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O Processo BPI se dá em um movimento constante de mergulho interior do intérprete e conexão com o exterior. O intérprete projeta seus conteúdos internos no espaço fora de si – para que possa ter maior consciência e mover-se nestes conteúdos – e em seguida apreende-os novamente através de seu corpo. A dinâmica de formar paisagens no espaço, inserir-se nestas paisagens e trazê-las novamente para dentro de si, permite o fluir de movimentos próprios de cada pessoa, integrados aos seus significados internos. Existe assim uma estreita relação entre a construção do corpo e a construção dos espaços imaginários nos quais este corpo se insere. Segundo Rodrigues (2003, p.85): "[d]o corpo são retirados os ingredientes que formam esses espaços. Em outras palavras, ao se abrir o corpo para a absorção do espaço criado e voltar-se a recolher no seu próprio eixo dão-se as referências espaciais no próprio corpo".

Na fase do Inventário no Corpo um espaço é delimitado – o qual no BPI chamamos de dojo127 – para que possa receber os conteúdos do corpo do intérprete. À medida que este espaço é trabalhado os conteúdos internos vão ganhando representações. "[N]a delimitação dos espaços e no decorrer de seus desdobramentos [...] é que são construídos a base e o eixo de cada corpo. Nesta abordagem os espaços estão inseridos nos corpos das pessoas" (RODRIGUES, 2003, p.85).

No Co-habitar com a Fonte as paisagens da pesquisa de campo são absorvidas

pelo corpo do bailarino-pesquisador-intérprete, tendo como filtro a singularidade de cada

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Rodrigues e Müller (2006, p.136) explicam o espaço dojo: "Os estudos de imagem corporal consideram ao redor do corpo uma extensão do corpo por ser uma esfera de sensibilidade especial. Segundo Paul Schilder, do ponto de vista psicológico, os arredores do corpo são animados por ele. Em dança, este espaço significa um espaço pessoal que, segundo Laban, é chamado Kinesfera. Em tradições orientais este espaço em torno do corpo é chamado de dôjo, espaço este que o guerreiro deve cuidar para que não seja invadido pelo inimigo por ser parte de seu corpo".

um. Estas paisagens são "desincorporadas"128 na fase da Estruturação da Personagem e servem como referência para que a direção organize os espaços onde ocorrerão os laboratórios, como explica Rodrigues (2003, p.124): "[a] direção deve organizar o espaço de laboratório tendo como referência o espaço onde se deu a pesquisa de campo, com o intuito de dar contenção ao material exposto pela pessoa em processo".

Na dinâmica dos laboratórios um espaço vai sendo formado pela pessoa:

O espaço construído é muito próprio de cada pessoa. A relação da pessoa com o espaço criado por ela possibilita um fluir de movimento, de onde irá surgir a sua dança. As sensações, os significados da pessoa invadem o espaço e o espaço vem na pessoa. Para a pessoa que trabalha esse solo ele começa a ganhar propriedades (RODRIGUES, 2003, p.125).

Na incorporação da personagem ocorre uma integração dos conteúdos que vinham sendo trabalhados. A personagem possui paisagens próprias e um local de origem. Estas paisagens vão se modificando com a elaboração da personagem e novas vão surgindo. O corpo pertence a um lugar, percorre lugares, molda-se na interação com as diversas paisagens.

As paisagens internas são projetadas pelo intérprete no espaço físico da sala de trabalho e, como explicamos anteriormente (item "Um corpo urbano", p.44), muitas vezes a diretora indica que elementos destas paisagens sejam concretizados. Por outro lado, esta interação existente no BPI entre o espaço e o corpo faz com que as características físicas do espaço de ensaios também acabem por influenciar a elaboração do corpo. A tendência é que o corpo vá se moldando de acordo com o tamanho e as configurações do espaço físico dado. Assim, o ideal é que o refinamento do corpo da personagem para a apresentação seja feito de acordo com o espaço real onde ocorrerá a estréia do espetáculo.

