O termo entrevista clínica contempla uma série de técnicas ditas como mutáveis de acordo com os objetivos específicos do profissional que as utiliza. Em psicologia, pode-se definir a entrevista clínica como:
Um conjunto de técnicas de investigação, de tempo delimitado, dirigido por um entrevistador treinado, que utiliza conhecimentos psicológicos, em uma relação profissional, com o objetivo de descrever e avaliar aspectos pessoais, relacionais ou sistêmicos (indivíduo, casal, família, rede social), em um processo que visa a fazer recomendações, encaminhamentos ou propor algum tipo de investigação em benefício das pessoas entrevistadas. (Tavares, 2000, p. 45).
A entrevista clínica realizada com crianças em um contexto psicodiagnóstico também pode ser chamada de entrevista lúdica diagnóstica, que se configura como um procedimento técnico utilizado a fim de conhecer e compreender a realidade da criança em processo de avaliação. Ela se diferencia da entrevista lúdica terapêutica, pois engloba um processo que tem começo, desenvolvimento e fim em si mesmo, operando como uma unidade que deve ser interpretada como tal (Efron et al., 1979/2009).
É importante ressaltar que entendemos a entrevista lúdica diagnóstica como uma entrevista inicial realizada com a criança, ou seja, refere-se à primeira etapa diagnóstica. No entanto, isso não significa que ela deva ser o primeiro ou o único procedimento diagnóstico realizado, tampouco ocorrer apenas em um encontro (Arzeno, 1995). Trata-se de uma técnica utilizada durante um período de avaliação que compreende um espaço de tempo necessário para conhecer a criança e fazer um diagnóstico de aspectos psicodinâmicos (Affonso, 2005; Castro et al., 2009).
A entrevista lúdica diagnóstica potencializa a análise dos resultados de outras técnicas comumente empregadas durante o psicodiagnóstico com crianças, como a entrevista com pais ou responsáveis, a entrevista familiar e os testes projetivos e psicométricos, por exemplo (Affonso, 2011a; Castro et al., 2009). Ela permite com- preender e formular hipóteses sobre a problemática do paciente (Aberastury, 1962/1986; Efron et al., 1979/2009). Seu objetivo inclui a investigação da interação com a criança, visando o estabelecimento de um diagnóstico sobre o comportamento desta e suas múltiplas determinações (Affonso, 2011a).
Essa técnica também é utilizada para avaliar as representações dos conflitos básicos da criança, tanto do ponto de vista evolutivo (adequação ou não do
comportamento à idade) quanto do ponto de vista patológico (incluindo defesas predominantes, ansiedades, relações objetais, etc.) (Affonso, 2011a). A análise da en- trevista lúdica diagnóstica permite conceituar o principal conflito atual do paciente, evidenciar as principais defesas ante a ansiedade e sua qualidade, e tornar manifestas as fantasias da criança quanto à doença, à cura e ao tratamento. Além disso, essa técnica pode sugerir quais sentimentos contratransferenciais um futuro terapeuta poderia experimentar com a criança, e orientar o profissional a realizar, de maneira mais eficaz, um rapport com aquele determinado paciente (Kornblit, 1979/2009).
A flexibilidade dos procedimentos técnicos adotados durante a entrevista lúdica diagnóstica
O processo de avaliação psicológica de crianças compreende um período que precede o início de uma psicoterapia e é um espaço de tempo necessário para se conhecer a criança e mapear vários de seus aspectos. Esse período varia bastante, embora haja uma sequência geral que inclui a entrevista com os responsáveis (juntos ou separados), as entrevistas com a criança, a entrevista familiar e as entrevistas de devolução (Castro et al., 2009; Efron et al., 1979/2009).
Vale relembrar a comparação feita por Freud (1913/1996, p. 139) entre as primeiras entrevistas do psicanalista e o jogo de xadrez: “. . . somente as aberturas e os finais de jogos admitem uma apresentação sistemática exaustiva e . . . a infinita variedade de jogadas que se desenvolvem após a abertura desafia qualquer descrição deste tipo”.
Embora os psicólogos atualmente utilizem métodos bastante conhecidos, a avaliação psicológica de crianças não segue uma padronização rígida para todos os casos atendidos. Essa prática profissional mostra-se extremamente flexível, sem a existência de uma regra única para sua execução, sendo caracterizada por uma ma- leabilidade alicerçada no fato de que a decisão quanto aos procedimentos a serem seguidos é resultado do próprio processo avaliativo (Krug, 2014).
