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O EXAME DO ESTADO MENTAL E SUAS TRANSFORMAÇÕES

No documento PSICODIAGNÓSTICO - CLAUDIO HUTZ.pdf (páginas 173-179)

Cláudio Maria da Silva Osório

A quem confiar minha tristeza? (Tchekhov, Angústia, 1886)

… if we could not see or hear or touch, if we could not experience pain or pleasure, if we lacked conscious desires and intentions, we would not and could not behave as we do. (Zeman, 2001)

bordagens contemporâneas na psicopa​to​logia, na semiologia e no exame do estado mental (EEM) preocupam-se com a esterilidade ou a perda da competência nesses campos do conhecimento e propõem uma revitalização (Andreasen,1996, 1998, 2007; Ghaemi, 2007; Huber, 2002; Kendler, 2005). O alerta de Andreasen (1996, p. 590), continua válido:

A desumanização da atenção médica é uma tendência em todas as especialidades médicas, incluindo a psiquiatria. O atual sistema de saúde é amplamente insensível ao psiquismo dos pacientes . . . com os médicos sendo encorajados a embasar as decisões quanto aos psicofármacos em diagnósticos feitos depois de uma entrevista “rapidinha”, que busca alguns poucos sintomas supostamente relevantes e ignora que cada paciente é uma pessoa com sua história singular, vivendo em um ambiente único.

Quem sabe a passagem dessa ​neurocientista pelo campo da literatura a tenha ajudado a ser sensível a essas questões? Tchekhov (1999), muito traduzido nos Estados Unidos, escreveu alguns contos cujo fio condutor é a insensibilidade humana.1 Em “Angústia”, o cocheiro Iona Potapov, depois de uma grave perda, deseja que sua

tristeza seja ouvida por seus passageiros e colegas de trabalho.

Feinstein (1967) assinalou uma dissociação na medicina, identificável também na psicologia clínica: ciência, teoria, pesquisa, ​laboratório, tecnologia e testes, de um lado; arte, prática, clínica e humanismo de outro. A anamnese, a história, o exame físico e o raciocínio clínico raramente são vistos como procedimentos científicos, mas, muitas vezes, como talentos, intuições, “olho clínico”, vocação, em geral associados a sentimentos e humanismo, sendo alvos de uma depreciação não velada. Esses e outros fatores levam o clínico a não proceder de maneira científica na obtenção da história e na realização do exame do paciente.

No entanto, não somos mais os mesmos, profissionais e/ou pacientes, depois dos ​- avanços da genética e da neurociência, da psicologia cognitiva, das edições do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSMs) e dos seus problemas, na oportuna crítica de Bastos (2000) e, também, da internet, com os seus múltiplos recursos. Essas mudanças na ciência e na ​cultura têm transformado os conceitos e o trabalho dos examinadores e as atitudes dos pacientes. Às vezes trazendo problemas, pela facilidade para os pacientes forjarem sintomas e diagnósticos, com variadas intenções e ganhos; por vezes, os recursos da internet puderam aumentar ou diminuir a confiabilidade dos dados da história e do exame do ​paciente. Aqui se incluem as compara​ções das histórias e exames de pacientes com suas postagens em redes sociais (Recupero, 2010). A ânsia pela rapidez e pela objetividade estimulou o desenvolvimento de entrevistas de 30 minutos, com etapas cronometradas, em que quatro minutos são dedicados ao EEM (Nussbaum, 2013). Na busca por trabalhos sobre o Mental Status Exam no PubMed [outubro/2014], em cerca de dois terços deles o instrumento de pesquisa é o Miniexame do Estado Mental (MEEM) (Folstein, Folstein, & McHugh, 1975), e sua modificação, o 3-MSE (Teng & Chui, 1987). Esses e muitos outros testes apontam a importância do ​exame da linguagem e de outras funções cognitivas na semiologia e respondem às demandas da notável transformação da pirâmide populacional nas últimas duas décadas. Estudantes e profissionais devem ​- considerar que o MEEM ou outros recursos utilizados em pesquisas são instrumentos de rastreamento e monitoramento da evolução, e não de ​diagnóstico, sua sensibilidade2 deixa muito a desejar quando usado isolada​mente, como indica a revisão da literatura no tema, que aponta as suas limitações, em particular na identificação de prejuízos nas funções cognitivas executivas. De acordo com Spreen, Risser e Edgell (1995, p. 66), funções executivas era um termo recente nos anos 1990, que “. . . vinha sendo usado para separar várias atividades cognitivas mais altas, dentro de um modelo de processamento de informações”. Existem outros modelos e definições. Considerando que gerência, além de gerenciar ou gerir, significa criar, fazer e produzir, um bom termo para designar essas funções executivas (FEs) seria “funções gerenciais ou de

