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REORDENAMENTO ATUALIZADO E DINÂMICO DO EXAME DO ESTADO MENTAL AO LONGO DO CICLO VITAL

No documento PSICODIAGNÓSTICO - CLAUDIO HUTZ.pdf (páginas 196-200)

O EEM deve seguir o método clínico-científico muito bem delineado por Feinstein (1967), que sublinhou a importância decisiva de separá-lo em três etapas: 1) descrição dos fenômenos clínicos, queixas subjetivas e sinais aparentes; 2) nomeação ou designação; 3) formulação do diagnóstico.

Um erro comum, tanto de estudantes quanto de profissionais induzidos (ou seduzidos) pelas escalas e pelos checklists, é praticamente inverter a sequência: um médico vê “palidez” e já a chama de anemia (diagnóstico precipitado); um especialista em saúde mental ouve o paciente “falar sem nexo” e já intui esquizofrenia, nomeando o “falar sem nexo” como desagregação (duas nomeações precipitadas); outro identifica desatenção e hiperatividade e rapidamente diagnostica TDAH; e, por fim, um examinador pergunta para o examinando se o seu quadro clínico preenche ou não os critérios diagnósticos. Esses são julgamentos ou conclusões a que o examinador chega depois de ter descrito e identificado acuradamente os sintomas subjetivos e objetivos presentes no exame de cada uma das funções mentais.

Neste capítulo, embora mantendo o exame das “clássicas” funções mentais, decidi, dada a importância clínica das funções cognitivas executivas, não suficientemente contempladas no MEEM ou em muitos esquemas do EEM disponíveis na literatura, fazer sua inclusão em um novo reagrupamento. Decidi também respeitar as considerações conceituais e as propostas práti​cas de Pine e colaboradores (2011) para o DSM-5: levar em conta as perspectivas desenvolvimentais na psicopatologia e, por isso, a continuidade de muitos transtornos mentais desde a infância até a vida adulta, apesar da heterogeneidade das suas manifestações clínicas. Nas palavras desses autores, “os clínicos devem se familiarizar com as diferentes maneiras nas quais o desenvolvimento pode afetar a apresentação de muitos transtornos”. Por isso, respeitadas as diferenças, o EEM da infância e adolescência não foi separado do EEM da vida adulta, “com a ressalva de que este não é um capítulo sobre o exame psiquiátrico como um todo, nem mesmo de adultos”. Os textos de King, Schwab-Stone, Thies, Peterson e Fisher (2009) e Egger (2009), e o bem mais recente texto de Sadock, Sadock e Ruiz (2015) foram escolhidos para selecionar algumas observações específicas sobre o EEM na infância e adolescência, indicando-se os mesmos para o não especialista nessa faixa etária. Para considerar como sintomas os dados semiológicos no EEM de uma criança, o clínico deve estar apto a diferençar as dificuldades normativas dos problemas clínicos relevantes, o que pressupõe conhecimentos não superficiais do desenvolvimento infantil. Talvez essa extensão do exame tenha requerido, também, a inclusão da área da interação social, dependente do desenvolvimento da teoria da mente e da empatia, entre outras competências. No caso

de adultos, embora existam vários bons livros-texto de semiologia e psicopatologia, Dalgalarrondo (2000), Bastos (2000) e Hamilton (1974) são bastante didáticos. Uma recente edição do livro de Oyebode (2015), o capítulo sobre Motivação de Gazzaniga e Heatherto (2005) e os dicionários de Moore e Fine (1992) e Hans (1996) facilitaram compor o item da conação, que passa a ocupar o seu merecido lugar: uma posição destacada no EEM, articulado com as funções executivas e com a ação, conduta e praxias, entre outras funções. A nova edição do Sims foi valiosa também na listagem de alterações na área da consciência do eu ou self.

