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A relação com o ambiente onde ocorrerá a apresentação é o ponto de partida para que o corpo da personagem possa estabelecer-se no novo local. Esta relação inicia-se antes da montagem do espaço cênico e continua em maior ou menor grau durante todo o tempo da montagem, ensaio e preparações posteriores.

Nas primeiras apresentações realizadas a diretora está presente durante os preparativos para a apresentação e direciona o que é preciso fazer em cada etapa das

preparações. Nas apresentações realizadas sem a sua presença, a diretora dá indicações precisas de como proceder.

Para a montagem do espaço cênico em lugares abertos a diretora indica que eu observe todo o espaço ao redor, a posição do sol no horário da apresentação, os declives, os locais onde as pessoas costumam passar e onde elas podem ficar para assistir ao espetáculo e a paisagem que ficará como "cenário de fundo" para o espaço cênico. A estrutura do cenário deve ser montada de forma a ser vista pelo maior número de pessoas e a ficar próxima dos lugares onde as pessoas podem ficar para assistir, como sombras, bancos e muretas.

Uma vez montado o espaço cênico a diretora recomenda que eu faça um trabalho de ocupação do espaço pelo corpo. O corpo deve ser trabalhado na relação com o espaço cênico propriamente dito, com o espaço maior onde o espaço cênico foi montado – e que acaba por fazer parte deste – e na relação com os espaços imaginários criados pelo próprio corpo.

É preciso internalizar o espaço no corpo para poder localizar-se sem hesitação no novo local. A diretora sugere algumas atividades que ajudam nesta tarefa: achar o centro do espaço cênico e referências fora dele que dêem indicação deste centro; andar pelo espaço olhando para todas as direções; olhar para onde possivelmente estará o público; andar de frente e de costas apreendendo corporalmente o tamanho do espaço; sentir como é o chão do lugar; abarcar todo o espaço expandindo o corpo, entre outras.

Kasper (2006, p.28) cita os estudos da antropóloga Céline Rosselin129, para quem o conceito de incorporação do ambiente tem um papel central na teoria do "habitar" um espaço. A incorporação do ambiente deve ser conquistada: "uma construção que se realiza na confrontação com a matéria, freqüentemente com hesitações e falta de jeito, sempre por experimentação" (ROSSELIN, 1999, p.111, apud KASPER, 2006, p.28). Segundo Rosselin (1999, p.115, apud KASPER, 2006, p.28) "para que novas ações possam se realizar, para que o corpo não seja constrangido na realização dos gestos", é necessário

129

Rosselin, C. Si tu y vas un peu brusquement, tu te cognes contre l'armoire!. In WARNIER, J.P; JULIEN, M.P (Eds.). Approches de la culture matérielle. Paris: L’Harmattan, 1999.

periodicamente restaurar a incorporação do ambiente, através da arrumação do espaço pelo corpo.

No espetáculo no BPI o espaço da apresentação deve ser incorporado pelo corpo do intérprete. O corpo deve apropriar-se do espaço, sentir-se confortável para expor nele seus conteúdos internos. Deve ser instaurado um tipo especial de relação do corpo com o ambiente, de forma que se crie ali um lugar que favoreça o fluir do movimento e do imaginário.

Para criar este espaço que mobiliza a sensibilidade do corpo a diretora explica que deve ser estabelecida uma relação sensível com ele, ou seja, sentir o espaço com o corpo e sentir o corpo no espaço. Em um primeiro momento o intérprete irá deslocar-se pelo lugar, expandir seu corpo, sentir o espaço e absorvê-lo. Em um segundo momento, a personagem irá atuar no espaço, seja modelada no corpo do intérprete, seja apenas "encostada". Neste percurso o corpo vai colocando suas impressões no espaço e deixando o espaço impressioná-lo. O espaço vai ganhando sentido. A personagem irá projetar no espaço suas paisagens internas, que virão modificadas pelas paisagens absorvidas do próprio local. Este lugar passa a não ser mais como todos os outros, passa a pertencer ao corpo. O corpo, por sua vez, passa a fazer parte deste lugar, a ter uma história nele. Não apenas o espaço cênico, mas todo o ambiente ao redor faz parte deste "lugar de dançar" construído pelo corpo. Novas paisagens surgem a partir do encontro dos conteúdos da personagem com o espaço real.

Este encontro de sentimentos, sensações e paisagens – tanto reais, quanto imaginárias e da memória – tem relação com a própria forma como nosso organismo assimila o ambiente externo. No item "Importância do espaço – relações corpo-espaço" (p.173) esclarecemos que o conhecimento de um ambiente envolve uma memória corporal das sensações e sentimentos despertados pela interação com este ambiente. No caso do BPI, damos uma atenção especial a estas memórias corporais despertadas na interação com o espaço, procurando ampliar a consciência das sensações, imagens, emoções e impulsos de movimento que percorrem o corpo nesta interação.

Segundo Damásio (1996, p.256) a memória de uma paisagem observada envolve tanto a imagem do que foi efetivamente observado, quanto memórias corporais

despertadas por esta paisagem. O autor afirma que a memória de uma paisagem é "um registro neural das muitas alterações do organismo [...] algumas das quais tiveram lugar no cérebro (a imagem construída para o mundo exterior, juntamente com as imagens constituídas a partir da memória), enquanto outras ocorreram no próprio corpo". O autor explica que estas alterações do organismo decorrentes da interação com a paisagem envolvem todo o corpo, inclusive a nível das vísceras: "as vísceras são levadas a reagir às imagens que você está vendo e àquelas que a memória está criando internamente, relativas ao que vê" (ibid., p.256).

Na interação com o ambiente externo a personagem cria o seu espaço no local da apresentação e recria seu corpo, que se mobiliza nesta interação. Existe um espaço invisível construído, manipulado, colorido. A personagem passa pela "partitura de sensações" do roteiro e faz com que suas sensações ocupem lugares no espaço exterior, preenchendo-o e remodelando-o. No momento de iniciar a apresentação do espetáculo Dalva já se encontra conectada ao lugar, já faz parte desse ambiente e este, parte de seu mundo interno.