• Nenhum resultado encontrado

Antes da estréia do espetáculo, as cenas do roteiro são preenchidas sobretudo pelos conteúdos trazidos pela personagem em laboratórios – suas histórias de vida, emoções, visões, sensações, paisagens. As mudanças na forma como a personagem vive o roteiro a cada ensaio dependem predominantemente de como ela se apresenta a cada dia, seu estado interno, o que por sua vez é influenciado principalmente pelos trabalhos realizados antes e entre os ensaios, por exemplo, estudos de determinadas cenas, laboratórios de movimento, leituras de livros e jornais, reflexões sobre o roteiro, entre outros.

Na etapa de criação do espetáculo, o espaço físico da sala de ensaios era sempre o mesmo e não havia público. Como forma de preparação para as futuras relações com o público e com os espaços abertos, a diretora trabalhava para que Dalva trouxesse, nas suas paisagens imaginárias, pessoas assistindo ao redor e imagens do espaço aberto da rua.

Na etapa das apresentações ocorre uma mudança substancial. Os diferentes espaços e as pessoas "reais" ao redor ganham grandes proporções no mundo interno de Dalva, passam a fazer parte das suas imagens, emoções, intenções e das suas histórias. Passam a fazer parte do seu corpo como um todo, modificando seus movimentos e sua vivência das diferentes cenas do roteiro. Aumentam assim as influências externas no mundo interno da personagem e a dose de imprevisibilidade quanto ao que pode ocorrer no decorrer de sua performance. A cada apresentação mudam o espaço e as pessoas do público, novas relações são estabelecidas; Dalva também se renova.

Com o desenrolar das apresentações adquiro mais desenvoltura para abrir o fluxo de sentidos durante a vivência do roteiro e assim propiciar que venham à tona os sentidos estabelecidos pelas relações de Dalva com as pessoas do público e com o espaço em cada momento. Para isso é preciso, dentre outros fatores, estar muito atenta à minha

sensibilidade, ter uma percepção aguçada e minuciosa do meu corpo e do espaço ao redor a todo o momento, procurar perceber os impulsos de Dalva e dar vazão a eles possibilitando- lhe mudar o roteiro se na hora o impulso for nessa direção. São necessárias consciência, atenção, prontidão e agilidade. A interação com as circunstâncias de cada momento é real e efetiva.

Um "corpo-emoção"121

O corpo é estabelecido no presente, não é a representação de algo cristalizado, é um corpo que vive pela primeira vez. No espetáculo realizado através do BPI, procuramos não apenas deixar vivo o que foi elaborado, mas trazer um novo corpo que irá compor um novo lugar. Este corpo é construído a partir das relações com o espaço e com as

pessoas do público, tendo por base os conteúdos do roteiro e o próprio conteúdo que é a personagem.

Existe um tempo durante a apresentação para que se entre em sintonia com o público e o espaço, para capturar as pessoas do público e levá-las consigo pelos espaços imaginários instaurados. Este tempo pode ser maior ou menor ou durar toda a apresentação. São necessários ajustes constantes, o corpo está o tempo todo atento, perceptivo e transformando-se.

A recepção do espetáculo pelas pessoas do público desencadeia reações em seus corpos, as quais são captadas pela personagem. Segundo Schilder (1999, p.297) "[n]ão somos capazes de manter a atitude de observar simplesmente, sem agir. A ação não é algo adicionado à recepção passiva das experiências do mundo; a ação e a recepção formam uma unidade indivisível". A personagem, com seu corpo sensibilizado às pessoas do público, percebe quando as pessoas reagem transparecendo se identificar com algo que ela faz, fala ou sente, quando há choque, empatia, encanto, indiferença ou rejeição. Os espectadores, ao receberem o espetáculo, também estão de alguma forma, e em diferentes graus, se expondo.

121

Rodrigues (1997, p.65) refere-se a um "corpo-emoção" ao descrever a atuação do corpo quando dança tomado pelo seu movimento interior, em contato com memórias coletivas, que remetem ao "espaço do tempo das origens".

A personagem recria-se nestas interações com o público. Recebe e espelha afetos da platéia. Sente junto com as pessoas. Lança perguntas através de seus gestos, instiga, expõe-se, responde a perguntas silenciosas que capta entre o público. Abre e instaura canais sensíveis de comunicação, como pontes, em direção às pessoas que estão assistindo. Forma um corpo sensível que se expande até a platéia preenchendo o

espaço invisível, estabelecendo o lugar das relações.

Nos momentos em que se chega a uma plena sintonia com o público e o espaço, cresce a desenvoltura do corpo, ocorrem fluxos de movimentos não premeditados, há um sentimento de plenitude, de comunhão com as pessoas do público, de oferecimento e compartilhamento da própria vitalidade, estabelece-se um espaço conjunto no qual flui um "corpo-emoção".

