LABORATÓRIOS VOLTADOS PARA A PESQUISA DOS CONTEÚDOS E CARACTERÍSTICAS DO ROTEIRO
TRABALHO COREOGRÁFICO
Há momentos nos quais é possível juntarmos a pesquisa de movimentos e os sentidos, enquanto em outros ficamos em um dos pólos. Muitas vezes realizamos pesquisas de movimento bem técnicas, sem a personagem no corpo. Depois, quando pegamos a personagem, fazemos o trabalho de integrar novamente os movimentos com os sentidos. Às vezes isso acontece de imediato e dá mais vigor à atuação de Dalva, outras vezes é necessário um esforço constante.
Assim, no processo de desenvolver os conteúdos trazidos por Dalva que irão compor as cenas do roteiro há a elaboração dos movimentos e também a pesquisa dos sentidos e imagens. Por exemplo, na "valsa do sonho de colo" exploramos as diversas
possibilidades de movimentos de balanço no andaime, valsar no andaime, e também os sentidos de sentir falta de colo, ninar-se, querer sentir um aconchego, entre outros.
Nesta etapa utilizamos como trilha sonora principalmente: valsa Branca e outras valsas de Zequinha de Abreu82, Valsa das Flores83, Danúbio Azul84, O Cisne85, Terezinha e Lindalva86, músicas de Maracatu Rural87, músicas de Congado88, sons do filme
Boca de Lixo89, Aniceto do Império90, Cartola91, Adoniran Barbosa92, Zambiapunga de
Taperoá93, Ottmar Liebert94, Beethoven95 e Roberto Corrêa96. Também testamos em alguns trabalhos Stravinsky97 e Villa Lobos98.
A diretora realiza determinados trabalhos comigo e indica que eu dê prosseguimento a eles sozinha. Neste momento do processo as orientações da diretora apresentam como focos principais:
• O trabalho com os diferentes conteúdos de Dalva que comporão as cenas do roteiro; • A investigação das sensações e sentidos trazidos pela exploração dos objetos e pela atuação em cada um dos níveis do andaime99 (ver Figura 13);
• A elaboração técnica dos movimentos de Dalva no chão, no andaime e na manipulação dos objetos. 82 Abreu (1979). 83 Tchaikovsky (1983). 84 Strauss Jr (1988) 85 Kurtz e Groves (1992) 86 Terezinha e Lindalva (1999). 87 Vianna e Villares, (2001). 88 Dias (2000b, 2003); Titane (1999). 89 Boca de Lixo (1992). 90 Império (1984). 91 Cartola (1974). 92 Barbosa (1990). 93 Vianna e Villares (2001). 94 Liebert (1990). 95 Beethoven (1984). 96 Corrêa (1997). 97 Stravinsky (1983). 98 Villa-Lobos (1993). 99
O andaime mede quatro metros, para pesquisá-lo nós o dividimos em quatro níveis. O quarto, que era o do alto, constituía-se em um pequeno platô feito com tábuas.
Filmagem: Graziela Rodrigues
Figura 13 – Stills de vídeo: investigação dos sentidos trazidos pela atuação no andaime.
Precisamos descobrir os sentidos do andaime para Dalva e o que acontece em cada espaço dele. Dalva precisa efetivamente incorporar o andaime. No método BPI este trabalho de incorporação dos objetos é realizado com todos os objetos selecionados para serem utilizados durante o processo. Os procedimentos para que ocorra essa incorporação envolvem a exploração da manipulação dos objetos aliada a uma atenção ao próprio corpo, quanto às sensações, imagens e emoções despertadas nessa exploração. Segundo Melchert (2007, p.58) "[i]ncorporar um objeto no Método BPI é torná-lo como parte do corpo, integrando-o à Imagem Corporal. Isto acarreta numa ampliação da extensão do corpo, que tem sua imagem ampliada".
Schilder (1999, p.223) destaca este aspecto: "[o]utra prova de labilidade da imagem corporal é o fato de qualquer objeto que se conecte com a superfície do corpo ser, em alguma extensão, incorporado a ele". No BPI objetivamos elevar ao máximo a extensão desta incorporação do objeto pelo corpo. Segundo Merleau-Ponty (1994, p.199) o hábito a determinados objetos nos permite "dilatar nosso ser no mundo" anexando a nós novos elementos: "Habituar-se a um chapéu, a um automóvel ou a uma bengala é [...] fazê-los participar do caráter volumoso de nosso corpo próprio".
