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Os anos 2010: uma década de polêmica

No documento Revista Sinais Sociais / Sesc (páginas 164-173)

Para concluir, enfático:

Uma coisa existe e existirá com absoluta nitidez: a deliberação marcada pelo consenso unânime dos brasileiros lúcidos: o Brasil quer ser um país branco e não negro. [...] O que prevalece é a decisão brasileira de ser um país branco e mais nada. E este propósito, sólido, inabalável, existe, é a realidade (DUARTE, 1947, p. 5 apud GUIMARÃES, 1999, p. 75-95).

A outra resposta possível pode ser inferida a partir do impacto da obra de Gilberto Freyre e seus leitores e intérpretes contemporâneos, alguns dos quais se encontram no centro da polêmica relativa à implantação das ações afirmativas na modalidade cotas raciais. DaMatta, por exemplo, em um texto de 1997, intitulado Notas sobre o racismo à brasileira, colocou de forma bastante direta e resumida, como exigia a ocasião, o problema da distinção entre nação ou Estado nacional e sociedade, como duas formas distintas de coletividade (DAMATTA, 1997).6 A distinção é fundamental porque normalmente nação e sociedade estão em conflito e, no caso bra- sileiro, de acordo com o autor, fomos uma nação que adotou princípios igualitários, mas tínhamos uma sociedade hierarquizada, constituída que era por nobres, cidadãos livres e escravos (DAMATTA, 1993, 1997).

Dito de outra forma, para a perspectiva antropológica, o fato social con- creto é o dado empírico da miscigenação, isto é, um dado extremamente relevante do ponto de vista da sociedade, pois o sistema de classificação no Brasil privilegiaria o meio termo e a ambiguidade como valor, tenden- do, em princípio, a funcionar com base na hierarquia e no gradualismo de cor. Porém, do ponto de vista sociológico, as transformações sociais, políticas (o fim da ditadura e o estabelecimento de um processo de cons- trução democrática expresso especialmente pelas eleições diretas e pela emergência de novas reivindicações no âmbito popular por meio de ma- nifestações públicas) e culturais (as conexões com o legado do Atlântico negro), em conjunto com os deslocamentos internos da questão racial – como, por exemplo, a construção da categoria política negro (pretos + pardos) e a luta pela criminalização do racismo antes, durante e após a aprovação da Constituição de 1988 – configuraram novos sentidos do modo como a sociedade brasileira via a si mesma.

É importante notar que, no debate em torno das ações afirmativas, em especial os autores contrários a sua implementação no país emitiam opiniões públicas em geral sem nenhuma base empírica, movidas por

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uma crença arraigada de que o Brasil, desde o século passado, era uma democracia racial e que esse era o nosso elo social. Tal elo é tão poderoso que impediu, e ainda impede, que alguns dos analistas e pesquisadores mais preparados no cenário nacional percebessem as mudanças sociais em curso no país, independentemente de seus diferentes impactos nas várias regiões, no que tange ao lugar das relações étnico-raciais na con- formação das diferenças de tratamento nas práticas cotidianas. Dito de outra forma, como argumentam Gomes (2009) e Avritzer e Gomes (2013), com o revigoramento da sociedade civil, isto é, enquanto sistema de ação social (RESTREPO, 1990), os grupos subalternos organizados – por exem- plo, os grupos que compõem o movimento negro – interpelam o Estado nacional, nos termos de DaMatta, para exigir mudanças inclusive na for- ma como eles são representados política e culturalmente:

[...] há uma desnaturalização do modo como essas relações raciais se construiriam, através da desconstrução do mito da democracia racial. Nesse momento ocorre o questionamento da hierarquização de status que se estabeleceu no Brasil, na qual o branco aparece no topo da pirâ- mide. Também, passa a existir uma preocupação com o estabelecimento de um estatuto legal no âmbito público e ou estatal com a introdução, na Constituição de 1988, de artigos voltados para direitos de viés racial e, posteriormente, com a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial (Avrit- zer e Gomes, 2013, p.40).

