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No processo de apresentar o espetáculo, os conteúdos delineados no roteiro vão se abrindo, mostrando suas conexões, tendo seus significados desdobrados. A intenção de comunicá-los para as pessoas do público, de projetá-los para que cheguem até elas, de interagir com elas e de senti-las, faz com que estes se desenvolvam, se realcem e se ampliem.

As experiências vividas em cada apresentação vão se somando. As cenas do roteiro vão gradativamente se transformando. Mas também são realizadas mudanças pontuais em determinadas cenas durante os ensaios. As modificações são feitas principalmente pela diretora. No decorrer desta etapa ela redesenha cenas inteiras, insere novas elaborações técnicas, suprime algumas falas de Dalva, entre outras. Nos meus trabalhos sozinha, também faço alterações, mas estas são em menor grau, como por exemplo, adicionar ou trocar alguns movimentos, reelaborá-los, mudar as intenções de determinada parte, mudar algumas pontuações ou tempos.

Para fazer as mudanças a diretora observa: (1) as movimentações que vão despontando no corpo da personagem em meu corpo no decorrer do roteiro; (2) as partes do roteiro nas quais eu atingi um determinado nível de desenvolvimento na minha performance (tanto física, quanto em relação aos sentidos) e agora podem evoluir mais; (3) as partes que estão mais "enfraquecidas" e podem ser melhoradas.

No primeiro caso (1), a diretora assinala para mim o que meu corpo está apontando e muitas vezes indica que eu assuma essas movimentações, ampliando-as. Isto acontece, por exemplo, em uma passagem da cena da "valsa do sonho de colo" na qual Dalva desce escorregando por uma das cordas das asas do andaime até sentar-se na asa. Analisando as gravações em vídeo das apresentações é claramente visível como o corpo de Dalva ao chegar na asa vai em direção a se deitar sobre ela, mas não chega a deitar-se. Esta intenção aparece às vezes maior, outras menor, mas não se concretiza. Até que em determinado ensaio a diretora redesenha esta parte, amplia e pontua o movimento,

indicando que Dalva deite-se completamente na asa e permaneça ali por alguns segundos, para em seguida levantar-se subitamente e partir para o alto do andaime. A diretora treina este movimento comigo em termos dos tempos das ações, da colocação do corpo e de como segurar na corda do andaime e encaixar os pés na estrutura para que eu possa chegar ao alto do andaime rapidamente. Ou seja, é um movimento que embora estivesse despontando no corpo da personagem, precisava ser anunciado e estudado tecnicamente para poder se desenvolver.

No segundo caso de alterações no roteiro indicado acima (2), as mudanças são feitas com base na minha evolução na vivência do roteiro, tanto no aspecto da agilidade física, quanto no da agilidade e domínio dos sentidos. Na cena da "valsa do sonho de colo", por exemplo, conforme vou adquirindo agilidade no valsar no andaime e na expressão dos sentidos, a diretora indica que eu comece a tirar a métrica regular da valsa na execução dos movimentos, propondo outros tempos e acentuações, interligando-os aos sentidos.

Outro exemplo é na cena da "dança da saia de princesa". À medida que Dalva obtém maior desenvoltura nesta cena, conseguindo trazer os sentidos mais fortemente para o corpo e desenvolvê-los, ela passa a dançar mais animadamente, mostrar melhoras na agilidade física e ocupação do espaço e aprimorar a linguagem de movimentos dos seus pés. Começa a faltar tempo para ela desenvolver a sua dança. A diretora então redesenha esta cena de modo que Dalva tenha mais tempo para explorar os seus conteúdos em movimento.

Algumas mudanças são mais ligadas ao desenvolvimento dos sentidos internos e menos às habilidades físicas. No final do roteiro, por exemplo, a movimentação de Dalva é simples em termos de atuação corporal, é basicamente uma caminhada, a expressividade do corpo e da fala nesta ação depende de uma articulação interna dos sentidos. Na estréia do espetáculo, este final está desenhado de forma que antes de sair do espaço cênico Dalva vira-se novamente para dentro do espaço e olha para o andaime, depois se desvira, sai do espaço e diz: "Eu vô é vivê. Prá sempre".

