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Na etapa das apresentações o diretor do Processo BPI continua atuando com o intérprete, mas existe uma mudança na sua atuação, é o momento do intérprete assumir mais a condução do trabalho e mobilizar-se para seguir em frente com o espetáculo. Desta forma, no percurso das apresentações Graziela Rodrigues prossegue trabalhando comigo e elaborando o espetáculo, porém a freqüência dos trabalhos "corpo a corpo" aos poucos vai diminuindo.

Nos trabalhos com a diretora durante esta etapa ela avalia como estão a minha atuação e o roteiro como um todo, faz modificações no espetáculo, elabora determinadas cenas e gestos e dá indicações do que eu devo trabalhar sozinha para prosseguir nos desenvolvimentos do espetáculo e da personagem. Em grande parte das apresentações ela trabalha comigo antes da data do evento e no próprio dia, nas preparações para a apresentação.

Uma das indicações da diretora para esta etapa é que eu trabalhe o roteiro parte a parte e neste processo vá burilando mais a linguagem de movimentos específica de cada parte, revendo movimento por movimento, fazendo um trabalho de limpeza dos gestos. Eu posso, por exemplo, ficar todo um ensaio trabalhando apenas um fragmento de cena. Debruço-me sobre cada parte para estudar os movimentos e aperfeiçoar a sua execução,

além de explorar as imagens, sensações e emoções que os alimentam e assim descobrir novos sentidos. Que sentidos movem esta cena agora? Também estudo as passagens de um movimento para o outro, ligadas às passagens internas dos sentidos e investigo as relações dos gestos com o público.

Com base no andamento de cada ensaio esquematizo o que precisa ser trabalhado no dia seguinte. Acontece, por exemplo, de ao realizar o roteiro eu perceber que determinada cena está "vazia", isto é, os sentidos que a movem estão enfraquecidos. É preciso pegar esta parte em separado, para poder explorar os seus sentidos. Outras vezes percebo a necessidade de trabalhar aspectos técnicos de determinada parte, por exemplo, uma puxada do corpo para o chão, um giro, a agilidade dos pés, a impulsão dos ísquios. Nas preparações que realizo antes de iniciar os ensaios direciono os exercícios para ajudar nestes momentos específicos que precisam ser trabalhados.

Os desenvolvimentos do roteiro realizados em sala de trabalho fazem-se notar nas apresentações e, por outro lado, as experiências das apresentações pautam a continuação dos trabalhos nos ensaios. Nas relações com o público surgem novos sentidos e qualidades de movimento, além de ficarem evidentes os pontos do roteiro que precisam de novas elaborações.

Procuramos ao máximo trabalhar integrando os aspectos físicos e sensíveis, mas há momentos nos quais é necessário enfatizarmos um dos pólos. Quando isso acontece atuamos de forma a haver um balanceamento entre as atividades mais voltadas para a elaboração técnica dos movimentos e aquelas com ênfase na pesquisa e expressão dos sentidos internos.

A "técnica dos sentidos" continua a ser desenvolvida. Como na etapa do processo de criação (ver item "Burilamento dos movimentos e sentidos", p.126) alguns dos procedimentos usados para desenvolver esta técnica são os de realizar o roteiro internamente ou realizá-lo sem música. Também fazemos exercícios de visualização. A diretora indica, por exemplo, que eu coloque a trilha sonora do espetáculo e olhando para o espaço cênico de fora, visualize Dalva realizando todo o percurso do roteiro. Outro exercício indicado é visualizar o roteiro de olhos fechados, sentada em uma posição confortável. Existem ainda trabalhos de visualização conduzidos pela diretora nos quais

buscamos imagens da personagem em outras situações de sua vida, desatreladas dos conteúdos do roteiro.

Através destes procedimentos exercito a fluidez dos sentidos, a habilidade de trazer imagens, sensações e emoções, além de estar explorando novos conteúdos sensíveis da personagem. Mesmo o corpo estando aparentemente parado, as sensações o percorrem, o tônus se modifica, pequenos impulsos acontecem, as imagens não ficam apenas em um

plano mental, Dalva move meu corpo por dentro.

No trabalho da "técnica dos sentidos" estudamos como articular as sensações e imagens para conseguir trazer as emoções, os movimentos e a voz no tom e no tempo desejados para a cena. Há momentos nos quais os tempos para trazer os sentidos e para realizar os movimentos no ritmo das cenas – isto é, os tempos interno e externo – ficam desarticulados. Via de regra o tempo interno é mais lento que o externo: quando eu consigo trazer o sentido para o corpo, ralento e ao buscar entrar no ritmo da cena, perco o sentido. É necessário trazer o sentido da ação antes de ir para ela, ainda no fim da ação anterior. Há

uma passagem interna que se antecipa ao movimento.

Os trabalhos vocais também prosseguem, tanto ligados à articulação das palavras e à colocação e projeção da voz, quanto à elaboração das entonações das falas. Um dos estudos indicados pela diretora é investigar ao longo de todo o roteiro com quem Dalva fala e com qual intenção: quando ela se dirige a apenas uma pessoa do público, quando ela fala para todas as pessoas ao mesmo tempo, quando fala com ela mesma, entre outros. No entanto, estes sentidos não se fixam, uma fala que em determinado dia é dita para si mesma, em um trabalho seguinte pode ser dita como uma descoberta, ou para todos em tom de brincadeira.