Em outros termos, Avritzer e Gomes (2013), ao criticarem a apropriação do legado da obra de Freyre no debate sobre ação afirmativa, observam o seguinte: a obra de Freyre, em especial Casa grande & senzala, versa sobre a mestiçagem, sobre a esfera privada e sobre o trânsito cultural brasileiro, praticamente eximindo-se da dominação patriarcal, e ao fazê-lo substi- tui a mesma por uma teoria da democracia na formação da elite agrá- ria brasileira. Mesmo quando os aspectos inquestionáveis do argumento freyriano e sua vasta influência no imaginário nacional são levados em consideração, um de seus desdobramentos práticos é que se estabelece com o autor “a noção falsa de que se formou uma esfera privada igualitá- ria no Brasil devido a diferentes características da escravidão no período colonial no país” (AVRITZER e GOMES, 2013, p. 49).

O questionamento não deve recair sobre os fortes trânsitos entre índios, portugueses e negros na esfera da vida privada; o problema é que os crí- ticos das ações afirmativas, contemporaneamente, ao assumirem essa

mesma moldura analítica supõem que a questão racial encontrará a sua solução nos trânsitos propiciados pela esfera privada. Todo o problema se resume ao fato de Freyre ter presumido uma origem “democrática” do processo de formação da elite agrária brasileira. Na visão de Avritzer e Gomes, a dedução realizada por Freyre levou-o, e aos seus seguidores, a dois problemas, a saber:

[...] um de origem lógica e o outro de origem teórica: o primeiro deles é que é incorreto deduzir da miscigenação a concepção de uma esfera privada igualitária ou democrática; e o segundo é que é incorreto tentar determinar a democracia a partir de estruturas da esfera privada, uma vez que a democracia é uma forma de organização do poder político e das relações entre Estado e sociedade (AVRITZER e GOMES, 2013, p. 47 ).

Daí o segundo conjunto de argumentos identificados por Feres Júnior es- tar mais voltado para a cidadania e o Estado nacional.

A desnaturalização das desigualdades, a partir tanto das denúncias do movimento negro organizado quanto de sua ação política junto aos ór- gãos governamentais exigindo políticas concretas de combate às desi- gualdades com base na diferença étnico-racial, tem levado a medidas que trazem avanços, mesmo que de forma tímida, ao questionamento no plano prático do processo de racialização herdado do passado colonial. Isto é, passa a não ser mais tacitamente aceita a forma como a sociedade brasileira, a partir de suas elites, nos termos de DaMatta, vislumbrou a interpenetração e complementaridade das hierarquias raciais. São indi- cadores importantes: a constituição de conselhos da comunidade negra nos estados e nos municípios, instituídos desde 1980;7 as organizações não governamentais (ONGs) que tinham, e têm, como objeto de sua ação, a discriminação racial e o racismo; a mulher negra8 e os coletivos antir- racistas, entre outras formas de ação política.

De acordo com Clóvis Moura (1980), os acontecimentos que contribuí- ram para a unificação dos vários grupos negros que se associavam e se articulavam em torno de uma série de atividades culturais, recreativas e sociais foram; a morte resultante de tortura policial do trabalhador negro Robson Silveira da Luz no mês de maio de 1978 em uma delegacia de Guaianazes, em São Paulo; a expulsão, no mês de maio, de quatro atletas negros do time juvenil do Clube de Regatas Tietê; e o assassinato, por um policial, do operário negro Nilton Lourenço, no bairro da Lapa, em

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São Paulo. A carta convocatória para o ato de protesto que deu origem ao Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial tinha em seu texto as seguintes passagens:

Não podemos mais calar. A discriminação racial é um fato na sociedade brasileira, que barra o desenvolvimento do negro, destrói sua alma e a sua capacidade de realização como ser humano (MOURA, 1980, p. 171).

A carta concluía dizendo o seguinte:

Não podemos mais aceitar as condições em que vive o homem negro, sendo discriminado da vida social do país, vivendo no desemprego, su- bemprego e nas favelas. Não podemos mais consentir que o negro sofra perseguições constantes da polícia sem dar uma resposta (MOURA, 1980, p. 171-172).