A partir dessas considerações, segue-se o roteiro nesta nova proposta do EEM:

Aparência do examinado: observação cuidadosa e registro adequado da aparência do

examinado (vestuário, adereços, tatuagens, cuidados pessoais, relação idade real/aparente, atitude diante do examinador). Circunstâncias do exame (finalidades, local, duração, etc.). Particularmente no caso de crianças, considerar o seu “olho no olho”, as suas interações sociais e afetivas com o examinador e os cuidadores, os efeitos da separação e da reunião na sala de consulta, além do aspecto físico (estatura, circunferência cerebral, estado nutricional, etc.). Em todas as etapas do ciclo vital, considerar como a pessoa chega ao examinador, os seus cuidados na seleção do profissional, os motivos e motivações para a procura, seus planos e suas expectativas (mágicas? realísticas?), considerações práticas de tempo e fontes de pagamento para a avaliação e o tratamento. Alguns desses dados já aparecem no telefonema ou no contato via redes sociais para combinar a primeira consulta. Particularmente nessa área, como também no caso de alterações de afeto e humor, as informações prestadas por familiares ou cuidadores – e professores no caso de crianças – são relevantes e muitas vezes indispensáveis e decisivas, mas o examinador não pode fazer vista grossa para os efeitos do ponto de vista de quem informa esses dados.

A rigor, pode-se começar o EEM por qualquer um dos módulos ou domínios do diagrama shifting gears (Fig. 9.3), que sintetiza as “articulações em movimento” entre as funções. Decidi, nesta redação, começar com o módulo da consciência, situado à direita no diagrama baseado em Kernberg (1995) e, agora, inspirado em Cabaniss (1998). Esta autora usou a metáfora da “mudança de marcha na caixa de câmbio” para caracterizar a atitude durante o processo terapêutico envolvendo psicoterapia psicanalítica e psicofarmacoterapia, em que é essencial a liberdade com limites para usar ora um, ora outro modelo de mente, na tentativa de avaliar melhor o paciente e conduzir seu tratamento. Para isso, não basta que o(a) psicoterapeuta seja versado em diferentes modelos: é preciso que seja flexível o suficiente para transitar entre eles durante a avaliação,14 a formulação de caso e a indicação de tratamento (Souza, Osório, & Fleck, 2015).

FIGURA 9.3 ╱ DIAGRAMA SHIFTING GEARS DO EEM.

1. Consciência e sono: consciousness é um termo ambíguo, com diferentes definições,

conceitos e significados, entre eles: 1) estar acordado, vígil, alerta, capaz de perceber, interagir e se comunicar com o ambiente e com as pessoas, de maneira integrada (wakefulness) e suas alterações: sono, coma, estado vegetativo, anestesia, efeitos de drogas; 2) significado mais interno, experiência subjetiva (awareness), consciência/conhecimento de qualquer conteúdo ou ​evento mental, como crenças, esperanças, medos, intenções, desejos, expectativas, etc. Zeman (2001, 2005) e Zeman e Coebergh (2013) alertam que, embora costumeiramente paralelos, esses dois tipos de consciência podem andar separados: há estados vegetativos com “wakefulness without awareness”, isto é “consciência sem consciência de conteúdos mentais”; em sonhos estou dormindo mas consciente (aware) em algum grau; seu último exemplo é o da

“síndrome do encarceramento”, examinada mais adiante.

Zeman (2001,2005) e Zeman e ​Coebergh (2013) assinalam que “self- consciousness” – “cons​ciência do self” – também é um conceito multifacetado: 1) tendência a se sentir constrangido na presença de outros, quando o sujeito está consciente (aware) de que a consciência (awareness) dos outros está dirigida a ele; 2) “self-detection” ou “self-perception”: a mais simples consciência, detecção ou percepção de um inseto caminhando na minha mão; informações proprioceptivas de posições corporais (autoimagem); percepção das ações realizadas (permitindo a mim o senso ou sentimento de ser agente); percepção de estados corporais (fome, sede) e de estados emocionais, como medo, afeto/afeição (influindo nas relações interpessoais); 3) automonitoramento do passado e do presente, com predição de futuros comportamento e experiência; 4) autorreconhecimento: “este corpo é meu” (p. ex., no espelho); 5) “self-​consciousness as awareness of awareness” (“consciência da consciência dos outros”): ver teoria da mente, na interação social; 6) como autoconhecimento, “eu como personagem central ou herói da minha própria narrativa”, presente nos autorretratos e nas autobiografias, talvez uma extensão do senso de ser agente. Assim, nesse campo de tantas controvérsias e complexidades, teria sentido excluir o exame da consciência do eu ou do self do exame, por sua falta da objetividade tão presente na outra área da consciência?

