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O EXAME DO ESTADO MENTAL

No documento PSICODIAGNÓSTICO - CLAUDIO HUTZ.pdf (páginas 179-186)

Define-se o EEM como a avaliação acurada e sis​temática (descrição, identificação, reconheci​men​to e nomeação adequada) de sintomas objetivos (sinais diretamente observáveis) e subjetiv​os (sintomas não observáveis diretamente) dos transtornos mentais, das crises vitais (evolutivas ou acidentais) e condições similares (sem transtorno mental, mas com sintomas presentes) e das condições clínicas de outra natureza (doenças físicas ou somáticas, especialmente neurológicas, efeitos colaterais de medicamentos, etc.). Seus dados são obtidos em entrevistas abertas ou semiestruturadas.

O Present Status Examination (PSE) (Royall et al., 1992), Exame do Estado [Mental] Atual, é obtido por meio de entrevista estruturada com 140 itens. É essencial que o estudante ou profissional envolvido nesse trabalho de avaliação saiba que a maior parte dos sintomas psicopatológicos, mesmo os graves (como delírios e alucinações), é subjetiva, e, mais ainda, depende de avaliação subjetiva do próprio entrevistador. É o paciente que “se sente triste”; é o examinador que avalia esse sentimento, afeto ou estado do humor. Essa avaliação é realizada durante e por meio de entrevistas clínicas, sejam de avaliação diagnóstica inicial, sejam de ​tratamento. Entrevistas clínicas não são procedimentos de 15 minutos de duração, com perguntas fixas a serem respondidas com sim ou não, às vezes até mesmo pelos próprios entrevistados, e reali​zadas inclusive por pessoas leigas, em treinamentos superficiais e rápidos, para fins de rastreamento de transtornos mentais em pesquisas epidemiológicas, até por telefone. Alguns desses instrumentos de pesquisa, apesar de pretensas validade e confiabilidade, tiveram vida quase tão breve quanto a duração proposta para o procedimento. Embora, no Brasil, a expressão clínica esteja muitas vezes associada aos médicos (no campo dos problemas ditos orgânicos ou somáticos), neste capítulo, seguindo Craig (1991), usa-se essa expressão abrangendo psiquiatras, psicólogos clínicos, enfermeiros da área da saúde mental e psicanalistas.

Para Akiskal (1986), o EEM seria análogo ao exame físico praticado na medicina, em que são avaliadas sistematicamente todas as funções do corpo (visão, audição e outros sentidos, aparelhos circulatório, respiratório e outros). De fato, e em parte, ele seria um análogo da revisão de sistemas durante a anamnese médica, pois o exame físico é basicamente objetivo (inspeção, palpação, percussão, ausculta, medida da temperatura e da tensão arterial, etc.). A realização do EEM requer ciência e arte, dependendo de conhecimentos e experiência prática, preferentemente desenvolvida em vários settings (consultórios privados, ambulatórios públicos, hospitais, etc.) e com populações heterogêneas (quanto a idade, condição socioeconômica, religião, gênero, psicopatologia, diagnóstico, etc.), sendo os exames continuamente revisados. Erro habitual consiste no estudante ou profissional da área da saúde contentar-se com um

único EEM, realizado nas primeiras entrevistas para obtenção da história clínica, deixando de reavaliá-lo ao longo do tratamento, contrariando o próprio conceito de status ou estado. Outra fonte de erro no EEM é o seu uso como rotina, sem considerar a diversidade de problemas e de pessoas que, analogamente à avaliação neuropsicológica (Lezak et al., 2012), “. . . propõe um desafio interminável para os examinadores que querem atender os propósitos do exame, avaliando pacientes de acordo com suas capacidades e limites”.

Destaque-se, por fim, o valor clínico de es​tar bem atento às flutuações cognitivas no EEM, em horas ou semanas, que podem sugerir um tipo específico de demência.