Assim, para o movimento negro que rompia a cena pública dos anos 1980, mostrava-se frágil o argumento normativo que partia da suposição de que a identidade nacional é calcada em um ideal de miscigenação avesso à tematização da desigualdade racial. Em meio ao processo de (re)democratização, o modelo freyreano era questionado pelos fatos e, ao mesmo tempo, uma identidade nacional democrática contrastiva àque- le modelo estava sendo construída a partir da Constituição de 1988. No entanto, a ideia de que o problema era de “classe e não de raça” persistia no discurso público na forma que ganhou muito espaço nos meios midi- áticos, a saber: as cotas sociais, e não raciais.

O grupo de ativistas/intelectuais contrários às chamadas, por eles mes- mos, “cotas raciais”, ao não assumir a persistência da raça enquanto uma das clivagens sociais que atravessam a comunidade imaginada brasileira e que orientam a ação de grupos e indivíduos na experiência de relações cotidianas, tanto negavam a ação política do movimento negro quanto preservavam o ethos nacional construído nos anos 1930. Paradoxalmente, os inúmeros levantamentos estatísticos e os vários trabalhos realizados no âmbito acadêmico eram desconsiderados sob a acusação de que não cabia ao Estado brasileiro legislar sobre raça.

A forma como transcorreu o debate sobre “cotas” nas universidades pú- blicas brasileiras e seu conteúdo foram uma demonstração de que ciência e experiência não caminham conjuntamente e na mesma direção, espe- cialmente, quando se trata de relações de poder em sociedades onde, de- vido ao processo de colonização, desenvolveram-se aspectos nacionais,

pós-coloniais, multiétnicos/multirraciais. Três observações me parecem fundamentais para que se adentre o universo simbólico nacional e se interpretem os termos nos quais o debate acima mencionado se pôs em nosso país. A primeira delas refere-se ao conteú do distintivo que termos sintetizadores de amálgamas étnico-raciais – como melting pot, crizol de razas, café con leche e tripé de raças – encobrem e recobrem ao aproxima- rem conteúdos de dinâmicas socioculturais extremamente diferentes; a segunda refere-se à forma como o conceito de classe vem sendo ques- tionado na perspectiva estruturalista a partir da experiência dos sujeitos subordinados nas formações sociais em cujo processo de “outrificação” de colonizados, isto é, construção dinâmica de hierarquias com base na cor/raça, foi coetâneo da construção de hierarquias com base na posição dos indivíduos na estrutura produtiva, isto é, do processo de explora- ção econômica tipicamente capitalista constitutivo das classes sociais contemporâneas; e, finalmente, a dupla filiação, ou dupla origem, que as identidades políticas manifestam nos dias de hoje.

Os desdobramentos contemporâneos do tripé de “raças”, no debate bra- sileiro sobre as cotas, prescindiu de uma atualização histórica no que diz respeito aos dados estatísticos sobre a posição subalternizada de pretos e pardos em diferentes esferas da vida social, e de uma consi- deração sociológica básica em relação à representação social no que tange às novas formas de etnicidade. No primeiro caso, devemos notar que três tipos de desvantagens em relação aos brancos persistem na experiência histórica dos negros (pretos e pardos) no Brasil pós-aboli- ção: a desvantagem ocupacional, a locacional e a educacional. A título de exemplo, os homens negros ganham até 55% menos para exercer a mesma função que os homens brancos.9 No segundo caso, destaca- mos que a persistência da mestiçagem/miscigenação enquanto valor esconde as possibilidades a partir das quais os grupos subalterniza- dos passaram a se pensar frente aos constrangimentos vivenciados em sociedades racialmente estruturadas.

Explico: no debate da teoria contemporânea sobre “raça”, “birracialidade” e mistura “racial” existe uma distinção entre a perspectiva anglo-saxô- nica e as latinas, como a francesa, a espanhola e a portuguesa – embora em todas elas a branquidade seja um referente paradigmático de rejei- ção não somente da cor da pele mas também da cultura e da forma de

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existência estética dos negros. No caso anglo-saxão, uma gota de sangue negro estabeleceu a conclusão “lógica” da contaminação pela negritude. Em outras tradições, a pluralidade da mistura levou à constituição, por meio da miscigenação (no plano biológico) e da mestiçagem (no plano cultural), de narrativas nacionais elaboradas por elites nas quais o pres- suposto básico seria o do apagamento da clivagem “racial” durante o pro- cesso de formação de Estados nacionais.