gerenciamento”, suas semelhanças com as funções de um chief executive officer. Cardoso (2011), citando Hamdan e Pereira (2009), examina as relações entre funções executivas e esquizofrenia, entendendo as FEs como um sistema gerencial. É importante ressaltar que, na psiquiatria, era – e talvez ainda seja – habitual considerar as alterações das FEs: a) como expressões de lesão das áreas frontais, particularmente pré-frontais, do cérebro, com a sua avaliação sendo feita em separado, fora do EEM (MacKinnon & Yudofsky, 1988); b) na psiquiatria infantil, dentro da avaliação neuropsicológica e cognitiva (Jura & Humphrey, 2009); e c) na psiquiatria geriátrica, na associação da depressão na terceira idade e da disfunção executiva (Alexopoulos & Emmett, 2009). McIntyre, Norton e McIntyre (2009) não incluem a sua avaliação no roteiro de exame do paciente psiquiátrico, em que propõem o MEEM como instrumento de rastreamento e monitoramento do agravamento ou da resolução dos problemas cognitivos. Em síntese, o exame das FEs e de suas disfunções não costuma ser feito no EEM, particularmente no caso de adultos. Uma exceção está na guideline proposta em 1995 pela American Psychiatric Association, que inclui as funções executivas entre os elementos do status cognitivo no exame do estado mental (American Psychiatric Association [APA], 1995). ​Desconhecendo essa diretriz para o exame das FEs, se e/ou quando estivermos, por exemplo, diante de um homem que “aposta” em ações na bolsa de valores, com os seus previsíveis prejuízos, ou de uma mulher que “coleciona” animais domésticos, gastando muito tempo e dinheiro, ou, ainda, de um profissional com importantes dificuldades no “gerenciamento” de sua vida pessoal, familiar e carreira, a tendência do examinador é, por tradição, tentar encontrar e diagnosticar um ou mais transtornos mentais que expliquem tais dificuldades, sejam eles adições, compulsões, lesão de lobo frontal, demências ou transtornos do humor.3

Sendo a psicologia a ciência que trata dos estados e processos mentais ou o estudo do comportamento humano, e a psicopatologia o estudo das disfunções psicológicas e comportamentais, é comum, no primeiro caso, o acréscimo “da mente normal”, e, no segundo, “o estudo da mente anormal”. Nos cursos e na vida profissio​nal tenta-se diferençar o “normal” do “anormal”, com menos problemas quando as diferenças são grosseiras. No entanto, é preciso mais frequentemente fazer distinções bem mais sutis entre normal e anormal (Fletcher et al., 2012). A tristeza do cocheiro Iona, do conto russo citado anteriormente, é uma tristeza normal, ​adequada ao luto pela perda do filho ou é uma depressão patológica? Para responder, pode-se usar somente uma semiologia descritiva ou deve-se complementá-la com uma semiologia compreensiva? Em que medida a nomeação científica, com maior ou menor precisão, empobreceria o contato humano no caso dos EEMs feitos para o diagnóstico psicológico ou psiquiátrico?

Leitores atentos notaram impropriedades no parágrafo anterior, quando é insinuada uma pretensa equivalência entre normalidade e saúde e anormalidade e patologia.

Perceberam também que a avaliação e o julgamento – intensidade e qualidade da tristeza do cocheiro – dependem dos conhecimentos apropriados, mas também dos pressupostos pessoais, filosóficos, ​científicos e culturais do examinador e do examinando. Caso o profissional tenha sido treinado menos para conhecer e reconhecer sintomas e fenômenos psíquicos e mais para se preocupar – e muito – com o ​- preenchimento ou não de critérios diagnósticos, tendo aderido, fortemente e sem crítica, a propostas do atual DSM-5 (APA, 2014), poderá entender que está, no caso de Iona, diante de uma depressão patológica: não sem surpresa, o cocheiro receberia antidepressivos, em nome da “tolerância zero” com a depressão e seus déficits cognitivos, prejuízos laborais e risco de suicídio. É possível, também, que o cocheiro fosse considerado parcial e temporariamente incapacitado. Entretanto, um examinador pluralista, com razoá​vel formação filosófica existencial e/ou psicodinâmica, poderia, empaticamente, compreender a dor psíquica dessa pessoa, não usaria nenhum código diagnóstico e nem sempre proporia psicofármacos (Ghaemi, 2007; Jaspers, 1987, 1995; McHugh & Slavney, 1982, 1983).

Seria possível uma convergência mínima entre as exigências científicas de ​- nomenclatura e de critérios diagnósticos e o envolvimento hu​mano e empático, indispensável para a avaliação dos sinais e sintomas do examinando, ​visando o melhor diagnóstico clínico? Jaspers (1985) en​tendia que sim, quando esclarecia que a frieza da objetividade científica e a empatia no encontro entre duas pessoas “não se devem opor e sim completar uma a outra”, mas ​alertava que “. . . a observação fria não vê o essencial”, propondo que “. . . ambas, numa ação recíproca, é que podem conduzir ao conhecimento” (Jaspers, 1985, p. 35). Por sinal, na nova edição de Jaspers (1997), os termos da língua inglesa para essas duas atitudes complementares são detachment/distanciamento e sympathy/compaixão, so​lidariedade.