Como alerta Lerner (2003), entende-se que a técnica deve ocupar o lugar que lhe corresponde, ou seja, o da aplicação de uma teoria. De forma alguma os procedimentos devem ser desenvolvidos separadamente da teoria, muito menos com rigidez. Nessas situações, as técnicas deixam de ocupar o lugar de caminho para conhecer a criança e passam a se configurar como rituais sem sentido. Freud (1913/1996) ensinava, em seu texto sobre o início do tratamento, que regras rígidas e firmes para a prática psicanalíti- ca não seriam possíveis em razão da complexidade dos fatores psicológicos envolvidos (inclusive a personalidade do analista). Bion também entendia que todo profissional deveria ser profundamente si mesmo, sem temer sua própria originalidade e unicidade, uma vez que nossa personalidade é o instrumento com o qual trabalhamos (Ferro,
2007/2011).
Portanto, neste capítulo, serão apresentadas possibilidades de intervenção, englobando diferentes alternativas técnicas adotadas na realização da avaliação psicológica de crianças na atualidade. Sabe-se que os psicólogos que realizam psicodiagnóstico utilizam procedimentos diferentes em relação a muitos aspectos técnicos, o que não significa que uma postura esteja correta e a outra, errada (Krug, 2014). O que é útil para alguns psicólogos não é para outros, algo considerado saudável por Lerner (2003), pois indica que a técnica não é imutável. Entende-se que essa variabilidade metodológica resulta da diversidade de combinações entre as referências teóricas estudadas pelos profissionais, as experiências de supervisão e o próprio estilo da personalidade de cada um.
Cuidados técnicos no início do processo avaliativo de crianças
A avaliação da criança inicia muito antes do encontro com o paciente ou com os membros de sua família (Ampessan, 2005). Ela tem seu começo no contato telefônico recebido, perpassando pelos cuidados técnicos a serem tomados na ocasião da marcação das primeiras consultas.
Contato telefônico
A escuta diagnóstica inicia no momento em que o psicólogo recebe a ligação telefônica de um dos responsáveis pela criança para a marcação da consulta. Nesse momento, diversos aspectos já começam a ser analisados, como a origem da indicação. Quanto a isso, Blinder e colaboradores (2011) lembram que pediatras e professores são os primeiros profissionais a serem consultados quando uma criança apresenta alguma dificuldade. Isso se reflete, também, na origem da maioria dos encaminhamentos. A partir dessa realidade, recomendamos que o psicólogo reflita sobre quem está entrando em contato com ele, os motivos relatados para o contato, as perguntas feitas e a forma com que o interlocutor se coloca ao telefone.
Durante a ligação, caso um dos progenitores não seja mencionado, pode-se perguntar pelo pai ou pela mãe da criança. Deve haver, ainda, como descrito na literatura (Ampessan, 2005), o cuidado de se referir ao pai e à mãe com esses termos, e não utilizar as expressões “marido” ou “esposa”, visando não constranger o interlocutor caso sua situação familiar não siga tal configuração.
Outro aspecto relacionado ao contato telefônico e à marcação de consulta diz respeito ao fato de que alguns psicólogos não tomam em avaliação nenhum paciente quando não podem seguir acompanhando-o, caso haja indicação para psicoterapia. No entanto, essa não é uma preocupação dos psicólogos que realizam apenas avaliações psicológicas, encaminhando um caso que demande psicoterapia para outro profissional.
o primeiro contato é feito por outro profissional. Muitos psicólogos adotam a postura de não trocar muitas informações com o profissional para, assim, não ser demasiadamente influenciados pela opinião do colega. Isso se aplica tanto para colegas de profissão e da área da saúde quanto para profissionais de outras áreas, como a educação. Essa postura, porém, não é seguida por outros psicólogos, que entendem ser importante colher o máximo de informações mesmo antes de conhecer o paciente.
Marcação das entrevistas
Embora a literatura (Krug, 2014; Ocampo & Arzeno, 1979/2009) indique que a maioria dos psicólogos opta por marcar as primeiras entrevistas apenas com os pais, juntos ou separados, para somente depois conhecer a criança pessoalmente, outros realizam os encontros iniciais de formas diversas. Ampessan (2005) lembra que questões como a ordem de marcação das primeiras consultas, quem deve participar e como lidar com casais separados são comuns a quem trabalha com crianças. Por não acreditar em um procedimento-padrão, a autora entende que a decisão de trabalhar de uma forma ou de outra está relacionada às bases teóricas de cada profissional.