Conforme relatamos, as informações coletadas na entrevista de anamnese podem estar sujeitas a diferentes ameaças à sua validade. Além da consulta a diferentes fontes de dados, alguns cuidados podem ser tomados para aumentar a qualidade das informações. Já no início da entrevista, é importante que o psicólogo esteja atento ao nível socioeducacional do informante, de forma a adequar as perguntas ao seu vocabulário. Em todas as entrevistas, termos técnicos devem ser substituídos por outros que sejam de simples compreensão ou devem ser devidamente explicados. Por exemplo, quando questionamos sobre os índices Apgar recebidos pela criança no primeiro e no quinto minuto após o nascimento, é comum que alguns pais fiquem em dúvida quanto à resposta. Entretanto, quando explicamos que é o número dado pela equipe médica conforme as condições de saúde da criança ao nascer, normalmente a resposta é fornecida.
Em caso de confusões, informações divergentes ou incompletas, uma estratégia bastante útil é perguntar a mesma questão de diferentes formas e em momentos diferentes da entrevista. A mudança de vocabulário pode favorecer outras associações e memórias de aspectos não relatados, culminando no surgimento de respostas novas ou complementares.
Às vezes o psicólogo pode ter dificuldades por causa da maneira como o informante se comunica. Pode haver entrevistados muito prolixos, que se prendem a um longo discurso, com explicações supérfluas e demoradas sobre aspectos simples. Há também pessoas que fogem constantemente do tema, tratando de questões não relevantes para aquele momento ou desviando o foco para outras pessoas que não o avaliando. Com esses informantes, o psicólogo pode ter de agir de forma assertiva e retomar o objetivo das questões e o tempo limitado da entrevista de anamnese. O outro extremo também acontece, quando o informante é muito conciso e exprime sua percepção com um número reduzido de palavras ou com respostas muito diretas. Com esses informantes, é preciso incentivar a fala espontânea, sendo útil a retomada do que foi falado pela repetição de uma palavra-chave seguida por interrogação. Por exemplo, a mãe afirma que o desenvolvimento da linguagem foi normal. O entrevistador questiona “normal?”, esperando que ela forneça mais detalhes sobre o que foi dito. Em alguns casos, perguntas complementares precisarão ser feitas, do tipo “o que você considera normal?” ou “como foi o desenvolvimento comparando com um irmão ou colega?”. O fornecimento de marcos referenciais pode ser útil para ajudar a pessoa a se lembrar ou a fornecer detalhes que não foram bem pensados anteriormente.
As perguntas que sugerem respostas diretas, do tipo sim ou não, devem ser evitadas na anamnese. Também se deve limitar o uso de questões que possam induzir o
informante a confirmar uma percepção do psicólogo, que nem sempre é verdadeira. Além disso, em caso de informantes que falam pouco, o entrevistador deve ter cuidado para não completar frases ou mudar o foco das perguntas antes que uma resposta satisfatória e completa seja dada. Em situações como essa, o psicólogo pode se sentir ansioso e procurar auxiliar o informante, mas deve conter-se, a fim de não interromper o fluxo de pensamentos do entrevistado ou de quebrar um silêncio incômodo quando ele sugere reflexão ou elaboração.
Algumas vezes, o informante pode se sentir incomodado e chorar, e é importante que o psicólogo deixe-o confortável para isso. Nesses momentos, pode-se dar uma pequena pausa na entrevista, retomando em seguida com as adaptações necessárias. A observação é um recurso muito importante na anamnese, que pode nortear a conduta do psicólogo para além das informações.
