

a) Fortalece a cooperação entre pessoas e instituições locais conduzindo a compromissos pessoais e institucionais inscritos em projectos partilhados, autonomamente concebidos e sem qualquer tipo de formatação prévia;

b) Promove dinâmicas socioeducativas locais, em que actores sociais, escolas, Direcção Regional, intervêm como parceiros de projectos sociocomunitário, numa dinâmica de activa participação na promoção do bem comum educacional;

c) Cria condições e modos de “cooperação complexa” (Lichtenberger, 2003, p. 56), que obrigam a ajustamentos institucionais, à mobilização de recursos, à elaboração de compromissos comunitários de troca de promessas (com + promissos); d) Inscreve-se num “sistema de acção” que implica a elaboração de projectos conjuntos, a participação social activa, interessada e prospectivada;

e) Promove uma dinâmica de cooperação institucional implicando o desenvolvimento socioeducativo da comunidade, dinâmica essa que origina e se estrutura em redes de cooperação.

Também Barroso (2007, p. 2) defende que os modos de governação das escolas devem permitir uma participação funcionalmente equilibrada dos diversos interesses em presença na prestação do serviço educativo, com particular destaque para o Estado enquanto garante e regulador de um serviço público nacional de educação, os professores enquanto profissionais especializados na prestação do serviço educativo e os alunos e seus responsáveis familiares (no exercício do controlo social que deve existir sobre a escola) enquanto cidadãos e primeiros destinatários do serviço público de educação.

Azevedo alvitra um Estado competente e forte na regulação sistémica e a adopção de um paradigma de regulação solidária e sociocomunitária das escolas públicas. Isto implica:

 Reordenar todo o edifício legislativo e toda a Administração Educacional definindo o novo quadro de regulação pública do Estado;

 Transferir para os municípios e para os actores sociais locais comunitários o máximo de competências em matéria de educação (…);

 Criar um quadro de desenvolvimento da autonomia construída, (…) no respeito para com uma diversidade de estádios de autonomia (…);

 Valorizar/respeitar a autonomia e as competências profissionais dos professores, promovendo o exercício autónomo das responsabilidades;

 Contratualizar as modalidades concretas da autonomia de cada escola, melhorar as formas de governo das escolas estatais e criar agências nacionais de apoio à melhoria do desempenho das escolas (…);

 Subordinar todo o processo de mudança ao princípio da inovação local, melhoria contínua da educação e dos níveis de aprendizagem dos alunos;

 Garantir a liberdade de ensinar e de aprender, podendo os pais escolher a educação dos filhos (2009, pp. 30-31).

Se entendermos a “regulação do sistema educativo” como um “sistema de regulações” torna-se necessário valorizar o papel fundamental das instâncias (indivíduos, estruturas formais ou informais). Estas funcionam como uma espécie de “nós da rede” de diferentes reguladores e a sua intervenção é decisiva, assumindo o Estado a função essencial de “regular as regulações”, isto é de proceder a uma meta- regulação (Barroso, 2007).

Em Portugal, no quadro político e institucional, não se tem enfrentado esta perspectiva com suficiente abertura e rigor. O Estado e a sua Administração Educacional têm adoptado modos de regulação oposto, “regulação pelo Estado” e

“regulação pelo mercado”, gerando medidas ambíguas que alguns autores apelidam de “hibridismo” (Barroso, 2003 e 2006; Maroy, 2006; Nóvoa, 2005).

Em síntese, as políticas de “reforço da autonomia das escolas” têm que ser enquadradas no âmbito mais alargado da transformação dos modos de acção do Estado e da sua concomitante recomposição e reorganização.

Segundo Simões (2007, p. 40), “os dilemas da descentralização e da autonomia, em tensão com os desafios da comunidade europeia e da globalização, levarão ao desenhar de um paradigma de governação em todos os níveis de decisão política”. Definida por Jessop (2003, p. 1) como a “arte complexa de conduzir múltiplas agências, instituições e sistemas, simultaneamente autónomos uns dos outros e estruturalmente agregados através de diversas formas de interdependência”, esta governanação exige que “os parceiros sociais se comprometam com uma auto- regulação da conduta, em nome de um projecto social”, funcionando o Estado como um parceiro entre outros, legitimando‑se na sua capacidade de “persuasão moral” e de “mediação da inteligência colectiva” (ibid., pp. 12‑13).

Vive-se numa mudança de paradigma de regulação das políticas educativas e da acção do Estado na educação. O modelo burocrático-profissional que predominou até à década de 80, caracterizado por um “casamento” entre uma regulação “estatal, burocrática e administrativa”, com uma regulação “profissional, corporativa e pedagógica” por parte dos professores, está em declínio e a ser substituído por um modelo pós-burocrático, especialmente de estado avaliador, caracterizado por um equilíbrio entre centralização/descentralização, maior autonomia de escolas mas também um acréscimo de preocupação com o controlo de resultados, controlo da qualidade, eficácia e eficiência das escolas por parte do Estado.

Procura-se que a regulação estatal dê lugar a modelos de regulação social como as redes e a regulação sociocomunitária. Considera-se, assim, que a essência da Educação está na componente humana e social da sua contextualização e procuram- se comunidades de aprendizagem (Wenger, 1998), ou seja, comunidades onde se aprende pelo facto de se estar em conjunto, onde cada um contribui com a sua reflexão e experiência para a construção de um saber colectivo.

CAPÍTULO II