Nesta etapa do processo criativo a incorporação do andaime pela personagem ainda não ocorre, visto que Dalva não o considera nas suas vivências corporais: há laboratórios nos quais, se a diretora não dá a indicação para que Dalva vá ao andaime, ela acaba ficando no chão a maior parte do tempo. Apesar de eu já trabalhar com o andaime desde o início do processo criativo, ele ainda não faz parte do imaginário de Dalva, é
preciso um trabalho para que ela assuma o andaime como parte do seu espaço e, mais ainda, como parte do seu corpo.
Os dados sobre os conteúdos e características do roteiro vão surgindo gradativamente. Através dos pequenos achados que fazemos a cada dia de laboratório vamos aos poucos descobrindo como será o roteiro e quais serão os conteúdos das cenas.
No decorrer desta etapa a diretora pontua as características básicas do roteiro, dentre elas, a de ele ser um "grande épico clássico"; trazer como dois de seus
conteúdos o "drama ligado ao dragão e São Jorge" e a "potência versus impotência"; começar tudo condensado (o andaime fechado com panos, as histórias de Dalva nele, assim como os objetos e o lixo), terminar tudo aberto (o andaime sem os panos, as histórias reveladas, os objetos e o lixo para fora); trazer o ciclo do dia – do amanhecer ao entardecer – e no período entre eles a "realidade nua e crua"; e dar voz às pessoas que vivem dos lixões.
A diretora indica que eu me indague sobre o que os conteúdos trazidos por Dalva têm a dizer, o que Dalva tem a dizer para as pessoas? No BPI sempre retornamos à reflexão sobre o que dizer com a própria dança.
A certa altura desta etapa a diretora orienta-me a fazer um trabalho de entrar em contato com as sensações do corpo de Dalva para investigar as marcas do corpo dela. Este trabalho visa aprofundar o conhecimento sobre o corpo de Dalva – rastrear cada detalhe dele – e ter uma maior assunção de como é este corpo.
Durante três dias detenho-me investigando as marcas do corpo de Dalva. Faço a seguir uma síntese dos resultados encontrados através desta pesquisa:
• Boca. A boca de Dalva sangra. Boca entupida. Nojo na boca. Às vezes ela não consegue engolir;
• Peito. É marca das coisas que ela já perdeu. Das dores que ela sentiu. Derrama. Seu peito chora sangue;
• Ventre. Bola de fogo. Resto de bola escura e dura de dor. Na barriga Dalva tem uma luz que a faz viver. Ela vive acelerada. Pula e se agita. Mas às vezes parece que surge uma bola que pesa. Pesa de morte. Na barriga ela teve desilusão;
• Costas. Pancadas que já levou. Amassa, esmaga, achata, não consegue nem respirar; • Escápula direita. Garras, pancadas;
• Braços. Marca de puxão. No braço direito ela tem a força do dragão; • Pulsos. Estiveram presos;
• Pernas. Dalva teve as pernas arregaçadas. Depois amarrou as pernas durante um tempo. Ela se lembra do arregaçado e do amarrado;
• Joelhos. Seus joelhos são saltados para fora. Ela sempre bate ou acaba raspando. Sempre esfolados;
• Tornozelos e canelas. Machucadinhos, picadas de insetos;
• Pés. Às vezes ela não quer pisar no chão, quer ficar lá no alto, quer voar. Seus pés são grandes;
• Dalva segura firme na vida para impedir que esta escorregue de seu corpo.
Nesta etapa do processo criativo vamos abrindo vários conteúdos de Dalva a partir dos princípios de cenas que já existem. De cada cena vão surgindo inúmeras
ramificações e também novas possibilidades de cenas. Ao final desta etapa há um grande
volume de material a ser trabalhado. A diretora vai organizando o material que surge, dividindo-o em temas e percebendo suas interligações. Tudo gira em torno da personagem. Dentre os conteúdos exteriorizados por Dalva, não sabemos ainda quais farão parte do roteiro e como serão as interligações entre eles. Há um método de criação a ser trilhado,