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Políticas recentes

No documento Revista Sinais Sociais / Sesc (páginas 97-100)

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v. 12 n. 34 | p. 85-117 | set./dez. 2018 André Lázaro

97 Desde muito cedo descobre-se, melancolicamente, que a igualdade pode

ter a espessura da pele, e isso pode representar desvalor da vida, como se o critério da quantidade de melanina pudesse ser o dedal no qual se goteja a dignidade humana em pequenas doses para vencer o mar do preconceito (apud MAUÉS; ALMEIDA, 2014, p. 9).

Igualdade material e reconhecimento positivo das diferenças estão pre- sentes nas justificativas para a adoção de políticas afirmativas para o ingresso na educação superior a partir de critérios relativos ao pertenci- mento racial e à condição econômica. Contudo, é importante notar que a maior parte das políticas de ação afirmativa, inclusive a legislação que regula essa prática em todo o sistema de educação superior e técnica fe- deral, subordinam o critério racial ao de renda, desvirtuando desse modo o efetivo reconhecimento de que o racismo atua em todas as classes so- ciais, independentemente do nível socioeconômico. É possível supor que o mesmo racismo que há séculos busca justificar a desigualdade da po- pulação negra impediu que o critério racial fosse usado isoladamente para sustentar políticas baseadas no fenótipo dos candidatos, como está expresso nos argumentos do Supremo Tribunal Federal, independente- mente da condição econômica.

De todo modo, a decisão do STF abriu caminho para que o Congresso Nacional aprovasse a Lei nº 12.711/2012, que reserva vagas em todas as instituições educacionais vinculadas ao Ministério da Educação para estudantes de escolas públicas, agregando critérios de renda e raça/ cor. Naquele momento, no entanto, a grande maioria das instituições públicas de educação superior, federais e estaduais, já havia adotado alguma forma de política afirmativa, seja por decisão das assembleias estaduais, como foi o caso do Rio de Janeiro e do Paraná, seja por de- cisão de seus conselhos superiores, como nas instituições federais e outras estaduais. A decisão do STF e a lei federal deram estabilidade para as políticas já adotadas. Além disso, o caráter de precedente do julgamento da ADPF 186, estabelecendo “parâmetros que serão utiliza- dos para decisão em casos futuros”, garante que as demais instâncias da Justiça considerem esses argumentos para questões similares, como argumentam Maués e Almeida apud MAUÉS; ALMEIDA (2014, p. 5). É de surpreender, portanto, que a sólida base legal produzida neste julga- mento não tenha sido prontamente invocada para que políticas equi- valentes sejam estabelecidas nas condições de acesso à pós-graduação

nas instituições federais, tal como ocorreu no Rio de Janeiro a partir da legislação estadual.14

Anteriormente à aprovação da lei federal relativa às cotas nas institui- ções públicas, em 2005 o Congresso havia aprovado a legislação relativa ao Programa Universidade para Todos (Prouni), iniciativa do Governo Fe- deral (BRASIL, 2005). O Programa estabelece a contrapartida de institui- ções filantrópicas na educação superior por meio da garantia de vagas para estudantes de escolas públicas, de baixa renda, e considera os cri- térios raciais de acordo com a população de cada estado da federação, segundo dados censitários. Não há registro de que a adoção de critérios raciais pela legislação, atendendo a demandas do poderoso setor privado na educação superior, tenha merecido debate aprofundado no Congres- so Nacional. A disputa em torno das vagas nas instituições federais é um exemplo de como operam as elites políticas e empresariais quando se trata de repartir bens e serviços escassos e de como o racismo institucio- nal é seletivo em sua incidência.

Assim o Prouni, ao lado das legislações estaduais e da lei federal, integra um conjunto de medidas que, no século XXI, busca ampliar o acesso e re- parar as persistentes consequências do longo período de escravidão que marcou a vida brasileira, somado à indiferença com que, durante todo o século XX, a sociedade lidou com as desigualdades a que a população negra estava submetida, como constata o estudo dos censos:

Ao longo dos últimos cinquenta anos, em todas as faixas etárias e níveis educacionais considerados, a variável cor/raça demonstra que as chan- ces de acesso e ascensão dos jovens pretos e pardos no sistema educa- cional são consideravelmente menores quando comparadas às chances de progressão dos indivíduos brancos (RIBEIRO; CENEVIVA; BRITO, 2015, p. 103-104).

A expansão do setor privado de educação superior, que ganha maior ve- locidade no final dos anos 1990 e se intensifica no período posterior, se por um lado abre possibilidades de acesso à população negra, por outro beneficia aqueles que social e economicamente estão mais preparados para a apropriação das oportunidades que surgem. É sintomático que, embora a presença de estudantes de nível superior na faixa etária de 18 a 24 anos da camada dos 25% mais pobres da população tenha subido de 0,8% para 7,2% entre 2001 e 2014, o grupo dos jovens da camada dos 25%

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mais ricos passou de 32,3% para 40,4% no mesmo período. A diferença entre os dois grupos cresceu de 31,5% para 34,3% (ANUÁRIO..., 2016, p. 101). Em sociedades fortemente desiguais, as oportunidades são desi- gualmente apropriadas e as diferenças se acentuam.

No entanto, os impactos da expansão das matrículas ao longo do sécu- lo XXI, tanto no setor público federal como no setor privado, vão além do aumento da desigualdade entre pobres e ricos, e beneficiam outros setores da população. Também é possível acompanhar indicadores com informações sobre cursos antes ocupados quase exclusivamente por es- tudantes de classes de renda elevada e que agora começam a receber estudantes de outra origem social e de baixa renda. Assim, passam a ser frequentadas também por negros, muitos deles trabalhadores, com um percurso escolar completamente diverso, as mesmas salas de aula que tradicionalmente recebiam jovens brancos, que têm pais escolarizados, não precisam trabalhar enquanto não se formarem e são provenientes do ensino médio em escolas privadas.

O pesquisador Dilvo Ristoff analisou os questionários socioeconômicos que os estudantes de conclusão dos cursos de graduação preenchem por ocasião da realização do Exame Nacional de Desempenho Estudantil (Enade).15 Para efeito comparativo, o autor elegeu um conjunto de seis cursos, dois para cada perfil de concorrência: os de alta concorrência – medicina e odontologia –, os de média concorrência – direito e psicologia – e, por fim, os de baixa concorrência – pedagogia e história. A partir da comparação entre os três ciclos do Enade (2004-2006; 2007-2009; 2010- 2012), o autor examinou como se transformam os perfis dos estudantes nesses cursos, levando em conta os critérios renda familiar, origem escolar, a cor do estudante, a escolaridade dos pais e a condição do estudante trabalha- dor. Por esses critérios podem ser avaliados com maior grau de detalha- mento os impactos das políticas de ação afirmativa no acesso à educação superior no período entre 2004 e 2012, anterior, portanto, à implantação da lei federal de 2012, cuja vigência se inicia em 2013.

Antes de apresentar os resultados da análise de Ristoff, é importante registrar as dimensões desse nível de ensino, sua evolução recente e a

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