Reduções e simplificações do exame do estado mental

Além da já assinalada confusão entre um EEM e o MEEM, é comum, mesmo em hospitais universitários, reduzir o EEM à avaliação da consciência, da orientação e da coerência do curso do pensamento, cujo resultado, nos casos “normais”, é a bem conhecida sigla “LOC” (de lúcido, orientado e coerente). Em 1991, considerei essa sigla muito útil para distinguir pacientes com ou sem delirium e, portanto, com ou sem indicação de Unidade de Cuidados Intensivos, destacando a insuficiência desse exame em deprimidos graves com importante risco de suicídio, até mesmo psicóticos, em delirantes paranoides, em alguns demenciados (não suficientemente graves para perder a coerência do ​pensamento) e mesmo em esquizofrênicos sem curso do ​pensamento desagregado. Todos esses pacientes podem estar “LOCs”, apesar de psicóticos, com juízo crítico comprometido e com funções cognitivas (inteligência e memória) prejudicadas no caso de demência. Acrescente-se que “passam neste exame”, tanto em sua forma reduzida – “LOC” – como no EEM completo, os pacientes com transtornos da personalidade, com abuso e dependência de drogas, e mesmo aqueles com perversões ou parafilias graves, como pedofilia e necrofilia, desde que não se obtenham informações objetivas. Todas essas pessoas podem estar lúcidas (acordadas), bem orientadas no tempo e no espaço, falando coerentemente. Além disso, a identificação, o reconhecimento e a nomeação de um transtorno da personalidade requerem um estudo biográfico, na maioria das vezes com informações objetivas (familiares, registros, etc.), dificilmente obtido em entrevistas breves e/ou padronizadas.

No ensino, tem sido comum o uso de antigas publicações avulsas, práticas e simplificadas, muitas vezes produzidas por alunos de cursos de graduação ou de pós- graduação, que nem sempre passaram por um processo de supervisão para correção e atualização. Algumas delas, pioneiras, tiveram mérito por terem resultado de um esforço legítimo de organização de dados dispersos (sintomas, definições) disponíveis em bons livros de semiologia e de psicopatologia antigos e clássicos (como Karl

Jaspers, Kurt Schneider, Vallejo Nagera, Iracy Doyle e outros). Foi o caso do manuscrito de Abuchaim (1958), no final dos anos 1950, do qual nasceram as bem conhecidas siglas mnemônicas, muito didáticas: ASMOCPLIAC e sua variante, reordenada talvez por alunos de psicologia, “SACOMPLICA”. A primeira delas predominantemente usada nos cursos de Medicina e Psiquiatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; a segunda de uso frequente em cursos de formação de ​- psicólogos. As letras da primeira sigla são as iniciais de Atenção, Sensopercepção, ​- Memória, Orientação, Consciên​cia, Pensamento, Linguagem, Inteligência, Afeti​vi​dade e Conduta, as nove funções mentais ou do ego examinadas nesse roteiro, em que o ​juízo crítico era examinado dentro do ​pensamento, e a avaliação do humor e dos afetos, dentro da afetivi​dade. Em ambos os arranjos mnemônicos transparecia uma preocupação bem maior com a sonoridade, facilitando serem “decoradas”, do que com a hierarquia e a lógica da semiologia e do EEM.

Por isso o meu apelo, em 1991, para ​colocar em primeiro lugar a consciência, incluídas as co​notações de conhecimento e de ​consciência moral e ética e, paralelamente, a afetividade, tam​bém no sentido do envolvimento empático proposto por Jaspers.6 Em um primeiro ​momento, foram reorganizadas as funções em dois subgru​pos, em uma sequência lógica: Consciência, Atenção, Sensopercepção, Orientação, Memória e In​teligência, abreviadas na expressão CASOMI. No ​segundo subgrupo ficavam Afetividade, Pensamento, Conduta e Linguagem (APeCoL). Foi ​- preservada a sonoridade da sigla, mas sem o sacrifício de uma aparentemente mais bem didática organiza​ção lógica e fundamentada na psico​patologia. As justificativas para esse reordenamento foram: 1) a inteligência ficaria mais bem situada junto a outras funções cognitivas (memória e orientação); 2) os distúrbios da consciência costumam ser primários, no sentido de provocar distúrbios da atenção, da sensopercepção, da orientação e da memória, devendo, por isso, a consciência vir em primeiro lugar. Para isso, segui Horvath, ​Sarvier, Mohs e Davis (1989) e também Kernberg (1995) na sua Entrevista estrutural, 1984, apresentada em ​curso nesse tema em 1989. Kernberg (1995) desenhou um diagrama (ciclagem dos sintomas de ancoragem7) que permite o diagnóstico estrutural, essencial na identificação das condições psicó​ticas, borderline, neuróticas e normais. Mais adiante, revisando o esquema,8 o juízo crítico foi destacado do pensamento por seu papel na discriminação de síndromes psicóticas.

A afetividade, o pensamento e a conduta geralmente são as áreas dos principais sintomas das psicoses, embora elas naturalmente incluam perturbações das sensações e da percepção (alucinações) e possam, também, alterar outras funções, como a atenção e a orientação. Apesar de diferentes teorias psicológicas a respeito do que é primário na depressão (o humor triste ou os pensamentos depressivos?) e nas esquizofrenias (a perturbação fundamental é no pensamento ou na afetividade?), seria útil, para

destacar a importância do exame da afetividade, colocá-la em primeiro lugar no esquema do segundo grupo de funções psíquicas.

