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A diretora passa a organizar os laboratórios de forma a testarmos

possibilidades de passagens entre uma cena e outra, descobrirmos quais são as relações entre elas e quais devem sair ou permanecer no roteiro. A diretora dá um

tempo longo para a exploração de cada cena, não é um "tempo cênico", mas um "tempo de laboratório". O que acontece dentro de cada cena permanece em aberto.

Trabalhando os conteúdos das cenas diversas vezes percebemos o que faz sentido para a personagem, ou seja, o que funciona melhor para a fluidez do seu corpo permeado de sensações e emoções. Passamos a testar determinadas ordens para as cenas serem trabalhadas elaborando os primeiros rascunhos do roteiro.

Desde esta etapa a diretora começa a trabalhar as relações com o público. De início a diretora indica que Dalva se relacione com as pessoas ao redor do espaço dela, dançando, olhando e falando para elas (trabalho realizado através de imagens, sensações e emoções, e não com a presença real de espectadores). O intuito é que a personagem inicie a voltar seus movimentos e sua voz mais para fora e a se relacionar com todas as direções do espaço ao seu redor. Desta forma a presença de pessoas ao redor do espaço vai fazendo

parte do imaginário de Dalva e parte de como ela dança suas histórias.

A pesquisa da trilha sonora ocorre todo o tempo juntamente com a pesquisa corporal. Desde a etapa anterior, já exploramos determinados conteúdos do roteiro relacionando-os com determinados registros sonoros. Durante a etapa atual vão ocorrendo outras associações.

Por exemplo, Dalva traz a ligação do Danúbio Azul100 com os conteúdos relacionados ao lixo e o lixo relacionado ao sangue. Devido a esta relação começamos a testar misturar o Danúbio Azul com as falas das pessoas do lixão do filme Boca de Lixo (1992). Deixamos um trecho do Danúbio Azul, depois um trecho de falas do lixão e assim por diante. As falas do lixão e seus momentos de entrada e saída são selecionados de acordo com as atuações de Dalva e os sentidos de cada momento. A diretora indica que, a

100

partir das referências musicais que selecionamos em conjunto, eu inicie a gravação de uma

trilha sonora experimental para utilizarmos nos ensaios.

Durante todo o processo criativo a diretora orienta-me a estar atenta aos fatos do dia-a-dia ligados aos conteúdos que estamos trabalhando. Faz parte do meu cotidiano ler as notícias de jornal que possuem relação com o assunto. Esta é uma atividade sempre enfatizada no BPI, para que o intérprete se conecte com os acontecimentos atuais do mundo ao seu redor e não fique fechado em si mesmo, para que ele reflita sobre as relações da sua dança com os acontecimentos em um nível mais amplo.

Melchert (2007, p.73) destaca este aspecto no seu processo no método BPI: "[a] orientadora indicou-me investigar as notícias atuais de mundo relacionando-as com os conteúdos corporais advindos até então. Era importante que eu refletisse o que queria dizer com minha dança e de que forma ela se relacionava com o mundo ao meu redor". Vianna (1990, p.49-50) também ressalta a importância dos bailarinos lerem jornais diários e destaca a "tendência que o bailarino tem de viver em uma redoma de vidro".

No início desta etapa a diretora orienta-me a tentar escrever o roteiro, uma escrita livre contando as histórias de Dalva nele. O roteiro criado no método BPI emerge dos conteúdos deflagrados pela personagem, mas a partir destes conteúdos há uma reflexão sobre o que o intérprete quer dizer através do roteiro e uma escolha daquilo que ele quer que faça parte deste. Sobre este ponto também encontramos referência em Melchert (2007, p.25): "[h]á também um processo de cognição, de escolhas, de aprofundamento temático e de estudos específicos que auxiliam a construção deste [roteiro]".

Ainda sobre o roteiro no BPI, temos em Rodrigues (1997, p.149):

O roteiro emoldura um grande volume de representações, tendo como objetivo primeiro a fluidez do bailarino-pesquisador- intérprete. Neste caso, há uma preocupação quanto á clareza do que se quer expressar, relativizando a interferência do roteiro que, quanto à perspectiva de espetáculo, fica em segundo plano; isto no sentido de que não existem estratégias para encobrir os limites do intérprete nem tampouco uma construção formal que não esteja integrado a ele.

