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No decorrer da etapa das apresentações a diretora indica que eu busque deixar Dalva mais livre para poder alterar as cenas do roteiro de acordo com os sentidos que estão nela em cada momento, na interação com as pessoas do público e com o espaço.

As cenas do espetáculo possuem partes mais "abertas" e outras mais "fechadas", em termos da delimitação das matrizes de movimento realizadas. As partes mais abertas são bem delimitadas quanto ao percurso de sentidos, mas há uma maior flexibilidade quanto a variações na movimentação. A diretora orienta-me a ter liberdade de flexibilizar também as partes mais "fechadas" do roteiro.

Assim, em cada apresentação o roteiro é realizado de acordo com as singularidades do público, do espaço e de Dalva naquele dia. Algumas vezes as mudanças aparecem em pequenos momentos ao longo de todo o roteiro, enquanto outras vezes surgem seqüências inteiras de movimentos inusitados. São movimentos fundamentados nas características corporais de Dalva e relacionados aos sentidos a serem expressos em cada parte do roteiro.

Na vivência do roteiro durante as apresentações acontecem momentos nos quais determinados segmentos de cenas são vividos por mim de forma inusitada. Como se os sentidos destas partes tivessem se intensificado e emergido com tudo nesse momento e isso mudasse o modo como eu as realizo. É sentido por mim como um insight sobre as potencialidades destas partes de cenas. Isto é decorrente de todos os trabalhos realizados nos ensaios, mas principalmente da aplicação destes trabalhos no momento de passar os conteúdos do espetáculo para o público. Durante a apresentação há uma

necessidade/intenção real de comunicar os sentidos para as pessoas do público, o que potencializa estes sentidos no corpo em movimento.

Essas vivências mais intensas de determinadas partes do roteiro trazem descobertas que se mantém nas próximas apresentações, como se estas partes fossem "se abrindo". Fica em mim o registro de como é sentir com forte intensidade os conteúdos ligados a estas partes e comunicá-los para as pessoas. A sensação é de que estes segmentos do roteiro vão "passando de patamar". Porém, são infinitos os "patamares" a serem galgados.

Logo na estréia do espetáculo114, sinto esta vivência especial em algumas partes do roteiro. Por exemplo, na cena do "arrastão do lixo" quando Dalva se aproxima do público e diz "eu acho que eu vô dançá". Tenho uma sensação diferente daquela que eu tinha nos ensaios. É mais intenso. A aflição de Dalva sai mais para fora e toma o corpo todo, ao mesmo tempo Dalva fica rindo meio sem graça com vergonha das pessoas.

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Às vezes esta "passagem de patamar" acontece com a maneira como é dita uma única fala. Isto ocorre, por exemplo, em uma das apresentações na UNICAMP115 com a fala "meu corpo, meu corpo. Meu corpo não vai para vender não" da cena da "dança do lixo". Neste dia Dalva traz com muito mais força nesta fala os sentidos que estão relacionados a este momento, como a agressividade, o enfrentamento e o desafio. O corpo de Dalva projeta-se, ligando-se com as pessoas ao redor de todo o espaço, seus movimentos se ampliam. É uma apresentação na qual está cheio de adolescentes no público: ao dizer esta fala Dalva está dizendo também para eles não venderem seus corpos e, ao mesmo tempo, para eles não acharem que o corpo dela está à venda (ver Figura 23).

Fotos: Pedro Peixoto Ferreira

Figura 23 – Fotos da cena da "dança do lixo" (apresentação em Campinas, SP, agosto de 2004).

A cena da "luta com o dragão" tem uma "mudança de patamar" na última apresentação realizada até o momento, na Praça do Centro de Convivência Cultural em Campinas116. Neste dia testamos pela primeira vez uma nova trilha sonora para esta cena. Mixamos a música da Barca117 anteriormente utilizada, com as vozes das pessoas do lixão do filme Boca de Lixo (1992), um aboio118 e um toque de Iansã119. Estas modificações

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Ver ANEXO 4 (UPA – Universidade de Portas Abertas – Estacionamento do Departamento de Artes Corporais da UNICAMP).

116

Ver ANEXO 4 (Unicamp Ano 40 – Praça do Centro de Convivência Cultural).

117

Congada de Santa Ifigênia do Bairro Santa Tereza, Mogi das Cruzes-SP (DIAS, 2003).

118

Aboios de José Gomes Pereira, Antônio Mendes e Joaquim Manoel de Souza (ANDRADE, 2006).

119

fazem com que meu corpo traga uma outra força para esta cena e libere novos impulsos de movimento.

O toque de Iansã dá mais urgência e um pulso no corpo, traz a matriz de movimento dos pés de Iansã e o movimento de corte com a espada. As falas do filme Boca

de Lixo (1992) trazem os amigos de Dalva de novo para a cena – pessoas do lixo cujas

vozes aparecem no início do roteiro – e um clima de suspense quanto ao que irá acontecer com estas pessoas. O aboio traz uma força das entranhas que se exprime no corpo como se o fosse abrindo de dentro para fora (ver Figura 24).

Filmagem: Isabella Franceschi

Figura 24 – Stills de vídeo: cena da "luta com o dragão", parte no andaime (apresentação em Campinas, SP, outubro de 2006).

Os movimentos de Dalva fluem do meu corpo com uma energia extra. Na parte final da cena ela muda a coreografia feita. Seu corpo libera um dínamo de movimentos. Faz uma caída no chão de joelhos, sobe em um único impulso e entra em um sapateado de congado ao redor do espaço depois transformado em um pé miudinho, com "raízes soltas"120, muito ágil (ver Figura 25).

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Termo usado no método BPI para qualificar o grau de esforço empregado pelos pés na relação com o solo. "Raízes soltas" refere-se a um esforço médio, no qual o contato com o solo vai além da superfície (ver RODRIGUES, 1997, p.46).

Filmagem: Isabella Franceschi

Figura 25 – Stills de vídeo: cena da "luta com o dragão", parte no chão (apresentação em Campinas, SP, outubro de 2006).

Rodrigues (1997, p.78) explica sobre o dínamo de movimentos:

Há momentos em que o corpo penetra num fluxo contínuo de movimentos cheios de impulsos e pontuações [...] Sucessivamente um movimento gera o seguinte. A rapidez deste processo, em que há o entrelaçamento do movimento interno e externo, ocorre num corpo super estimulado, pois o dínamo instaura-se no indivíduo quando ele atinge o ápice de sua integração com todos os elementos da festividade, encontrando-se também harmonizado com o grupo participante. Geralmente, este processo de fluição se desenvolve [...] no instante em que é necessário a superação de limites.

Esta cena da "luta com o dragão" acontece no final do roteiro e sempre me exige muito fisicamente. Neste dia percebo que meu corpo possui mais energia do que eu imagino. No momento em que acho que estou cansada, Dalva traz um impulso de movimentos surpreendente, dinâmico, acelerando ainda mais o ritmo da cena. Vem com tudo em meu corpo uma Dalva guerreira, com estratégias de luta e até um prazer em lutar.