Nestes momentos de plena sintonia sinto-me dançando sem obstáculos entre "o dentro" e "o fora", sem defesas, sem cascas, buscando fazer com que o meu interior atinja o interior das pessoas que estão assistindo à dança. A intenção é sensibilizar as pessoas através da exposição da própria sensibilidade de forma refinada. O corpo precisa estar disponível. O sentimento é de entrega, abrir-me para as pessoas. Recebê-las em mim como se as carregasse no corpo em movimento. Expondo o mais pulsante de dentro, aquilo frágil e vivo e forte. Vulnerável em sua potência.

Observamos que na passagem do sensível há vários níveis dimensionados entre a inconsciência e a consciência. Em todos eles há uma disponibilidade interior atrelada ao compromisso da pessoa em realizar um trabalho. Este é marcado pela integridade da pessoa, porque põe à mostra a sua própria realidade interior, independente de sua aceitação pelo meio externo. Os movimentos extraídos deste corpo apresentam riquezas minuciosas (RODRIGUES, 1997, p.67).

A personagem

O desenvolvimento da personagem na etapa das apresentações não diz respeito apenas a obter novos dados da personagem e elaborar mais as modelagens do seu corpo e os seus movimentos, envolve uma ampliação da gama de possibilidades de modelagens da

personagem. Não é um desenvolvimento linear a partir de algo já estruturado e sim, uma abertura a partir desta estruturação para que ela se modele de diferentes maneiras na interação com o público e com os espaços das apresentações.

A personagem no BPI não é realista, não temos como parâmetro para o desenvolvimento de Dalva representar ou reproduzir características de uma menina de rua. Dalva envolve uma categoria de conteúdos unidos por uma força aglutinadora, dentre estes conteúdos está a realidade dos moradores de rua. Dalva pode ser entendida como sendo esta

força aglutinadora, força esta que exibe um modo específico de interligar os conteúdos,

ela o faz com uma organicidade que lhe é própria.

Os conteúdos com os quais ela irá estabelecer conexão são vários e têm mutabilidade. Dalva manifesta-se a cada momento uma diferente constelação. Ao relacionar-se com um público repleto de crianças, por exemplo, Dalva tende a ficar mais exagerada em seus movimentos, divertir-se com as crianças, trazer em si conteúdos ligados à brincadeira.

A personagem no BPI está ligada a algo muito profundo da pessoa da qual ela surgiu, algo que se apresenta em todas estas modelagens às quais a personagem dá origem, mas que também vai aos poucos se modificando. Está ligada a uma identidade corporal do intérprete naquele momento de sua vida. Vimos no item "Dalva dá o nome" (p.74) que esta identidade não é fixa. Não é "dada" ou "descoberta", não é algo que pré-existe. É algo sempre em processo de formação. Ao viver esta identidade ligada à personagem, o

intérprete ao mesmo tempo em que se integra, se flexibiliza.

Os conteúdos internos do intérprete, relacionados a esta identidade corporal, têm um trajeto e um tempo até emergir. São conteúdos que muitas vezes o intérprete está com dificuldade de entrar em contato, de integrá-los em si, mas que ele se encontra em condições de afrontar, pois é ele próprio quem os traz à tona. Music (2005, p.13) reforça que "[d]efrontar-se com o inconsciente não é de forma alguma apenas controlá-lo, mas é quase sempre se atrever a ser surpreendido por ele e aceitar o que normalmente se negaria".

Rodrigues e Tavares (2006, p.126) explicam que "A personagem é identificada como sendo uma parte de si. Em última instância, através do que chamamos de

personagem, a pessoa estará lidando com os seus scripts122, suas defesas e suas limitações, assumindo aspectos de sua identidade até então por ela rejeitados". A integração e flexibilização do intérprete possibilitam mudanças nos seus scripts, que resultam em maior fluidez e vitalidade em seus movimentos (ver também nossas explicações no item "Pesquisa das histórias no corpo de Dalva", p.87). Cunha e Crivellari (1996, p.28) reforçam este aspecto: "[q]uando as mudanças de script corporal acontecem, o observador nota a aparência mais relaxada, os movimentos mais soltos, a melhora do tônus [...] Há mais vitalidade e sensação de bem estar".