Devido a essa estreita relação entre o ambiente e os aspectos sensíveis do corpo, no processo de fechamento do roteiro da Valsa do Desassossego a diretora levantou a possibilidade de levarmos o andaime para algum espaço ao ar livre para ensaiarmos. Assim o corpo de Dalva poderia se expandir na interação com o espaço aberto, tipo de espaço ao

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qual o espetáculo destina-se. O corpo de Dalva já trazia paisagens de lugares abertos, como praças, terrenos baldios e ruas, mas no processo de elaboração cênica precisava ganhar ainda mais projeção.

Como não foram viáveis os ensaios em local aberto antes da estréia, a diretora reforçou a interação de Dalva com as paisagens imaginárias de lugares abertos e a projeção destas no espaço ao redor. Trabalhou para que meu corpo fosse além das paredes da sala de ensaios. Contudo, foi apenas com os ensaios e apresentações em locais ao ar livre que o corpo de Dalva em meu corpo pôde realmente ganhar a dimensão destes espaços. Exigiu um tempo de treinamento.

Damásio (1996, p.261) enfatiza a íntima interação do corpo com o ambiente ao redor. O autor explica que representamos "o mundo exterior em termos das modificações que produz no corpo propriamente dito". Ou seja, para representarmos o meio ambiente registramos, em termos neurais, as modificações que este produz em nosso corpo na interação corpo-ambiente (ibid., p.261). Constatamos então que qualquer percepção do ambiente provoca mudanças no corpo, as quais, por sua vez, serão a base para o nosso conhecimento a respeito deste ambiente.

Penna (1989, p.6) considera que os estudos do movimento deveriam abordar "a interação do sujeito com o seu ambiente como unidade básica de estudo". Gallagher (1998) aponta que é na relação com o meio que selecionamos os padrões motores que iremos usar. O autor assinala que esta seleção envolve várias informações que não chegam ao nosso conhecimento consciente, não sendo uma seleção feita de maneira centralizada no sistema nervoso central.

Existe uma íntima relação entre o espaço cênico do espetáculo, os espaços imaginários da personagem e o espaço físico onde ocorrerá a apresentação. A construção

do corpo envolve uma interação com o espaço físico, interação esta mediada pelos conteúdos sensíveis que estão sendo trabalhados através da personagem.

A criação do cenário é feita de acordo com os conteúdos elaborados no roteiro e com o espaço físico ao qual o espetáculo se destina. Há toda uma etapa de ensaios com o cenário final para que este seja efetivamente incorporado pela personagem. Quando enfim ocorre a estréia do espetáculo o cenário é um espaço que está impregnado de vida e está em

integração com o corpo da personagem e com o espaço no qual é instalado. A impressão que se tem é que o espaço cênico do espetáculo criado no método BPI ocupa o espaço no qual é montado como se fizesse parte desse lugar e não como se tivesse "sido colocado" nele.

Na Valsa do Desassossego há uma intenção de integração do espaço cênico

com o espaço da rua, os elementos do cenário são os encontrados na rua, o andaime é o barraco de Dalva, que pode ser erguido nos mais diferentes lugares. Porém, não é uma construção literal, o andaime incorpora outras representações, sendo um tanto fluido nas imagens que evoca a partir das atuações de Dalva nele – é também circo, barca, lua, torre, colo.

A delimitação do espaço cênico separando-o do espaço do público foi reforçada pelo cenógrafo Márcio Tadeu na Valsa do Desassossego, tendo em vista que na rua não existe essa delimitação e as pessoas poderiam vir a invadir o espaço cênico reduzindo-o. No entanto, embora haja esta delimitação ela não se mantém na atuação da personagem. Dalva abarca o espaço do público nas suas paisagens imaginárias através da projeção das suas imagens internas, das relações que estabelece com o público, das suas intenções e da expansão do seu corpo e procura trazer a atenção e a sensibilidade do público para dentro do espaço cênico, buscando fazê-lo sentir-se parte dos conteúdos que ali se desenvolvem.

PREPARAR O ESPAÇO – ATUAÇÃO NOS ESPAÇOS VISÍVEL E