Por fim, apesar das relações entre pensamento e linguagem, muitas das alterações da linguagem são suficientemente independentes do pensamento, a fim de justificar sua separação: sua colocação em último lugar no esquema, logo após a conduta, serviria também para lembrar que a linguagem pode ser vista como um aspecto da conduta ou comportamento. Revisando bem recentemente o tema da Comunicação e Linguagem, esta passou para o primeiro conjunto, que agora seria: Consciência, Atenção, Sensopercepção, Orientação, Memória, Inteligência e Linguagem. Resolvidos os problemas? Não se respeitamos Vigotsky (2010), para quem fracassaria o método de análise que pretenda decompor pensamento e linguagem, com pensamento e palavra concebidos como dois elementos autônomos, independentes e isolados. Quem sabe, em um bem-humorado assinalamento quanto a algumas formas de reducionismo, Vigotsky (2010) imaginou um pesquisador que, buscando explicar por que a água apaga o fogo, tentaria decompor a água em oxigênio e hidrogênio, mas ficaria surpreso ao perceber que o oxigênio mantém a combustão e que o hidrogênio é inflamável. O pensamento deve, portanto, vir também para junto das outras funções cognitivas.

Poderiam, ainda, existir razões didáticas e clínicas para manter a afetividade em primeiro lugar, seguida pelo pensamento? Talvez sim, pois é o exame conjunto dessas duas funções que pode diferenciar quadros clínicos com sintomas psicóticos graves na área do pensamento (ideias delirantes de controle ou influência), que ocorrem tanto em transtornos esquizofrênicos quanto em transtornos afetivos psicóticos, com ideias delirantes incongruentes com o humor. Um caso clínico bastante ilustrativo é o de “Alice Davis”, em Spitzer e colaboradores (1996), conhecido como “mensagens de radar” nos livros de casos clínicos dos DSMs de 1980, 1989 e 1994.

Depois de um período de depressão e durante o mês que precedeu sua entrada no hospital, Alice, 24 anos, ficou crescentemente eufórica e irritável, com alucinações visuais e auditivas. Ela acreditava que havia um “buraco” na sua cabeça e, através dele, “mensagens de radar” estavam sendo enviadas para ela. Essas mensagens podiam controlar seu pensamento ou produzir emoções de raiva, tristeza e outras que até então estavam sob o seu controle. Alice também acreditava que os seus pensamentos podiam ser lidos por pessoas próximas a ela, e que pensamentos estranhos, vindos de outras pessoas, eram introduzidos na sua cabeça através do radar. Ela descrevia vozes, que às vezes falavam dela na terceira pessoa (“Vejam o que ela está fazendo!”) e, outras vezes, ordenavam diversas atividades, particularmente sexuais (“Vá ter relações sexuais com o fulano!”). (Spitzer et al., 1996).

As alterações do conteúdo do ​pensamento eram bem graves em Alice (ideias delirantes bizarras e/ou de inserção do pensamento?), mas os sintomas de humor precederam a síndrome psicótica e foram mais duradouros do que esta. O delírio de inserção do pensamento, ​embora de grande importância diagnóstica, não é patognomônico da esquizofrenia. A advertência do Present Status Examination (PSE) (Kristensen, 2006) para a inserção do pensamento é válida para muitos sintomas: são comuns os “falsos positivos”, dependendo da maneira como o examinador pergunta durante a entrevista, muitos pacientes respondem de forma afirmativa, mesmo quando não entenderam as questões. Se o examinador não conhece bem os sintomas, tendo deles apenas uma ideia vaga, superficial, por ter “estudado psicopatologia pelos manuais de diagnóstico (DSMs)”, usando “tabelinhas diagnósticas” para verificar “se fecha” ou “não fecha” critérios, ele pode deixar de fazer as perguntas suplementares importantes. Pode, por exemplo, confundir a inserção do pensamento com sintomas obsessivos, mesmo tendo razoável domínio do transtorno obsessivo-compulsivo. Na definição do PSE, a característica essencial da inserção do pensamento é a do sujeito experimentar pensamentos que não os seus próprios penetrando na sua mente. Isto é, o sujeito não se diz obrigado a ter pensamentos incomuns (“pensar que o diabo o faz ter maus pensamentos”): os pensamentos em si não são seus. No caso da inserção do pensamento, o paciente pode chegar a dizer, com convicção delirante, que esses pensamentos foram inseridos em sua mente vindos de fora, por radar (caso de Alice Davis), telepatia ou outro meio qualquer, acrescentando, às vezes, uma explicação delirante, um sintoma adicional.

