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O julgamento da ADPF 186: o novo ordenamento jurídico

No documento Revista Sinais Sociais / Sesc (páginas 31-34)

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v. 12 n. 34 | p. 21-43 | set./dez. 2018 Antonio Sérgio Alfredo Guimarães

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do STF na ADPF 186, como modo de garantir a lisura de editais que es- tabelecem reserva de vagas para negros. Mais uma vez, reitera-se que apenas traços fenotípicos objetivos sejam levados em consideração por tais comissões.

Tal objetividade foi regulamentada, no âmbito do Governo Federal, pela Secretaria de Gestão de Pessoas e Relações do Trabalho no Serviço Pú- blico do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, na Orientação Normativa nº 3, de 01 de agosto de 2016, que disciplina a for- mação de comissões de averiguação da declaração de identidade racial. Para garantir objetividade, segundo a orientação, “as formas e critérios de verificação da veracidade da autodeclaração deverão considerar, tão somente, os aspectos fenotípicos do candidato, os quais serão verificados obrigatoriamente com a presença do candidato” (ver Quadro 1). No mes- mo ano, a prefeitura do Rio de Janeiro, por meio do Decreto nº 42.574, de 18 de novembro de 2016, regulamentou as comissões no nível municipal, compostas de três membros indicados pelo Conselho Municipal de De- fesa dos Direitos dos Negros e um servidor municipal. O decreto, em seu parágrafo segundo, reza que “a comprovação da autodeclaração de negro considerará o fenótipo apresentado pelo candidato e levará em conta in- formações existentes, fornecidas ou não pelo candidato, que auxiliem na análise acerca da condição do candidato como negro”.

Um mês depois, foi a vez de a prefeitura de São Paulo, por meio do Decreto nº 57.557, de 21 de dezembro de 2016, regulamentar a mesma matéria. Em seu artigo terceiro, diz o decreto que “a autodeclaração não dispensa a efetiva correspondência da identidade fenotípica do candidato com a de pessoas identificadas socialmente como negras”, dispondo também que “a fotografia e a autodeclaração deverão ser encaminhadas à Se- cretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial para confirmação de que o interessado atende ao estabelecido no artigo 3º deste decreto” (SÃO PAULO, 2016). A prefeitura de São Paulo institui também no mesmo decreto uma comissão para avaliar a autodeclaração:

Art. 16. Fica instituída, na Secretaria Municipal de Promoção da Igual- dade Racial, sob a supervisão da Coordenação de Ações Afirmativas, a Comissão de Análise de Compatibilidade com a Política Pública de Cotas – CAPC, incumbindo-lhe a instrução e elaboração do relatório final do procedimento de análise da correspondência entre a autodeclaração e

as características fenotípicas que identifiquem o candidato socialmente como negro e sua consequente compatibilidade com a política pública de cotas raciais.

§ 1º A CAPC, constituída por portaria do Secretário da Secretaria Muni- cipal de Promoção da Igualdade Racial, será composta por, no mínimo: I – 2 (dois) servidores da Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial com conhecimentos no campo das relações raciais, cabendo a um deles a presidência do colegiado;

II – 1 (um) servidor da Coordenadoria de Gestão de Pessoas – COGEP, da Secretaria Municipal de Gestão, com conhecimentos no campo das rela- ções raciais;

III – 1 (um) representante da sociedade civil com notório saber no campo das relações raciais;

IV – 1 (um) representante da sociedade civil, com comprovada participa- ção duradoura no movimento social negro (SÃO PAULO, 2016).

A busca de objetividade levou ao paroxismo de se reproduzirem os crité- rios de tipologização de raças da “ciência” frenológica do século XIX, tal como fez o edital da Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em 2016 (ver Quadro 2).

Se, as primeiras comissões tinham sempre representantes de entida- des negras, isto é, grupos que cultivavam a identidade étnico-racial ne- gra no Brasil, elas rapidamente passaram a ser estabelecidas à revelia e fora da supervisão de tais entidades. Assim, por exemplo, a Resolução nº 769/2017, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), estabeleceu que:

Art. 6º - A Comissão prevista no artigo anterior será constituída a cada certame. § 1º - A Comissão de Avaliação será composta por um Juiz de Direito, um Médico e um Assistente Social Judiciário, estes dois últimos do quadro do Tribunal de Justiça, que serão designados pelo Presidente da Comissão do Concurso. § 2º - Não havendo médico do Quadro do Tribunal de Justiça na Região Administrativa Judiciária do concurso a Comissão de Avaliação será composta por um Juiz de Direito e dois Assistentes So- ciais Judiciários, estes dois últimos do Quadro do Tribunal de Justiça (TJSP, 2017).

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Fica claro, portanto, que o que está hoje em curso no Brasil é a recriação de fronteiras raciais a partir de fenótipos, esquecendo-se qualquer tipo de consideração de identificação étnica, considerada subjetiva pelos tri- bunais de justiça.

Trabalhando, ao mesmo tempo, com autoatribuição e heteroatribuição de cor/raça, diversos autores (TELLES, 2014; SCHWARTZMAN, 2008; BAILEY et al., 2013) notam que o indivíduo é discriminado racialmente pelo que aparenta ser, isso é, pelo modo como é classificado pelos outros, não pelo modo como se autoclassifica. Porém, mais importante ainda, Daflon (2017) e Lamont et al. (2016) demonstram que os pardos tendem a per- ceber a discriminação que sofrem, tal como medida por desigualdades socioeconômicas em relação aos brancos, não como discriminação de raça, mas de classe.

De fato, foi o modo de discriminar baseado apenas na aparência física que fez a sociologia falar em discriminação racial, e não apenas étnica, ou de classe, isto é, um modo de identificar e agrupar pessoas segundo características fisionômicas raciais, e não segundo seu modo de vida ou hábitos sociais. Se, portanto, a política de cotas visava corrigir a discrimi- nação racial, deveria ser a heteroclassificação a prevalecer. Essa parece ser a lógica que presidiu várias falas de ativistas que se manifestaram a favor das comissões (MAIO; SANTOS, 2005). Mas, aqueles que são contra as comissões apontaram um paradoxo: o acesso ao emprego ou à educa- ção (direito do discriminado) estaria sendo garantido por meio da viola- ção do direito do postulante à autodeclaração da identidade, posto que é possível que uma comissão ajuíze, à sua revelia, a sua pertença racial. Ainda que se conteste este argumento, posto que a autodeclaração está claramente garantida pelos editais, ainda assim poder-se-ia argumentar que as comissões suspendem e tolhem o direito universal à autodeclara- ção. Para que direito não fosse sustado, a comissão deveria também de- monstrar a falsidade do pertencimento étnico, ou seja, que a autodecla- ração seria fraudulenta em si mesma, independentemente de fenótipos. O único meio de fugir desse paradoxo moral parece ser encontrar um critério objetivo, passível de ser eticamente verificável, para a discrimi- nação. Quer dizer, buscar indicadores de discriminação efetiva e não

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