Docherty e Marder (1977) analisaram o problema do relacionamento bimodal: 1) ver o paciente como um órgão ou organismo ​doente ou como objeto de estudo (relação eu-coisa): foco na doença; e 2) vê-lo como uma pessoa perturbada (relação eu-tu): foco na pessoa. Examinaram também as forças que promovem cada um desses tipos de relacionamentos e as incompatibilidades entre eles, por sua vez promotoras de estresse no estudante e no profissional, na clínica e na pesquisa, estimulando o desejo de simplificar as questões para um conforto intelectual e emocional. Esse conforto tem como consequência a desconsideração com a autonomia, com a subjetividade e com a condição humana do paciente, e, portanto, acarreta impactos antipsicoterapêuticos.

Esse é o objetivo deste capítulo: ​oferecer subsídios e orientações para que o leitor se ​sin​ta menos perdido em um terreno de incerte​zas e inseguranças.4 Esse é um campo ​- científico em que o movimento dos observadores, dos ob​servados, dos instrumentos de observação (teorias e técnicas) e da própria cultura vem acelerando, com constantes

transformações. Tudo se move.5 Por isso, neste capítulo, além das mudanças e de uma desejada (e necessária) revitalização – com a reinserção da conação (vontade, pulsões e motivação) –, foram introduzidas duas novas funções no EEM. A primeira seria realmente nova? Os paradigmas são substancialmente diferentes – psicanalítico e neurobiológico –, mas uma leitura atenta da proposta de Bellak (1958) para o exame das funções do ego na esquizofrenia sugere algumas aproximações entre os atuais conceitos neuropsicológicos de funções executivas e algumas funções do ego: relação com a realidade; teste e senso da realidade; diferenciação figura-fundo; acurácia da percepção; regulação e controle das pulsões e impulsos (que possibilitam inibições e desvios); função sintética; e outros. Outra função acrescentada no novo EEM é a interação social (teoria da mente e empatia). A conação, aqui reinserida, esteve presente em antigos livros de semiologia e psicopatologia, faz parte de livros atuais, mas foi suprimida em alguns bem conhecidos roteiros de EEM.

Este capítulo não pretende substituir o estudo de psicopatologia e semiologia nos livros e outras fontes indicados nas referências. Consideramos criticável o estudo desses temas em “tabelinhas” e manuais de estatística e classificação (DSMs e CID).

Há mais de 50 anos, os profissionais da área da saúde mental solicitavam o teste Bender-Gestáltico na busca de “sinais de organicidade” ou dano cerebral. Hoje é preciso que se desenhem entrevistas clínicas e EEMs capazes de proporcionar indicações suficientemente claras dos prejuízos cognitivos e, particularmente, das disfunções executivas no mundo real do dia a dia de cada paciente. Existem alguns instrumentos (testes) para avaliação neuropsicológica das FEs, complexas por envolverem múltiplos processos. Em um exemplo de Kristensen (2006), um desempenho pobre no teste de Wisconsin pode decorrer de dificuldades na percepção visual de formas geométricas, e não de um prejuízo executivo. Kristensen (2006, p. 100), e autores por ele citados, acrescentam que a situação de testagem é “. . . altamente estruturada, com indicações claras sobre quando iniciar e manter o comportamento centrado na tarefa, com minimização de interferências ambientais e apresentação de objetivos”.

Obviamente, esses não são cenários da vida real dos pacientes em seus contextos de vida familiar, no estudo e no trabalho. Por isso as recomendações de Kristensen (2006), bem como de Lezak e colaboradores (2012) e Royall, Mahurin e Gray (1992), para adaptar ou flexibilizar as entrevistas clínicas de avaliação. De forma realista, mas com licença para um pouco de humor, as avaliações neuropsicológicas de filósofos, psicanalistas, bioquímicos, CEOs, jogadores de futebol ou top models naturalmente não poderão ser as mesmas. Nas conclusões, voltaremos a esse ponto.

Este capítulo tenta, também, responder a indagações antigas e recentes: 1) Por que o estudante e depois o profissional negligenciam a abordagem descritiva?; 2) O que

leva à “mistura” – sem articulação – dos métodos descritivo-fenomenológico e psicodinâmico?; 3) Por que as confusões conceituais, para não mencionar os erros de tradução e o “embaralhamento” de concei​tos presentes em vários livros de texto?; 4) O que induz autores a não proceder de forma elegante e acadêmica, divulgando ideias e conceitos sem buscar as suas fontes originais e deixando de consultar autores acessíveis?; 5) Por que não diferenciar entre o que os instrumentos mostram, o que o examinador julga que o paciente apresenta e aquilo que o paciente realmente tem?; 6) Será que a cartesiana dissociação mente-corpo afetou também o EEM?

No documento PSICODIAGNÓSTICO - CLAUDIO HUTZ.pdf (páginas 173-179)