Com a experiência das apresentações os sentidos deste final vão "amadurecendo" em mim e este pode ser redesenhado. Na última versão desta cena, a diretora desenvolve-a de forma que Dalva sai do espaço cênico sem olhar para trás e ao sair

diz "Eu vô é vivê. Vivê. Vivê. Vivê". Anda por entre o público e a cada vez que fala "vivê" dirige-se a uma pessoa. Esta palavra é dita com muita força de vida e desejo de vida. Diversas pessoas do público comentaram, ao término do espetáculo, da força deste momento e de ter sido este o momento do espetáculo que mais as emocionou.

Vale ressaltar a importância de a diretora no método BPI estar atenta a este processamento interno da intérprete e realizar as modificações do roteiro gradativamente, na medida deste amadurecimento. Pois as situações do roteiro não são representadas, não são realizadas de fora para dentro, é preciso haver uma origem dentro da pessoa para cada situação vivida em cena. No caso desta cena do final, seria fácil a diretora ter mudado o seu desenho desde o início e eu ter executado a cena da nova maneira, eram gestos e falas simples de serem executados. Porém, se não tivessem uma repercussão legítima dentro de mim, estes gestos e falas não iriam adquirir a mesma qualidade expressiva na comunicação com o público e nem o mesmo significado para o meu desenvolvimento pessoal.

Com o desenvolvimento do espetáculo através das apresentações, os gestos mais simples – isto é, sem grandes performances físicas e mais dependentes de que sejam trazidos fortemente os sentidos no corpo – vão ganhando força. Através do domínio do trabalho com os sentidos, começa a ser possível segurar toda a atenção do público mesmo em um movimento pequeno e sustentar este envolvimento.

Este fortalecimento dos sentidos no corpo permite que a diretora comece a mexer na estrutura de tempo do trabalho. Ela indica que eu explore outros ritmos no contato com o público, que em alguns momentos trabalhe em um ritmo mais lento. Isto me exige mais projeção, mais força e um direcionamento a fazer o tempo todo a ligação com o público. Por outro lado, também há cenas nas quais as passagens de um sentido a outro podem agora ser feitas mais rapidamente, com pontuações e acentos mais marcados. O roteiro vai ficando mais enxuto, com os tempos mais ajustados.

Na perspectiva do BPI estes ajustes no timing das cenas só são feitos à medida que o intérprete vai adquirindo agilidade no seu tempo interno de constituição dos sentidos de cada fragmento de cena. Da mesma forma que na criação do roteiro como um todo (ver item "Terceira fase: criação do roteiro do espetáculo", p.95), a estipulação do tempo das

intérprete, ficando em segundo plano as necessidades dramatúrgicas "tradicionais", isto é,

as necessidades da cena vistas a partir de um ponto de vista externo.

No caso das mudanças realizadas pela diretora no roteiro com base nas partes que estão mais "enfraquecidas" (3), essas modificações visam resolver os "problemas" percebidos, como por exemplo, momentos nos quais a comunicação dos sentidos para o público pode ser melhorada, partes nas quais freqüentemente me falta fôlego, entre outros.

Ao redesenhar as cenas na etapa das apresentações a diretora retira diversas falas de Dalva. As falas continuam existindo enquanto sentido interno para Dalva, modelando o seu movimento. No desenvolvimento das apresentações a voz de Dalva vai ficando menos infantil. A certa altura desta etapa a diretora indica que eu busque uma idade mais avançada de Dalva para o trabalho com a sua voz e também libere mais a agressividade dela na fala.

As mudanças realizadas são etapas para que a seguir novas elaborações sejam feitas. À medida que os conteúdos e as movimentações vão ficando bem incorporados em Dalva, é possível, e necessário, prosseguir um pouco mais. O espetáculo está sempre em processo. Não há um ponto final para este percurso de modificações, ele será realizado

enquanto houver motivação para viver as apresentações.