No processo de burilar a manipulação dos objetos, há tanto a elaboração do manuseio dos objetos nas danças com eles, quanto os estudos de passagens com eles, por exemplo, momentos de colocar e tirar as saias. O conteúdo sensível também é explorado no trabalho com os objetos de maneira a ser revitalizado ou renovado. Por exemplo, em determinado trabalho de investigação dos sentidos da boneca, através do seu manuseio na cena da "dança da saia de princesa", a imagem interna que surge é de uma boneca suja e encardida, com faixas no tórax, uma vermelha e outra preta. Uma boneca antiga, de outros

tempos, enterrada e desenterrada, que já foi usada por muita gente, passando de mão em mão. A boneca traz uma força que assusta e um poder de "fazer feitiço". Ao trabalhar o manuseio da boneca com essas imagens e sensações, a qualidade de movimento se modifica, parte dos sentidos da cena se transforma (ver Figura 21).

Filmagem: Mariana Floriano

Figura 21 – Stills de vídeo: manuseio da boneca na cena da "dança da saia de princesa" (apresentação em Ibitinga, SP, junho de 2006).

São inúmeras as imagens que podem ser vivenciadas no percurso de cada cena. O importante é que elas impactem o corpo, desencadeiem o circuito de "movimentos/emoções/sensações/imagens"113, sejam vivas, reais daquele momento. Na cena das "cortinas", por exemplo, podem passar pelo corpo de Dalva a guerra, a cidade pegando fogo ou Dalva pode ver tudo escuro lá fora do andaime e só uma luzinha ao longe. Pode ainda ver os policiais catando os meninos e levando todos embora. Restos, roupas rasgadas, sapatos, marcas de sangue no chão. Os policiais batendo nas portas das casas. Às vezes surgem imagens relacionadas a fotos de jornal, atentados terroristas, chacinas em favelas, corpos no chão. Embora variem, as imagens circundam os sentidos de "não gostar de olhar para fora", de "ver só lixo lá fora", de "ter medo do dragão" e de "ver o fim do mundo" (ver Figura 22).

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Filmagem: Estúdio Santa Clara

Figura 22 – Stills de vídeo: cena das "cortinas" (apresentação em São Paulo, SP, junho de 2004).

É importante ressaltar que estas imagens não são previamente selecionadas para serem trabalhadas, elas são elaboradas no decorrer do processo e surgem no momento da ação, fruto da integração dos movimentos, sensações e emoções, são imagens que se modificam com o desenvolvimento do trabalho.

Um ponto imprescindível no trabalho com os sentidos é perceber se eles estão de fato modelando o corpo ou se está havendo alguma interrupção no percurso entre imagens, sensações, emoções e movimentos. Pode acontecer, por exemplo, dos sentidos estarem só mentais, do corpo estar em movimento, mas o movimento que ele está produzindo não ser fruto dos sentidos. É como se houvesse uma lacuna entre os sentidos e o movimento. Nestes momentos pode ser necessário parar todo o movimento do corpo e

recomeçar o percurso de dentro para fora.

Como os movimentos no processo BPI são provindos da interligação entre os aspectos físicos e sensíveis, a abertura e o desenvolvimento dos conteúdos sensíveis fazem- se notar na qualidade da atuação corporal. Por outro lado, as elaborações técnicas dos movimentos também operam na vivência dos sentidos, transformando-a e intensificando-a, ajudando a trazer os sentidos para o corpo com mais força. A ampliação da variedade e articulação dos movimentos está ligada a uma abertura para a diversidade e fluidez das sensações, imagens e emoções.

A base dos trabalhos corporais na etapa das apresentações continua sendo a

Estrutura Física do BPI. Dentro desta estrutura, de especial importância é o trabalho dos

pés". O trabalho dos pés favorece que o corpo se abra para modelar em si os sentidos. Rodrigues (2003, p.90) assinala: "[o]bserva-se na prática que quanto mais é trabalhada a relação da base dos pés com o solo, enfatizando o fator de gravidade, há uma melhor fruição das imagens, aumentando o campo das percepções". O treinamento do corpo através da Estrutura Física torna-o fértil para que os sentidos possam brotar e frutificar. Além da Estrutura Física a diretora indica que eu realize muitos alongamentos

e mantenha os trabalhos de condicionamento físico para a atuação no andaime, principalmente relacionados ao fortalecimento da musculatura dos braços.

Depois do espetáculo pronto, é possível ter mais tempo e tranqüilidade para explorar longamente as pequenas partes do roteiro, fazer testes de novas movimentações, estudar a mecânica dos gestos, renovar os sentidos, experimentar realizar as cenas de diferentes maneiras. É possível colocar-se desafios técnicos, procurar superar as próprias limitações e, por outro lado, dedicar-se a pesquisar as minúcias dos movimentos.