A diretora indicou, para a escrita do roteiro nesta etapa, que eu relembrasse as falas e cenas de Dalva e pensasse em um fio condutor: deveria haver um começo, um meio e um fim. Outras indicações dadas pela diretora para esta escrita foram:

• pensar no duplo sentido do roteiro, a realidade social e a realidade interna;

• relembrar a característica de o roteiro abranger o ciclo do dia: amanhecer, "realidade nua e crua" e entardecer;

• relembrar o sentido do andaime ser um lugar onde estão as histórias de vida de Dalva e um lugar para onde ela volta;

• relembrar as situações vividas por Dalva como a de sentir-se "paçoca esmagada levada pelo vento", encontrar o neném no lixo, esconder-se, ver a polícia batendo nos meninos, ver o mundo lá fora de dentro do andaime, entre outras;

• pensar no que acontece e irá acontecer com Dalva no andaime e no chão;

• pensar no eixo do roteiro como sendo: a superação, o inusitado, a amplitude de

possibilidades e a liberdade.

A partir destes conteúdos de Dalva realizo diversas escritas do roteiro. Aspectos destas escritas são testados na prática dos laboratórios com a diretora e retrabalhados por ela de acordo com as respostas corporais da personagem. A diretora participa da criação, também desenvolvendo roteiros a partir do que a personagem apresenta.

Como vimos no início da tese (item "Considerações sobre alguns conceitos utilizados", p.15) ao imaginarmos determinadas situações tendemos a ter as reações corporais que associamos a essas situações. Achterberg (1996) coloca a imaginação como tendo um papel importante no estabelecimento de um vínculo entre pensamentos e alterações físicas. Ela fala que através da criação consciente de imagens (pensamento), podemos provocar alterações no funcionamento do corpo. "A imagem mental ou matéria- prima da imaginação afeta intimamente o corpo [...] O experimento mental [...] de uma corrida, evoca alteração muscular, e mais ainda: a pressão sangüínea sobe, as ondas cerebrais se modificam e as glândulas sudoríparas se ativam" (ibid., p.9).

Ao imaginar e refletir sobre possíveis roteiros, de certa forma eu sensibilizo meu corpo a vivenciá-los, pois estes conteúdos já são parte dele, surgiram dele. Através do

trabalho indicado pela diretora estou trazendo à tona os conteúdos vividos por Dalva em meu corpo, sendo assim este é um trabalho que atua também na prática.

É apenas nesta fase que Dalva efetivamente incorpora o andaime em si: ele passa a fazer parte do seu corpo, das suas imagens e dos seus sentidos. Com os trabalhos no andaime firmam-se nele os sentidos de ser um espaço onde está a história de vida de Dalva e onde flui seu imaginário, um espaço das suas brincadeiras. Um lugar que possui uma força que a puxa para lá. Lugar onde Dalva esconde-se, protege-se, embala-se e enxerga sem ser vista.

Tanto o andaime quanto o bastão possuem uma forte relação com o corpo de Dalva. Reforçamos que foram feitos inúmeros trabalhos técnicos, junto ao sensível, conduzidos pela diretora para que estes fossem incorporados pela personagem. Ambos portam outros objetos pessoais de Dalva, assim como a história de vida dela. De certa forma, o andaime e o bastão são materializações do corpo de Dalva ao mesmo tempo em

que também estão dentro do corpo dela.

A diretora conduz o processo criativo de forma a termos sempre um olhar para o roteiro como um todo e ao mesmo tempo um olhar pormenorizado, para movimentos e situações específicos. Durante os laboratórios, ela me dirige na realização de testes de movimentações específicas, testes de pequenas cenas ou passagens entre elas.

Às vezes estas situações são criadas pela diretora, com base no que ela está observando de Dalva naquele momento específico e no que ela observou em outros dias; outras vezes são situações criadas por Dalva durante o ensaio. Neste segundo caso, a diretora orienta Dalva a repetir aquele momento, chamando a atenção para as partes do corpo em evidência no movimento, para o tônus muscular, as emoções envolvidas, o ritmo e o espaço que aquela atuação está formando.

Nesta etapa as cenas trazem várias possibilidades de desenvolvimento, pois são essencialmente sentidos trazidos por Dalva que podem ser vivenciados por ela de

diversas maneiras. Isto permite que Dalva procure momentos para dar passagem aos

sentidos da próxima cena e também que continue trazendo novos conteúdos.

Mesmo quando combinamos previamente uma ordem de cenas a ser seguida no laboratório, a diretora trabalha com o que se faz mais presente em meu corpo. Às vezes a

ordem não é seguida exatamente, pois pode acontecer de Dalva trazer um outro sentido forte e passar para ele pulando uma cena.