Avaliar se o paciente está com clareza da cons​ciência, lucidez (acordado, em vigília), ou há obscurecimento ou turvação da consciência: graus do obscurecimento: obnubilação, sonolência, confusão mental marcada pela desorientação auto e alopsíquica; estupor, marcado pela falta de reação ao ambiente; torpor e coma em seus diversos níveis. O coma é diferente do “locked-in state or syndrome” ou “síndrome do encarceramento”, já referida e mostrada em O escafandro e a borboleta, filme baseado no livro e na história real de Jean-Dominique Bauby, que, aos 43 anos teve um acidente vascular cerebral (AVC) que atingiu seu tronco cerebral.

Outros estados da consciência são o delirium, reação confusa, inquieta, com desorientação, associada a medo e alucinações, diferente de delírio (perturbação do conteúdo do pensamento); o estreitamento da consciência, estado crepuscular, com alucinações. Síncope e desmaio, convulsões epiléticas e crises dissociativas, por exemplo, podem não estar presentes durante o exame, mas nos últimos 30 dias, por isso devem ser considerados no EEM.

Alterações na consciência do self: avaliar o senso de identidade do eu, o sentimento de consciência de existência pessoal, o sentimento de atividade do eu, a consciência ou reconhecimento das fronteiras ou limites eu-não eu, a autoimagem, o autoconceito e a imagem/esquema corporal. Despersonalização. Desrealização. Distúrbios da sugestibilidade (compartilhamento de sintomas psicóticos, na folie à

deux, à trois, à plusieurs). Hipnose (modificação da consciência artificialmente induzida). Autoscopia, heautoscopia (Doppelgänger). Sentimentos de presença de outra pessoa. Estados de possessão. Personalidade múltipla (identidade dissociada). Hipocondria. Conversão. Dissociação. Dismorfofobia (que não é um medo de deformidades físicas) e outras perturbações da imagem corporal, entre elas as presentes em transtornos da alimentação (anorexia nervosa). Dismorfia muscular. Membro- fantasma (Oyebode, 2015).

Avaliar o sono, se profundo ou ​superficial com ou sem sonhos ou pesadelos: considerar os distúrbios do sono: sonolência, hipersonias, insônias; distúrbios respiratórios associados ao sono (apneias e outros distúrbios); narcolepsia, cataplexia; distúrbios do ritmo circadiano (jet lag e outros); terrores noturnos, sonambulismo e outras parassonias; distúrbios do movimento relacionados ao sono (síndrome das pernas inquietas e outros).

2. Atenção: função mental na fronteira entre o domínio da consciência, sensações e

orientação. Considerar a intensidade da atenção e sua direção para o exterior (outras pessoas, ambiente, etc.) ou para dentro (si-mesmo, próprio corpo, a própria pessoa); vigilância (hipovigilância ou hipervigilância); concentração (diminuída ou aumentada); hipoprosexia, hiperprosexia; aprosexia; disprosexia; distraibilidade, ​desatenção seletiva (bloqueio seletivo daquilo capaz de gerar ansiedade). A pesquisa em neurocognição apontou para novos conceitos nessa área (Whitbour​ne & Halgin, 2015), entre eles a capacidade de manter a atenção em uma tarefa por longos períodos (“atenção contínua ou sustentada”); a atenção seletiva e a atenção dividida, que é a capacidade de prestar atenção a duas ou mais tarefas ao mesmo tempo.

3. Sensação e percepção: o termo sensopercepção pode sugerir que essas duas

funções são indissociáveis, quando não o são. A percepção é uma função cognitiva que articula esse domínio – junto com a atenção – com a área da consciência. Sensação é a área das sensações visuais, auditivas, olfatórias, gustativas e táteis. Consi​derar os distúrbios quantitativos ​(intensidade: aumento ou diminuição das sensações); as modalidades sensoriais afetadas ou não; os ​distúrbios qualitativos (ilusões, alucinações verdadeiras e pseudoalucinações); as diversas agnosias (inca​pacidade de reconhecer e interpretar o signifi​cado das impressões sensoriais). Anestesia histérica, perda da visão – e outras perdas de mo​dalidades sensoriais – resultantes de conflitos emocionais. Macropsia e micropsia. Na infância, algumas alucinações visuais e auditivas são fenômenos transitórios, não significando psicose, embora mereçam seguimento (Egger, 2009; King et al., 2009; Sadock et al., 2015).

No documento PSICODIAGNÓSTICO - CLAUDIO HUTZ.pdf (páginas 196-200)