A qualidade dos dados coletados também depende do entendimento correto daquilo que é informado. Deve-se ter cuidado com o significado de palavras e expressões usadas pelo entrevistado que possam ter diferentes sentidos para o psicólogo. O conhecimento do vocabulário e o domínio da mesma língua do informante não impedem a ocorrência de dificuldades de compreensão da fala espontânea. Essas - dificuldades são bastante comuns para pessoas de condições sociodemográficas e educacionais muito diferentes. Por isso, é sempre válido registrar as palavras do informante e buscar compreender o sentido empregado em expressões pouco usuais ou dependentes de contexto. Perguntas abertas sobre o significado de algo, do tipo “o que você quis dizer com...” ou pedidos para que o informante fale mais sobre determinado aspecto podem ajudar nesse sentido. Mesmo com todos os cuidados, pode acontecer de o psicólogo ter um entendimento diferente do que o informante quis expressar. Para diminuir esses problemas, o profissional pode avaliar a utilidade de fazer uma breve explanação sobre as informações coletadas ao final da entrevista, questionando a concordância do informante com o que foi exposto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme discutimos neste capítulo, a entrevista de anamnese é um recurso essencial para o conhecimento do avaliando e para o adequado direcionamento do psicodiagnóstico. Para a anamnese ser bem realizada, o psicólogo deve ter conhecimentos teóricos sobre o que pretende avaliar e estar atento a estratégias que otimizem a qualidade das informações coletadas. Recomendamos a utilização de um roteiro para a entrevista de anamnese, em virtude da quantidade de informações a serem coletadas em um curto intervalo de tempo. Entretanto, enfatizamos a importância do papel do psicólogo para adaptar e modificar esse roteiro durante a realização da entrevista.
Nosso foco principal neste capítulo foi apresentar os objetivos da entrevista de anamnese, as questões a serem consideradas antes desse tipo de entrevista e os principais aspectos a serem investigados, com base, principalmente, em nossa experiência clínica. Existem alguns modelos que podem ajudar os psicólogos a realizar a anamnese, contemplando perguntas importantes de acordo com o contexto de atuação. Apresentamos, a seguir, um roteiro de anamnese para crianças, um para adolescentes, e um para adultos e idosos. Esses roteiros foram elaborados pela equipe de supervisores e estagiários do Centro de Avaliação Psicológica da UFRGS e adaptados para este capítulo. Esperamos que o material aqui produzido possa contribuir com estudantes e profissionais que estejam iniciando sua prática clínica.
AGRADECIMENTOS
Muitas das reflexões deste capítulo foram possíveis graças à experiência de trabalho em parceria com os supervisores e estagiários do Centro de Avaliação Psicológica (CAP) da UFRGS. Agradecemos à equipe do CAP pelas experiências compartilhadas e também àqueles que trabalharam na elaboração dos roteiros.
REFERÊNCIAS
Belsky, J. (2010). Desenvolvimento humano: Experienciando o ciclo da vida. Porto Alegre: Artmed. Benjamin, A. (2011). A entrevista de ajuda (13. ed.). São Paulo: Martins Fontes.
Cunha, J. A. (2000). A história do examinando. In J. A. Cunha (Ed.), Psicodiagnóstico V (5. ed.). Porto Alegre: Artme d.
Erickson, E. (1976). Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro: Zahar.
Hutteman, R., Hennecke, M., Orth, U., Reitz, A., & Specht, J. (2014). Developmental tasks as a framework to study p ersonality development in adulthood and old age. European Journal of Personality, 28(3), 267-278.
Soares, M. O. M., Higa, E. F. R., Passos, A. H. R., Ikuno, M. R. M., Bonifácio, L. A., Mestieri C. P., ... Ismael, R. K. (2014). Reflexões contemporâneas sobre anamnese na visão do estudante de medicina. Revista Brasileira de Educaçã o Médica, 38(3), 314-322.
Werlang, B. G. (2000). Avaliação inter e transgeracional da família. In J. A. Cunha (Ed.), Psicodiagnóstico V (5. ed.). Porto Alegre: Artmed.
1 Na elaboração deste capítulo, muitos exemplos e reflexões foram baseados em nossa prática clínica, particularmente na atuação no serviço-escola Centro de Avaliação Psicológica (CAP) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).