Assim, é necessário haver um balanceamento entre o previamente combinado e os sentidos que estão realmente no corpo de Dalva em cada momento. Futuramente, com o fechamento do roteiro – e a vivência deste percurso inúmeras e inúmeras vezes no meu corpo – será possível ter um maior domínio deste fluxo de sentidos e conseguir dar passagem rápida de um sentido a outro no ritmo das cenas. Eu irei me desenvolvendo cada vez mais na "técnica dos sentidos", trabalhada pela diretora inúmeras vezes nos laboratórios e indicada para que eu aprimore também sozinha.

Graziela Rodrigues designa de "técnica dos sentidos" um procedimento realizado cotidianamente no método BPI, está relacionada a ter um domínio dos sentidos, imagens e emoções sabendo conduzi-los e deixá-los expressarem-se no movimento, sem bloquear o seu fluxo. Na vivência do roteiro a habilidade na "técnica dos sentidos" permite que possamos conduzir os sentidos, imagens e emoções do roteiro no ritmo de cada cena. Há várias estratégias que são utilizadas no método BPI para trabalhar esta técnica. O próprio trabalho da Estrutura Física está preparando o corpo também na "técnica dos sentidos".

No entanto, vale ressaltar, que mesmo após adquirir esta agilidade para trazer os sentidos na expressividade do corpo e conduzi-los no tempo das cenas, é necessário sempre estar atenta ao estado como Dalva apresenta-se a cada dia e em cada momento e permitir alterações no desenvolvimento do roteiro de acordo com estes estados. Mesmo na etapa das apresentações do espetáculo há esta atenção interna ao que está de fato querendo emergir do corpo a cada momento.

Durante todo o processo são realizados muitos laboratórios até que se chegue a uma ação ou a uma situação que condense diversos conteúdos e que possa ser elaborada

para fazer parte do roteiro do espetáculo. Muitas vezes, um conteúdo aparece uma vez e

depois fica um tempo sem retornar. Posteriormente retorna, mas já em um outro estágio de desenvolvimento, agregando em si novos sentidos que se somam aos sentidos anteriores.

Por exemplo, na etapa passada houve um laboratório no qual veio um gesto de Dalva ir pegando tudo o que achava no chão, pegava objetos imaginários. Eu fui então

testando fazê-la segurar o máximo de lixo possível. Depois veio a imagem de pessoas irem arrancando este lixo dela, até deixá-la sem nada. Em outro laboratório, Dalva estava procurando a boneca no lixão, depois a achava e a segurava como um neném, em conflito, e novamente havia pessoas querendo arrancar isso que ela segurava dela. Já em um terceiro laboratório, este na etapa atual, Dalva segura um monte de lixo no corpo, seu movimento é denso, pelo chão, sentindo medo de ficar sem nada, mas sentindo ao mesmo tempo raiva do homem que compra o lixo e paga muito pouco, desejando matá-lo. Seu corpo vai se tornando lixo, ao mesmo tempo ela embala este lixo junto ao peito como se fosse um neném e o protege das pessoas que querem arrancá-lo dela (ver Figura 14).

Filmagem: Graziela Rodrigues

Figura 14 – Stills de vídeo: Dalva com lixo no corpo.

Menciono apenas estes três momentos, mas houve inúmeros laboratórios nos quais este conteúdo foi sendo trabalhado. Esta situação é um exemplo de movimento que condensa e expressa vários sentidos, emoções e imagens e que foi escolhido para ser desenvolvido em um fragmento de cena. Em cada pequena parte do roteiro havia esta condensação de conteúdos provindos de diversos laboratórios.

É necessário que o diretor no método BPI tenha um olhar aguçado, tenha paciência e atenção para perceber até o que ainda não está sendo dito pelo corpo do intérprete. Pois do contrário, irá querer fechar as cenas e o roteiro sem dar o tempo necessário para que os conteúdos se desenvolvam e seja possível uma investigação profunda do que o corpo do intérprete – através da personagem – tem a dizer de si e do mundo naquele momento. É importante que o diretor não tenha somente um olhar de

"produção", isto é, de dirigir os laboratórios visando apenas observar o que funciona cenicamente. Rodrigues (2003, p.93-94) coloca sobre este assunto:

É importante que a direção tenha atenção e respeito, evitando atropelamentos, como, por exemplo, querer vislumbrar uma produção, ou querer dali retirar as chamadas células coreográficas. Isso seria um desastre porque não possibilitaria o devido tempo para um processamento do conteúdo no corpo.