A partir dos anos 1960, o crescente uso da etnicidade como termo que considera a variedade dos grupos humanos em termos de ancestralida- de, tradição, língua e padrões sociais tem questionado as generalizações de tipos raciais humanos biologicamente determinados com caracterís- ticas fixas e posicionados em uma escala que os divide em superiores e inferiores. Assim, a percepção de uma ancestralidade comum, real ou imaginária, tem sido importante tanto para autodefinição quanto para atribuição externa ao grupo. Max Weber, por exemplo, definia os grupos étnicos como “grupos humanos que possuiriam uma crença subjetiva em sua descendência comum – em função de suas similaridades de tipo físico ou de costumes, ou em função da memória de colonização ou migração”. Segundo Weber, “tal crença é importante para continuidade de relações comunais” (WEBER, 1971, p.203 e seguintes). Richard Scher- merhorn, para dar conta da variedade e da complexidade constitutivas das características culturais e sociais, elabora uma definição mais ampla de etnicidade:

Uma coletividade dentro de uma sociedade maior tendo ascendência co- mum, real ou putativa (ou seja, as memórias de um passado histórico comum seja de origem ou de experiências históricas tal como de colo- nização, imigração, invasão ou a escravidão); uma consciência comum de um, com o nome, a identidade do grupo separado; e um foco cultu- ral em um ou mais elementos simbólicos definido como o epítome de seus peoplehood. Esses recursos estarão sempre em combinação dinâmica, em relação ao tempo e lugar em que eles são experienciados e opera- dos consciente ou inconscientemente para o avanço político do grupo (SCHERMERHORN, 1970, p. 12).

Uma das características fundamentais dessa definição é que ela incor- pora todos aqueles elementos simbólicos que podem propiciar o senso de pertencimento étnico como, por exemplo, padrão de parentesco, con- tiguidade física, filiação religiosa, língua, nacionalidade, características

físicas e também práticas culturais como arte, literatura e música. Várias combinações desses elementos podem ser privilegiadas em diferentes lugares e tempos para prover um senso de etnicidade. Embora desen- volvida na tradição anglo-saxônica, isto é, para a acomodação de status complexos de grupos negros americanos e britânicos, cuja identidade foi construída supostamente ao longo de linhas raciais e étnicas, seus desdobramentos teóricos e práticos têm permitido uma melhor compre- ensão de processos de construção de novas etnicidades (etnogênese) nos quais sobressai uma maior consciência política na seleção de elementos simbólicos negativamente associados à experiência de um dado grupo racializado.

Nesse sentido, a experiência brasileira de implementação das ações afir- mativas, midiaticamente denominada de “cotas para negros”, tem pro- porcionado um debate que pode ser considerado exemplar da convivên- cia conflitiva de concepções tradicionais e contemporâneas em relação a pertencimento grupal em uma perspectiva política nas quais se inter- seccionam clivagens sociológicas clássicas (classe, raça, gênero, etnia e nacionalidade) e concepções de etnicidade pós-anos 1960.

De acordo com Yvonne Maggie, o primeiro congresso mestiço, precedido de quatro seminários, ocorreu em 20 de junho de 2011, em Manaus, e tinha como objetivo

[...] debater a mestiçagem diante das novas políticas de identidade que hoje se propagam no Brasil e no mundo. Embora sendo o primeiro con- gresso, o tema vem sendo debatido em Manaus há dez anos, desde a fundação do Movimento Pardo-Mestiço – Nação Mestiça com sede na ci- dade. Antes deste congresso, houve quatro seminários com a presença de intelectuais de muitas partes do Brasil e representantes de movimentos sociais. O Movimento Pardo-Mestiço – Nação Mestiça opõe-se àqueles que querem dividir o Brasil em brancos e negros, ou indígenas e negros. Sua luta tem sido difícil. Aqui na Amazônia tudo se passa como se o nos- so mito de origem, construído ao longo do último século, estivesse sendo substituído por outro no qual a miscigenação é demonizada ou hifeni- zada (como antes da última reforma ortográfica): afro-ameríndio, índio- -descendente, afro-descendente e euro-descente (MAGGIE, 2011).

