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As informações vindas do meio externo e do meio interno do corpo fazem parte da formação do movimento. Os sentidos influenciam a mobilidade e esta influencia aquilo que é percebido. No espetáculo no BPI nos colocamos em cena em um estado hipersensibilizado, existe uma ampliação da imagem corporal que faz com que o corpo se torne mais sensível ao que ocorre no espaço ao seu redor.

As diferentes paisagens mudam o corpo, o fato do local ser todo cimentado ou com árvores, ser ruidoso, quente, sombreado, aberto ou fechado irá trazer configurações distintas para o corpo da personagem, as quais por sua vez irão determinar relações com o espaço. A paisagem externa muda a paisagem interna da personagem, os sentidos que dão vida às cenas e os espaços imaginários criados.

No item "Trabalhos para o desenvolvimento do roteiro" (p.138) vimos que são inúmeras as paisagens imaginárias que podem dar vida a cada fragmento de cena. Com a experiência das apresentações a criação destas paisagens passa a estar cada vez mais ligada às relações estabelecidas durante a apresentação – relações com o espaço e com as pessoas – além de às influências dos acontecimentos da atualidade.

Por exemplo, nas apresentações do Poupa Tempo da Praça da Sé em São Paulo131 este espaço traz para a personagem diversos sentimentos, dentre eles uma apreensão de que a polícia pode chegar a qualquer momento e uma cumplicidade com as pessoas do público. No final da cena da "dança da saia de princesa" a paisagem imaginária criada é do espaço real do Poupa Tempo, mas com uma multidão de pessoas dançando junto com Dalva em um cortejo. Na imagem de Dalva, pessoas reais do público dançam com ela, assim como pessoas imaginárias, e há uma banda tocando para elas dançarem. De repente os policiais chegam a cavalo dos portões do Poupa Tempo dispersando a multidão e interpelando Dalva por estar promovendo a festividade. Na realidade, há policiais nos arredores do Poupa Tempo, mas eles não vêm até o local da apresentação. O sentimento desta proximidade da polícia, aliado aos conteúdos de Dalva e ao tipo de relação

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estabelecida com as pessoas do público favorece o surgimento destas imagens. Em outras apresentações surgem outras imagens nesta parte da cena, de acordo com a realidade do lugar e com a interação estabelecida com o público.

Após as preparações do espaço feitas antes das apresentações, quando chega o momento da performance há uma consciência ampliada das sensações que esse espaço faz emergir na personagem. Antes de iniciar a apresentação a personagem já sabe onde está. Assim, apresentar na Praça do Mercadão em São Carlos132, na periferia de São Paulo133 ou no vão da Prefeitura Municipal de Campinas134 puxa diferentes conteúdos de Dalva.

Apresentar em um parque recém inaugurado na cidade de São Bernardo do Campo135 após ter apresentado no Poupa Tempo da Praça da Sé em São Paulo, traz bem nítida essa relação dos sentidos que o espaço desperta na personagem. Há um contraste grande, pois o Poupa Tempo fica no centro da cidade, região que fez parte da pesquisa de campo durante o processo de criação, espaço da personagem, lugar onde circulam pessoas de todos os tipos, inclusive camelôs, moradores de rua, catadores de lixo, ou seja, pessoas como Dalva. A personagem sente-se "em casa".

Já o parque de São Bernardo é um lugar novo, arrumado, limpo, silencioso, com caixas de som camufladas em meio à vegetação tocando músicas estilo new age, com um público formado predominantemente por pessoas de um extrato social mais alto. Traz uma sensação para Dalva como se ela fosse uma invasora naquele local. Aumenta sua agressividade, no sentido de garantir seu direito a ter um espaço ali dentro, e intensifica um sentido de denúncia social.

Dançar no campo de pesquisa – congruência de paisagens

As paisagens internas da personagem, trabalhadas durante o processo de criação e nos ensaios em sala de trabalho, entrelaçam paisagens do campo de pesquisa, do meu

Inventário no Corpo e das referências que fizeram parte do processo de criação, como

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Ver ANEXO 4 (Caravana Paulista de Teatro 2006 – Praça Maria Aparecida Resitano / São Carlos).

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Ver ANEXO 4 (Caravana Paulista de Teatro 2006 – Centro Cultural Arte em Construção / São Paulo).

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Ver ANEXO 4 (Dia Nacional de Conscientização da Esclerose Múltipla – Paço Municipal de Campinas).

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livros, fotos e filmes, dando origem a novas paisagens, a lugares imaginários. Estes lugares preenchem todo o roteiro do espetáculo e novos lugares são criados a cada vez que o roteiro é vivenciado.

Quando as paisagens do local da apresentação são semelhantes às paisagens internas da personagem, isto favorece que os sentidos da personagem sejam potencializados e esta venha mais forte em meu corpo. É como se a paisagem externa ajudasse a puxar a personagem de dentro do meu corpo fazendo-a modelar-se com vigor e expandir-se para o meio externo, pois a paisagem de fora está fortemente ligada à paisagem de dentro, trazendo um sentido de este dentro ter se concretizado no espaço.

Em várias apresentações ocorre em algum momento esta congruência de paisagens, sendo que a mais marcante neste sentido á a apresentação mencionada anteriormente, no Poupa Tempo da Praça da Sé em São Paulo. Outras apresentações que também se destacam a este respeito são as da Praça do Mercado Municipal em São Carlos136, Praça da Igreja Matriz em Paulínia137 e Praça do Teatro Centro de Convivência Cultural em Campinas138.

Na Praça do Poupa Tempo Sé, como já mencionado, há pessoas assistindo que poderiam ser "conhecidas" de Dalva. O ambiente possui correspondência quanto às paisagens internas da personagem – é o centro da cidade – os sons, as cores, o céu entre prédios, as pessoas passando em todas as direções, o jeito das pessoas andarem, vestirem- se, suas posturas e expressões faciais, são muito familiares para a personagem, coadunam- se com seus sentidos internos.

Durante a apresentação existem pessoas que parecem entender na pele o que Dalva fala, que chegam a fazer sinal de "sim" com a cabeça. É grande a empatia com algumas pessoas do público. Há uma identificação quanto ao conteúdo do espetáculo, quanto à luta com o dragão, ao descaso para com os moradores e crianças de rua.

O sentimento do corpo é de estar no "seu lugar", isso o deixa mais à vontade, mais livre. A paisagem nutre mais os sentidos. Traz mais forte a apreensão por estar no centro da cidade, a atenção para todas as direções, o medo da polícia chegar e ao mesmo

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Ver ANEXO 4 (Caravana Paulista de Teatro 2006 – Praça Maria Aparecida Resitano / São Carlos).

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Ver ANEXO 4 (Caravana Paulista de Teatro 2006 – Praça Coração de Jesus / Paulínia).

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tempo o sentido de estar na praça fazendo seu "show", conversando com as pessoas, contando suas histórias (ver Figura 37).

Os conteúdos potencializados com as apresentações em lugares que remetem às paisagens internas de Dalva continuam trazendo um maior vigor para o corpo também nas apresentações seguintes. É como se através da potencialização destes conteúdos fossem abertos canais internos para a sua maior fluidez e, uma vez encontrados, estes canais permanecessem abertos, de maneira semelhante às "mudanças de patamar" as quais explicitamos anteriormente (item "Transpondo patamares", p.148).

Filmagem: Caroline Sobolewska