Através dos laboratórios desta etapa Dalva continua desenvolvendo os conteúdos surgidos anteriormente e traz novos conteúdos significativos, além de várias falas que entrarão para o roteiro. Dentre os conteúdos trazidos por Dalva neste momento do processo estão: a "impregnação do lixo no corpo", a "dança do lixo" e a "morte do cisne".

A "impregnação do lixo no corpo" está relacionada ao próprio corpo se tornar lixo. Ao ter que juntar, carregar e vender lixo. A este respeito é significativo o momento descrito anteriormente – no qual Dalva sai embalando o lixo junto ao corpo como um neném.

A "dança do lixo" envolve conteúdos significativos sobre o envolvimento de Dalva com a dança. Dalva conta que possui um "sonho de bailarina" e que inventa uma "dança do lixo": ela vai ao lixão, à noite, e cria sua própria dança, pois não gosta de danças "muito nhenhenhém".

Dalva traz ainda uma dança cercada por homens de revólver que querem matá- la. Esta dança dá origem à cena da "morte do cisne"101. Surge em um período no qual Dalva traz várias referências à morte: "Eu vi uma mulher que morreu de tiro". "Eu tô seca de Sol, eu tô indo prô fim da estrada". "Eu nasci e morri no carnaval".

Eu tô meio assustada hoje. Porque.... ah, eu num sei. Eu achei que tinha sangue escorrendo do meu corpo. Eu achei que o homem tava matando a mulher e a mulher era eu [...] Eu vejo um monte de homem de revólver [...] Eles têm revólver e tão prá todo lado. Vão furá eu toda [...] Eu tenho medo de ficá encurralada. Encurralada é

101

ruim. Encurralada não tem saída (Trecho de diário de laboratório de 17-11-2003).

Dalva sente que irá morrer, vê que não haverá nenhuma chance de salvar-se. Fica com medo e inconformada, pois quer ter um outro fim para si mesma sem ser a morte. A diretora coloca a música O Cisne102. Dalva dança.

A certa altura desta etapa a diretora passa a orientar Dalva a sempre começar o percurso do roteiro dentro do andaime com as cortininhas do andaime fechadas. Em algum momento durante o roteiro Dalva abre as cortininhas. O percurso termina com tudo aberto.

Filmagem: Graziela Rodrigues

Figura 15 – Stills de vídeo: "caixa mágica".

Começamos a usar panos para fechar o andaime, de forma que este fica com seus quatro lados fechados, formando uma espécie de "caixa". Os panos translúcidos tornam possível enxergar Dalva atuando atrás deles. O início do roteiro passa a ser dentro desta "caixa", a diretora denomina esta cena inicial de "caixa mágica"103. A diretora inicia a conduzir trabalhos de elaboração de movimentos desta cena. Na "caixa mágica" são trabalhados pela diretora os sentidos de "mundo mágico", "mundo do sonho" e "bailarina na caixinha de música". Dentre os movimentos elaborados nesta cena há aqueles que dão a impressão, para quem olha de fora, que Dalva flutua (ver Figura 15).

102

Música do ballet A Morte do Cisne. Em Kurtz e Groves (1992)

103

Outras cenas trabalhadas neste momento do processo criativo são o "arrastão do lixo", no qual Dalva tira todo o lixo de dentro do andaime e espalha-o pelo espaço; a "valsa do sonho de colo"; o "ser princesa e não ser princesa nada"; a "dança com o bastão"; e a "luta com o dragão"104.

Ao final desta etapa a diretora indica que eu faça a decodificação e o estudo de todos os vídeos de laboratório e transcreva as falas de Dalva retiradas dos vídeos e dos diários dos laboratórios anteriores às filmagens105. O estudo dos vídeos significa um rico

estudo de qualidades de movimentos. Após transcrever as falas de Dalva organizo-as em

categorias para que possamos selecionar as falas que trazem significados insistentes

para fazer parte do roteiro do espetáculo.

Com o trabalho constante vamos passo a passo obtendo novos dados sobre como será o produto artístico. É um processo artesanal, realizado de forma detalhada, em um ciclo contínuo entre o todo e os pormenores.

ELABORAÇÃO DAS CENAS E PASSAGENS ENTRE ELAS.