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Esta primeira fase da criação dura quatro meses (de março a junho de 2003). É um período no qual dou início a este novo processo criativo no método BPI trabalhando sozinha. Iniciar o processo BPI sozinha só foi possível devido à minha experiência adquirida em anos de formação neste método. Nesta primeira fase estruturo os laboratórios de forma a dar continuidade aos trabalhos feitos anteriormente com Graziela Rodrigues, mais especificamente àqueles realizados no Pará: um curso ministrado por ela em Belém27 (o qual teve como foco o Corpo do Xamã Asuriní28) e pesquisas de campo realizadas em Belém, Icoaraci e na Ilha de Marajó. Também fazem parte destes laboratórios do início a leitura dos livros "Os Asuriní do Xingu" (MÜLLER, 1993) e "O Mundo Místico dos Caruanas da Ilha do Marajó" (LIMA, 2002).

No curso realizado com Graziela Rodrigues em Belém trabalhamos, dentre outros elementos, as "metamorfoses do corpo" e o "corpo que percorre os mundos". Um corpo que se transmuta, que vira bicho, uma mistura de bichos, que tira a doença do corpo do outro. Que vê além do que nós vemos. Que percorre o "caminho do xamã" e habita diferentes planos da realidade. Desta forma, no início do processo criativo meu corpo está gente e bicho, misturado aos elementos da natureza, percorrendo caminhos onde "tudo é possível".

Os três eixos do método BPI – Inventário no Corpo; Co-habitar com a Fonte; e

Estruturação da Personagem – estão presentes neste início do processo. Surgem nos

laboratórios de movimento imagens provindas da pesquisa de campo no Pará, dos trabalhos realizados durante o curso com Graziela Rodrigues em Belém e do meu Inventário no

Corpo. Também surgem imagens novas, fruto das relações do meu Inventário no Corpo

com as experiências vivenciadas no Pará. Apesar dos três eixos estarem presentes, podemos

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Curso "Ritual Indígena: Uma Nova Linguagem para o Contemporâneo". Curso intensivo utilizando o método BPI ministrado por Graziela Rodrigues no Instituto de Artes do Pará com carga horária de 20hs (02 a 06 de setembro de 2002, Belém – Pará).

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Este Corpo foi decodificado por Graziela Rodrigues através do método Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI). Para esta decodificação ela estudou as referências áudio visuais e bibliográficas das pesquisas realizadas por Regina Polo Müller com os Asuriní do Xingu.

dizer que o foco principal nesta fase do processo está no eixo Estruturação da Personagem, pois eu dou continuidade ao processo instaurado no curso intensivo com Graziela Rodrigues em Belém e exploro o que ficou em meu corpo após o Co-habitar com a Fonte no Pará. Contudo, é preciso ressaltar que o desenvolvimento integral de cada eixo do BPI só é possível com a condução de um diretor capacitado neste método.

Tendo os universos do xamã Asuriní e da pajelança paraense como moldura, trazidos pelo curso com Graziela Rodrigues e pela pesquisa de campo realizada no Pará, meu corpo tem permissão de ver e viver "outras realidades", ir para os "confins da terra", "sair do cotidiano", ser "tomado" por bichos e "seres fantásticos". Os acontecimentos não precisam ter um encadeamento lógico, tudo pode ser móvel, desfazer-se e refazer-se de outra forma. O corpo transforma-se em onça, cobra, coruja, fica meio onça meio gente, vira velha, torna-se criança.

Emergem nesta fase muitos conteúdos do meu corpo. Estes conteúdos são imagens, emoções e sensações intrinsecamente ligadas a determinadas qualidades de movimento, posturas, configurações do corpo. Dentre estes conteúdos determinadas modelagens de corpos repetem-se com maior freqüência. No método BPI são consideradas

modelagens, configurações dinâmicas do corpo que estão ligadas a sensações internas, a

determinadas qualidades de movimento e a imagens, não são formas cristalizadas. De acordo com Rodrigues (2003, p.136): "Pode-se dizer que modelar é despertar uma vivência que está alojada em nossa pele, em nossos músculos, em nossas articulações, em nossas vísceras".

Nagai (2008, p.12) explica que "um corpo no BPI representa uma síntese de conteúdos" e mais adiante complementa "chamamos de corpo, o resultado de uma modelagem, ou seja, uma postura dinâmica com atributos de emoção, sentido e gestos bem definidos" (ibid., p.14) [grifo nosso]. O que chamamos de corpo no BPI não é a personagem. Ela será uma nucleação dos vários corpos, nucleação esta que não é feita de forma racional, isto é, não são escolhidos determinados corpos para comporem a

personagem, essa nucleação ocorre como um fechamento de gestalt29. A personagem no BPI surge do corpo do intérprete como algo inusitado, ela possui atributos mais delineados do que os corpos, quanto às suas características de tônus, postura, qualidades de movimento, estados emocionais, entre outros. Também apresenta uma maior vitalidade nos seus movimentos e o que poderíamos chamar de um maior "desprendimento" em relação à pessoa do intérprete quanto aos seus sentimentos, imagens e movimentos.

As modelagens de corpos que se configuram em mim com maior freqüência

nesta fase são as de uma mulher xamã (que alterna entre velha e moça), uma mulher sensual, uma criança, um bicho e um guerreiro.

Ao olhar hoje para esta etapa do processo é possível perceber que já começam a surgir nesse período alguns conteúdos que depois se transformariam e viriam a fazer parte dos conteúdos da personagem Dalva. Por exemplo: ver ou ser São Jorge, lutar, ter uma espada, estar dentro de um lugar e ver o mundo lá fora, ver o fim e o começo do mundo, ir para lugares da fantasia, entre outros. Porém, na época em que eu estava vivenciando esta etapa ainda não era possível saber quais conteúdos, dentre todos os que surgiam em meu corpo, insistiriam e se desenvolveriam. Como dissemos anteriormente, no BPI não existe uma escolha mental do que irá compor a personagem; existe sim, um processo para a sua estruturação, o qual não é linear, os conteúdos se transformam, se fundem, param de surgir e novos aparecem.

O movimento, neste início do processo, é o de atingir camadas cada vez mais profundas do corpo, ver o que há "mais embaixo", o que fica.

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Citando Rodrigues (2003, p.81): "No Processo do BPI, utilizamos o termo fechar uma gestalt [...] quando a pessoa vivenciou corporalmente aspectos de seu Inventário de maneira a ter uma compreensão sensível e integral sobre o conteúdo do mesmo".