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Nos quatro meses da primeira fase do processo meu corpo exterioriza um grande volume de paisagens, sensações, emoções e modelagens de corpos. Chega um momento no qual fica difícil conseguir aprofundar-me mais nesta pesquisa interna do meu corpo e também saber que condução dar aos conteúdos emergidos dele. A partir da minha experiência no método BPI, eu pude iniciar o processo sozinha, mas para seguir mais adiante é necessária a atuação de um diretor.

Desde o começo desta nova criação artística eu tinha a intenção de pedir a Graziela Rodrigues que me dirigisse em mais este processo. O BPI é um método no qual a participação de um diretor é fundamental36. Sem a direção, podemos seguir no processo até certo ponto, mas para ir além é preciso ter alguém capacitado que possa, dentre outros fatores, mergulhar junto com o intérprete no universo de sensações, imagens e emoções que seu corpo expressa e saber como conduzir os trabalhos para que este universo flua no corpo, se aprofunde e simbolize. Rodrigues (2003, p.126) observa que no BPI "[a] Direção trabalha com a pessoa no sentido de possibilitar-lhe o máximo possível a vivência de suas paisagens".

O diretor ajuda a puxar de dentro do corpo do intérprete aquilo que ele detecta que está despontando neste corpo. No BPI trabalhamos com tantas sutilezas que às vezes é difícil para o próprio intérprete perceber alguns conteúdos que emanam do seu corpo. O diretor é capaz de perceber estes conteúdos e criar estratégias para que estes venham à tona. Rodrigues (2003, p.132-133) explica que "[a] direção deve ter a percepção dos pequenos

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movimentos que ocorrem no corpo da pessoa em Processo, gerando condições favoráveis para que esse corpo expresse, no seu tempo, aquilo que é seu e não o que a direção supõe que seja".

O diretor decodifica o que o corpo do intérprete está exteriorizando e retorna este conteúdo ao intérprete para que este tenha consciência e elabore o que está em seu corpo. O diretor auxilia o intérprete a abrir-se para aceitar o que vem em si – mesmo que não corresponda às suas expectativas – e para abrir mão daquilo que está enfraquecendo, parando de surgir no seu corpo. De acordo com Rodrigues (2003, p.84) "[é] importante que as pessoas recebam da direção total acolhimento para sentirem o que está registrado nelas, sem censura, sem moralismos". O diretor dá amparo e proteção para que o intérprete possa ir mais a fundo nos conteúdos que emergem do seu próprio corpo.

Dentre os atributos necessários a um diretor no método BPI, Rodrigues (2003, p.134) aponta: "a formação do diretor para este processo deve incluir uma familiaridade com o movimento que diz respeito a conhecimentos sensíveis, amplitude do conceito movimento e sua própria prática vivencial com o movimento". Além de: "saber realizar o toque, a palavra, utilizar o som, a música, fazer as mudanças de dinâmicas para aquele corpo e nos devidos momentos" (ibid., p.135). Em síntese, Rodrigues nos diz que "[o] diretor deve ser artista, ter vivido o Processo, ter conhecimentos amplos e experiência em relacionamento humano, estrutura afetiva e autoconhecimento. Estar num momento de se disponibilizar para o outro" (ibid., p.156).

Além de Graziela Rodrigues ser uma excelente profissional, ser a criadora do método BPI e uma pessoa em quem eu tenho plena confiança, eu também me identifico muito com as suas idéias estéticas e artísticas. Isso é importante, pois a partir do ponto em que chamamos um diretor, ele cria conosco e o produto final também é caracterizado por sua concepção estética: "para fazer um processo como este a pessoa escolhe o diretor, e também há um risco nisso. Este risco precisa ficar claro para ambas as partes. O processo está vinculado tanto à pessoa que o vivencia como àquela a quem ela procurou para dirigi- la" (RODRIGUES, 2003, p.155-156).

A partir de sua entrada na direção Graziela Rodrigues passa a conduzir todo o processo criativo, sempre focando no que emerge do meu corpo e mantendo uma abertura para que eu me coloque quanto às conduções que são dadas.

Os laboratórios no BPI são totalmente conduzidos pela diretora. Cada laboratório é muito bem planejado pela diretora de acordo com o que o meu corpo necessita e de acordo com o desenvolvimento do processo criativo. Além das conduções dos laboratórios, a diretora realiza trabalhos técnicos de movimento e discussões sobre os objetos, vestimentas, trilha sonora e outros desenvolvimentos da criação artística, assim como dá indicações de tarefas para que eu realize em meus trabalhos sozinha. A atuação da diretora durante todo o processo criativo é constante e abrangente.

Com Graziela Rodrigues dirigindo-me, posso entregar-me mais nos laboratórios, pois há alguém qualificado comigo para dar-me indicações do que é preciso fazer, para ajudar-me a entender o que está ocorrendo em meu corpo e para elaborar os conteúdos que vêm à tona. A diretora também atua em um âmbito maior no procedimento de ver o todo, de perceber como o processo encaminha-se, saber o que fazer com as diversas modelagens de corpos, imagens e sentidos que surgem em mim e como dar prosseguimento ao desenvolvimento da criação. Do mesmo modo, direciona o processo no momento de fechar o produto artístico, de construir o roteiro e as coreografias, desenhar o percurso de sentidos, as várias cenas e suas interligações.

