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O BPI lida com potencialidades do corpo ligadas à sua sensibilidade que precisam ser diariamente trabalhadas para que se mantenham afloradas e desenvolvam-se.

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O corpo precisa estar preparado para na hora da apresentação poder modelar um corpo novo, trazer novos sentidos de acordo com as circunstâncias e a originalidade da personagem. A base para este trabalho, como já dissemos, é a Estrutura Física do método BPI.

Realizamos vários procedimentos em sala de trabalho para o desenvolvimento da personagem nos períodos entre as apresentações. Os trabalhos visam ampliar o que é e o que pode ser Dalva, conhecê-la melhor, reconhecê-la em meu corpo, além de aprimorar suas modelagens e movimentos.

Enfocamos as imagens e sentidos da personagem que geram uma maior mobilização do corpo. As atividades realizadas com a diretora e indicadas para que eu realize também sozinha envolvem, por exemplo: investigar outras histórias da vida de Dalva fora e dentro do roteiro; explorar outras modelagens de seu corpo; ampliar os significados ligados à personagem; refletir sobre os aspectos simbólicos vividos através dela; refletir sobre as mensagens expressas no roteiro; e atualizar constantemente os sentidos que levam Dalva a começar a contar as histórias do roteiro. Por que começar?

Na etapa do fechamento do roteiro a elaboração e ampliação dos movimentos de Dalva foram muito trabalhadas, mas havia um limite para estes aprimoramentos. De maneira semelhante ao que colocamos anteriormente sobre o timing das cenas (item "O desabrochar do roteiro", p.145) era preciso haver um fortalecimento dos sentidos no corpo para que determinados aspectos técnicos pudessem ser aprimorados. Do contrário, corria-se o risco dos movimentos perderem seus sentidos internos e com isso o corpo da personagem perder a força de sua modelagem.

Na etapa das apresentações, com o fortalecimento da personagem em meu corpo, sua atuação ganha mais fluência, de forma que podem ser feitos novos trabalhos de ampliação e elaboração de seus movimentos, aumentando-os, sem que estes percam os sentidos internos. A própria personagem começa a crescer seus movimentos na interação com o público.

Relações com fatos da atualidade

Durante todo o processo de criação houve uma indicação da diretora para que eu ficasse atenta aos fatos da atualidade, através da leitura de jornais e revistas e de discussões realizadas entre nós. Este é um procedimento próprio do BPI (ver item "Pesquisa das cenas e sua ordem no roteiro", p.106). Na etapa das apresentações esta atividade continua e é enfatizada, a diretora orienta-me a trazer alguns fatos da atualidade que possuem relação com os conteúdos do roteiro para dentro das cenas.

A leitura dos jornais também me auxilia no processo de atualizar a personagem. Atualizar a personagem envolve vários procedimentos, como por exemplo, investigar como e onde está a personagem "hoje" ou colocá-la em relação a determinados acontecimentos atuais: como é Dalva vivendo esta situação? A diretora orienta-me a ler jornais buscando nas notícias e imagens onde está Dalva nesse dia específico. As notícias de jornal sobre moradores de rua, por exemplo, trazem lembranças de situações vividas por Dalva, como procurar lugar protegido para dormir, brincar na saída de ar do metrô, pegar restos de comida em feira, entre outros.

Os fatos da atualidade penetram o roteiro ampliando e intensificando os sentidos das cenas, além de trazer imagens mais vívidas que mobilizam o corpo. Nesse sentido, os fatos da atualidade mais marcantes na etapa das apresentações foram o massacre de crianças russas na escola de Beslan125 e os assassinatos de moradores de rua na Praça da Sé126, ambos em 2004.

Eu estava em apresentação no período em que as crianças de Beslan foram feitas reféns e lembro-me de este fato ter dado a Dalva muita força de luta. As partes do roteiro referentes ao dragão, a vê-lo rondando, a lutar com ele e a defender o corpo contra ele ganharam uma outra intensidade. Assim como a cena da "morte do cisne", o dançar

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Em 1o de setembro de 2004 um grupo de rebeldes separatistas chechenos invadiu uma escola de Beslan, na Rússia, durante as comemorações do primeiro dia de aula, fazendo mais de 1.000 pessoas reféns, entre crianças e adultos. A situação perdurou até o dia 3 de setembro quando as forças de segurança russa invadiram a escola. A ação resultou em mais de 300 vítimas fatais, sendo mais de 150 delas crianças, e centenas de feridos.