O Inventário no Corpo como libertador de amarras

Ao ir para a pesquisa de campo, na fase do Co-habitar com a Fonte, o intérprete de certa forma já está sendo guiado por conteúdos profundos de si mesmo que depois virão a fazer parte da constituição de sua personagem, mas ele ainda não os reconhece. Se antes eles estavam apenas iniciando a despertar, com a pesquisa de campo eles são largamente mobilizados. Rodrigues (2003) faz referência a este aspecto: "[p]ara onde o corpo se dirige ou seja, o foco, está diretamente relacionado ao próprio conteúdo imanente desse corpo, isto é, o enfoque [...] Esse enfoque só se tornará claro no decorrer do Processo, pois essa apreensão envolve o desenvolvimento das fases seguintes" (p.106).

Uma vez que ocorre a estruturação da personagem, é como se a personagem se "descolasse" da pessoa do intérprete, ganhando "vida própria", única e abrangente. Tem-se então a referência de uma identidade e torna-se possível colocá-la em relação através das apresentações. No percurso das apresentações a sensação é de que a personagem vai ganhando "vida própria" cada vez mais.

O Inventário no Corpo é trabalhado também na etapa das apresentações, nos

momentos em que o intérprete apresenta uma retenção do seu fluxo de movimentos. O

Inventário é trabalhado para que se possa desfazer as barreiras que delimitam "zonas

proibidas", os anteparos internos que fazem com que o corpo pare.

122

Pode ocorrer, por exemplo, de haver momentos nos quais o intérprete não deixa a personagem agir livremente em seu corpo devido a conteúdos de seu Inventário no

Corpo. O intérprete "aprisiona" a personagem, colocando-se à frente dela, censurando-a,

pois se deixá-la "solta" ela poderá fazê-lo vivenciar aquilo que ele está relutando em aceitar. Nesses momentos é necessário abrir um espaço para trabalhar estes conteúdos. Rodrigues (2003, p.97) destaca a "importância de se viabilizar que o próprio corpo da pessoa [...] [possa] inventariar-se ali mesmo no espaço de trabalho artístico. Também é importante prover-lhe condições para a emanação desse conteúdo em suspensão, imprescindível para a fluidez do movimento".

A conscientização, elaboração e conseqüente integração dos conteúdos internos permite que o intérprete chegue a locais mais profundos de si mesmo, esteja com o fluxo dentro-fora livre para vivenciar os conteúdos que estão em seu corpo e assim ampliar suas potencialidades artísticas e seu contato com o público. Segundo Rodrigues (2003, p.100) através do Inventário no Corpo pretende-se "a liberação do corpo da pessoa para que ela realmente se conecte com o mundo e dessa forma possa conscientemente escolher o que quer produzir com o seu corpo, no mundo e para o mundo".

Ir além da própria individualidade

As raízes das festividades encontram-se nos deslocamentos das emoções e dos afetos, sendo a esperança o núcleo que propicia as transformações da morte para a vida.

Graziela Rodrigues123 Com as apresentações a personagem fortifica-se e o intérprete aprende a colocar-se cada vez mais disponível para que outros conteúdos ganhem vida através da personagem em seu corpo. Na etapa das apresentações o alcance dos conteúdos da personagem fica maior.

123

Existem emoções e sensações físicas minhas, pesquisadas no eixo Inventário no

Corpo, que são o referencial a partir do qual eu posso abrir minha sensibilidade para

sentimentos que estão além de mim, que fizeram com que pudesse estruturar-se em mim esta personagem Dalva. Sentimentos que também foram encontrados na pesquisa de campo. A personagem por sua vez amplia, intensifica e mobiliza estes afetos interligando- se a toda uma "rede de afetos". Durante a apresentação do espetáculo diferentes "redes" são puxadas de acordo com os sentidos do roteiro, mas também com os afetos que a personagem sente estarem mais proeminentes naquele momento, o que envolve tanto o público, quanto uma conjuntura maior.

Por exemplo, em uma apresentação noturna na periferia da zona leste de São Paulo124, ocorre uma situação única. No instante em que Dalva diz "eu tenho medo" ela sente como se puxasse uma grande "rede de medo", medo de violência, de tiro, de repressão, de espancamento. Como se cada uma das pessoas do público exteriorizasse seu medo naquele momento e, indo além, como se Dalva se conectasse naquele momento a toda uma série de pessoas que vivem em situação extrema de medo. Ao penetrar nessa "rede" Dalva não continua a frase "eu tenho medo do dragão", fica repetindo "eu tenho medo..." completando a frase internamente, no gesto silencioso, de acordo com os medos que percebe pairando naquele espaço-tempo. Quando enfim fala "do dragão", é um dragão imenso, que traz em si os dragões de todos e de cada um.

O BPI parte da individualidade do intérprete, mas não fica preso a um individualismo. Expande o corpo do intérprete para que este se abra para o mundo.

DESENVOLVIMENTO DA PERSONAGEM – AMPLIAÇÃO E