É importante lembrarmos que no presente texto enfocamos a atuação do intérprete no método BPI e não a da direção. A atuação da diretora durante o processo não foi registrada, por não ser este o foco da pesquisa. Deste modo, não me atenho neste texto às conduções dadas pela diretora – tanto nos laboratórios quanto fora destes – pontuo apenas as principais indicações passadas de forma a propiciar uma clareza quanto às etapas da criação artística.

Quando Graziela Rodrigues inicia a me dirigir neste novo processo criativo, pede que eu lhe relate sobre o processo desenvolvido até este momento, sobre minhas intenções com este produto artístico em construção e conversa comigo a respeito de como será organizado o nosso processo de trabalho.

Após esta conversa inicial a diretora realiza um trabalho de laboratório comigo. Dentre os corpos que surgem neste primeiro laboratório dirigido pela diretora, ela destaca os seguintes: o corpo bicho, bicho enjaulado, corpo que apresenta torções e corpo que tem relação com um xamã primordial – ele rouba o fogo e o leva para os homens. Também destaca os conteúdos trazidos por um corpo mulher: estar com os pés na lama; puxar muitas latas; querer ter uma antena parabólica; e os delírios da mulher – ver a água inundando tudo. A diretora detecta um universo recheado pelas memórias da mulher – suas histórias – por realidades fantásticas, pelas paisagens urbanas e contextos miseráveis, por textos, falas e palavras.

Baseada em nossa conversa e principalmente no que meu corpo apresenta neste laboratório, a diretora indica-me uma imersão em diversos materiais (livros, vídeos, CDs) além da realização de uma pesquisa de campo complementar.

A pesquisa dos materiais é uma estratégia para auxiliar a trazer à tona o que está em meu corpo. Como explicamos anteriormente, estes elementos externos pesquisados no processo BPI não vêm no sentido de preencher ou moldar o corpo, o foco são os conteúdos que despontam no corpo do intérprete e as conexões que estes lançam para o mundo. A diretora indica que eu pesquise os seguintes materiais (e outros que eu encontre relacionados aos mesmos tópicos):

• Livros relacionados às histórias da memória: "Invenção e Memória" de Lygia Fagundes Telles (2000)37;

• Livros relacionados aos universos urbano e da favela: "Quarto de Despejo" de Carolina Maria de Jesus (2001)38;

• Livros de poesia: livros de Hilda Hilst, "Poema Sujo" de Ferreira Gullar (2001)39

; • Referências de músicas40

e vídeos41 que tragam falas, tanto inteligíveis, quanto não inteligíveis, em português e em outras línguas relacionadas aos conteúdos do trabalho;

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Embora não sejam todos "histórias da memória" também leio: Cora Coralina (1989, 1993); Clarice Lispector (1998, 1999a, 1999b, 1999c); e Lygia Fagundes Telles (1998).

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Também leio Jesus (1996).

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Leio Hilda Hilst (1970, 2001) e Gullar (1989, 2001).

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Algumas das referências sonoras pesquisadas são: Andrade e Pereira (1976a, 1976b, 1976c); Angelite (2000); Barbosa (1984); Bororo (1989); D'Alessio (2001); Dias (2000a, 2000b); Titane (1999); Vianna e Villares (2001); e Wentz (1993).

A orientação da diretora para a nova pesquisa de campo, é que eu a realize nos lugares onde eu gostaria de apresentar o espetáculo. Nela, além de realizar todos os procedimentos relacionados ao Co-habitar com a Fonte do método BPI42, a diretora indica que eu imagine como seria dançar nestes lugares, observe as pessoas que circulam nesses locais, reflita sobre o que eu gostaria de dizer para elas com a minha dança e sobre como está a situação atual na nossa sociedade. A diretora também me orienta a recolher objetos com os quais eu sinta afinidade nos locais da pesquisa e a trazê-los para serem trabalhados após o período de campo. Será uma pesquisa breve e intensa.

No caso deste processo específico de criação no BPI, foi a diretora quem indicou onde eu deveria fazer a pesquisa de campo deste novo Co-habitar com a Fonte que complementava as pesquisas de campo realizadas anteriormente. No entanto, esta escolha do local de pesquisa deu-se com base nos conteúdos que já estavam surgindo em meu corpo e na minha motivação em estar em contato com estes lugares, de ir dançar para essas pessoas. No BPI: "[o] que pesquisar e onde pesquisar é determinado por aquilo que motiva o pesquisador a entrar em contato [...] a proposta do campo de pesquisa está relacionada a aspectos internos do pesquisador, que naquele momento tornam-se vitais para ele vivenciá- los (RODRIGUES, 2003, p.106).