Outro caso exemplar como o de Alice, é o da psicóloga e pesquisadora Jamison (1996, p. 94). Em seu conhecido livro Uma mente inquieta, lê-se o relato de sua história pessoal e familiar, e da história da sua doença – um transtorno bipolar com sintomas psicóticos:

Em 1974, aos 28 anos de idade, pouco antes, depois de um período no qual se sentia frenética, com pensamentos muito rápidos, Kay viveu uma experiência aterrorizante – via uma centrífuga dentro da sua cabeça e logo depois fora da sua cabeça; aí então a máquina se espatifou em múltiplos pedaços. Pediu socorro para um colega e amigo, que lhe recomendou que consultasse um psiquiatra. Procurou o Dr. Daniel Auerbach, na UCLA, onde a paciente trabalhava.

As duas pacientes, apesar da gravidade das alucinações e delírios, são portadoras do transtorno bipolar e não de esquizofrenia. Esse erro diagnóstico afetaria muito o

futuro de ambas.

Modelos teóricos e suas repercussões no exame do estado mental

Apesar da identificação e nomeação dos sinais e sintomas depender de um razoável ​- domínio do modelo descritivo-fenomenológico (Kraepe​lin, Schneider e Jaspers), é preciso ter alguma fa​miliaridade com outros modelos teóricos: neu​robiológico (Andreasen e Kandel); psicanalíti​cos (Freud, Hartmann, Erikson, Klein, Winnicott, Kohut e outros); cognitivo-comportamental (be​ha​viorismo, teorias da aprendizagem, psicologia cog​nitiva); interpessoal (psicobiologia e teorias do apego/separação); culturalistas ou neofreudianos (Sullivan e Horney); sistêmico familiar (ci​bernética, teoria dos sistemas, teoria da comunicação); existencial-humanista (Maslow e Rogers); e, por fim, o modelo social (Hollingshead e Redlich nos Estados Unidos; Thomas Main e Maxwell Jones na Inglaterra; Ulysses Pernambucano, no Brasil), muito diferente das “antipsiquiatrias” (Laing, Cooper, Szasz e Basaglia). Recomenda-se alguma familiaridade com a filosofia existencialista, mais adiante bem sumarizada, por sua importância na abordagem proposta por Jaspers (1985, 1997). Alguns desses conhecimentos filosóficos permitirão ao entrevistador desenvolver habilidades na semiologia compreensiva, muitas vezes indispensáveis para maior clareza na semiologia descritiva.

O entrevistador deve estar bem atento, todavia, ao efeito que tem sua própria orientação teórica na obtenção dos dados semiológicos e da história do examinado, pelo risco de algumas formas de reducionismo. Pode-se subscrever Jaspers (1985, p. 17) 100 anos depois:

Não conhecemos nenhum conceito fundamental que possa conceber o homem exaustivamente.9 Nenhuma teoria em que se possa aprender . . . toda a sua realidade. Por isso a atitude científica fundamental é estar aberto para todas as possibilidades de investigação empírica. E resistir a toda a tentativa de reduzir o homem . . . a um denominador comum.

Jaspers (1985, p. 41) reforça a necessidade do pluralismo metodológico na psicopatologia, bem diferente dos “ecletismos de conveniência”, quando diz:

Ao contrário de forçar os fatos investigados em uma camisa de força de uma teoria sistematizada, tento discernir entre os diversos métodos de pesquisa, pontos de vista e abordagens, de modo a trazê-los para um foco mais claro e

demonstrar a diversidade dos estudos psicopatológicos.

Concordo com Jaspers (1985, p. 30): os preconceitos teóricos sempre trazem prejuízos para o olhar e a compreensão dos fatos. “Ver-se-ão sempre os dados estabelecidos dentro do esquema da teoria . . . O que depõe contra ela é transformado ou encoberto”.

Lazare (1989) ilustrou muito didaticamente os vieses dos modelos teóricos ao construir quatro vinhetas de Mrs. J, uma viúva de 53 anos com sintomas de depressão: diferentes modelos resultaram em diferentes diagnósticos e, consequentemente, diferentes propostas terapêuticas. Se as iniciais da “paciente” fossem diferentes, pensaríamos em quatro pessoas diferentes.10 Drob (1989) ilustrou o mesmo problema, mas com um caso real, de uma paciente deprimida que passou por diversos profissionais e recebeu propostas terapêuticas bem diferentes.

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