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Entre 19 e 22 de agosto de 2004 sete moradores de rua foram executados com pancadas na cabeça e mais oito foram feridos nas imediações da Praça da Sé. Nada aconteceu aos agressores.

frente aos homens armados, a fragilidade do corpo frente às pistolas e espingardas, o sentimento de resistir, não se entregar, ganharam atualidade.

No caso dos assassinatos dos moradores de rua foi algo muito próximo de Dalva, pois além de ela ser moradora de rua, eu havia feito pesquisa de campo na Praça da Sé. Era como se amigos de Dalva tivessem sido assassinados e ela própria estivesse correndo perigo. A diretora sugeriu que eu fizesse painéis com as notícias dos assassinatos e os colocasse em local visível próximo ao espaço cênico durante as apresentações deste período.

Ficaram mais aguçados no roteiro os sentidos de ter que ficar atenta e se proteger, de ver sujeira de sangue, pedaços de roupas e sapatos dos amigos deixados para trás, pressentir o dragão rondando muito próximo e ter medo de ser a próxima vítima. Ser rodeada por homens armados que agora surgiam com paus e cassetetes ao invés de pistolas e espingardas.

Além de renovar e ampliar os sentidos das cenas, a interação com os fatos da atualidade também tem relação com puxar as "redes de afeto" durante a apresentação e assim estabelecer uma conexão mais ampla com o público (ver item "Ir além da própria individualidade", p.158). Estas "redes" além de puxarem o que provém de cada público específico na sua relação com os conteúdos do roteiro, também abarcam uma perspectiva maior, uma ligação com o que está mais em evidência a nível social em determinado local e período.

Influências da intérprete

Existe um entrecruzamento entre o modo como a personagem vem a cada dia – mais agitada, mais quieta, mais alegre – e o estado de ânimo do intérprete. Contudo, esta relação não é linear, são muitas as vezes nas quais a personagem surpreende o intérprete no modo como ela se apresenta. Por exemplo, havia dias nos quais eu estava cansada e com pouca força muscular e Dalva vinha com força e realizava ações que eu não me sentia em condições de realizar, ou o inverso, eu estava animada e cheia de energia e a personagem vinha quieta, encolhida.

Pude perceber nos meus trabalhos diários durante a etapa das apresentações, que quando eu estava muito cansada tendia a reduzir ainda mais minha força, realizando o roteiro ao mesmo tempo em que pensava que não conseguiria chegar até o fim. A impressão era de estar sempre segurando um pouco meu corpo, por medo de não ter energia suficiente para ir até o final, e conseqüentemente segurava também a personagem.

Nesses ensaios instaurava-se em mim um sentimento de desistência ligado à interiorização de um modelo de performance a ser atingido. Como se eu estivesse "errada" se não conseguisse realizar o roteiro de determinada maneira, a qual estava ligada a um alto rendimento em termos de atuação física. Eu evitava um contato real com o meu corpo.

Foi preciso sair deste padrão da dança, no qual o intérprete precisa sempre "render" – e de uma maneira sempre igual – se não é "deixado de lado" ou repreendido, e me lembrar que o trabalho todo emanou do meu corpo, é parte de mim. O trabalho é algo que me fortifica, que eu domino e que está "em minhas mãos". Não há um modo "certo" de realizá-lo, ele deve ser vivido a cada ensaio de uma maneira única, de acordo com as

condições reais do meu corpo e de Dalva em mim.

Uma vez que eu me proponho a realizar o roteiro assumindo como meu corpo se apresenta, danço com a força toda canalizada para a vitalidade. Permito-me sentir o que emana do meu corpo. É possível tornar a desistência, superação. Quando o corpo está muscularmente cansado, o trabalho tende a ficar mais focado na potência dos sentidos, sensações, imagens e emoções. Os movimentos apresentam-se projetados e expressivos, surgem renovados a partir dos impulsos internos. Não há movimentos supérfluos, o corpo detém-se no que é essencial.

POTENCIALIDADE AFLORADA – A PERSONAGEM TOMA A