É interessante observar o contraponto que o texto estabelece entre a construção do mito de origem durante o século XX e as novas identida- des supostamente forjadas por aqueles “que querem dividir o Brasil”. O

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subtexto é que não haveria divisões no Brasil anteriormente ao estabele- cimento do debate sobre ações afirmativas e, também, que à exceção do movimento pardo-mestiço e dos intelectuais a ele aliados, reinava a har- monia social no Brasil. Nos cabe perguntar se essa premissa é verdadeira. De acordo com Giralda Seyferth (2002), a questão racial estava subjacente aos projetos imigrantistas desde 1818, antes de a palavra raça fazer parte do vocabulário científico brasileiro e das preocupações com a formação nacional. Desde então, a imigração passou a ser representada como um amplo processo civilizatório e como a forma mais racional de ocupação das terras devolutas. O pressuposto da superioridade branca como argu- mento justificativo para um modelo de colonização baseado em peque- nas propriedades familiares a partir da vinda de imigrantes europeus – portanto, distinto da grande propriedade escravista – foi construído mais objetivamente a partir de meados do século XIX.

A mesma autora, ao revisitar a legislação que orientou o processo de imigração que teve lugar no país na Primeira República e ao longo do Estado Novo, demonstra que, de forma não explícita, todo o processo foi pautado em

[...] um nacionalismo étnico suscitado pela constância dos movimen- tos migratórios, alimentado pela falsa noção de desigualdade das raças humanas e de superioridade civilizatória dos brancos [...], devidamente acomodada à ampla variação cromática da pele dos brasileiros. Signi- ficativamente, a subordinação da nacionalidade à raça persistiu apesar do reconhecimento da mestiçagem como fenômeno constitutivo da na- ção. Trata-se, sem dúvida, de algo que vai além do sentido estritamente político e territorial do Estado-nação – o mito da formação do povo, que remete ao passado histórico e à qualificação pelo caldeamento racial entre portugueses, indígenas e negros. Na verdade, a imigração repre- sentou para o nacionalismo um duplo desafio, particularmente eviden- ciado no Estado Novo: manter a cultura e a língua como herança maior do colonizador luso promovendo a assimilação e definindo a nação, eventualmente, pela latinidade, num processo de “amalgamação racial” (ou fusão, pois havia termos para todos os gostos) que devia resultar num povo unívoco e preferencialmente de cor branca. É significativa a persistência do mito do branqueamento num período histórico em que as teorias raciais deterministas e as especulações sobre a superiorida- de ariana afiançadas por obras como as de Gobineau e Chamberlain já estavam desacreditadas pela ciência através da noção de racismo (SEYFERTH, 2002, p. 147).

Assim, o Movimento Pardo-Mestiço – Nação Mestiça, ao repor o nosso mito de origem desconsidera seus usos históricos, bem como as conse- quências nefastas para os não brancos de modo geral. E também, ao fixar a mestiçagem com base em fundamentos biológicos, portanto racializa- dos, procura mascarar o dinamismo característico da formação contem- porânea de novas etnicidades, que responde sociologicamente a deslo- camentos na posicionalidade de indivíduos e grupos e, politicamente, a novas formas de agência dos subalternos que lutam, inclusive para além dos Estados nacionais, para que o signo raça não se perpetue na sua ca- pacidade de produzir exclusão-desigualdade-exclusão. Ou melhor, ao se retomar DaMatta, o que parece estar em jogo no Brasil contemporâneo é a reversão das políticas públicas que excluíram negros (pretos e par- dos) e indígenas com base em sua suposta inferioridade biológica. Dessa forma, as chamadas políticas de inclusão, políticas de diversidade ou, ainda, políticas multiculturais podem ser encaradas no caso brasileiro como tentativas contemporâneas de reversão da racialização pretérita e, ao mesmo tempo, uma atualização da ação do Estado a partir das mobi- lizações da sociedade civil, em especial do movimento negro.

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