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Quando preferências se transformam em desigualdades: um passado de decisões e consequências

No documento Revista Sinais Sociais / Sesc (páginas 52-58)

livre imigrante e europeia contou com o explícito patrocínio do Império (em seus últimos sopros de vida), da República (recentemente proclama- da), influentes fazendeiros e setores industriais emergentes. O regime republicano, antes mesmo de completar o seu primeiro aniversário, foi exemplar na elaboração e sansão do Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890, que regulariza a introdução e localização dos imigrantes no país. No seu caput são apresentadas quatro considerações que, na essência, dizem muito sobre os objetivos do Decreto, da República e do destino de afrodescendentes e ex-escravos (BRASIL, 1890). Essas considerações mencionam explicitamente o propósito de garantir a “efetividade dos auxílios” prometidos aos imigrantes para o seu estabelecimento no país; a “adoção de medidas adequadas e tendentes a demonstrar o empenho e as intenções do Governo, relativamente à imigração”, incluindo “a segura aplicação dos subsídios”; e a definição de “conveniente concessão de fa- vores que animem a iniciativa particular e auxiliem o desenvolvimento das propriedades agrícolas, facilitando-lhes a aquisição de braços”. Também é no Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890, que encontramos referência aos imigrantes indesejáveis, apontando, inclusive, quais deve- riam ser as providências cabíveis às autoridades diplomáticas e portuá- rias para esses casos. Na verdade, para que não houvesse dúvidas sobre quem seriam esses indesejáveis, os três primeiros artigos do Decreto são bastante claros:

Art. 1º É inteiramente livre a entrada, nos portos da República, dos indiví- duos válidos e aptos para o trabalho que não se acharem sujeitos a ação criminal do seu país, excetuando-se os indígenas da Ásia ou da África, que somente mediante a autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos, de acordo como as condições estipuladas.

Art. 2º Os agentes diplomáticos e consulares dos Estados Unidos do Brasil obstarão pelos meios a seu alcance a vinda dos imigrantes daqueles con- tinentes, comunicando, imediatamente ao governo federal pelo telégrafo quando não o puderem evitar.

Art. 3º A polícia dos portos da República impedirá o desembarque de tais indivíduos, bem como o de mendigos e indigentes (BRASIL, 1890).4

Sob todos os pontos de vista, o Decreto nº 528 (BRASIL, 1890) será exem- plo absoluto do interesse do Estado em promover a imigração europeia, mediante “conveniente concessão de favores” que animassem a “inicia-

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Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v. 12 n. 34 | p. 45-83 | set./dez. 2018 tiva particular” no tocante às propriedades agrícolas, mas também as iniciativas em outros setores privados, daí a descrição de interesse por imigrantes “operários mecânicos, industriais”, por exemplo. O governo federal se dispôs a arcar com despesas de transporte de imigrantes de forma integral ou parcialmente, em percentuais que variaram entre 50% e 30%; especificou essas subvenções às famílias de agricultores, às crian- ças comprovadamente vinculadas a essas famílias e a “varões” entre 18 e 50 anos que fossem “trabalhadores agrícolas, operários de artes mecâ- nicas ou industriais, artesãos e os indivíduos que se destinarem ao ser- viço doméstico”. As companhias de transporte marítimo foram grandes aliadas e beneficiárias dessas subvenções. Isso fica evidente em vários artigos do referido Decreto, incluindo aquele que promete o prêmio de cem mil francos às companhias que tivessem transportado pelo menos dez mil imigrantes no período sem que contra elas houvesse “reclama- ção alguma a respeito das bagagens e do tratamento dado aos mesmos imigrantes” (Art. 16). Os proprietários agrícolas foram estimulados a con- tratar “imigrantes europeus” com benefícios distintos, garantindo a esses a concessão de lotes de terra para fixação de suas famílias. Os benefí- cios incluíam propriedades dispostas a fixar grupos de trinta, duzentas e até quinhentas famílias de trabalhadores agrícolas. Os estabelecimentos que se dispusessem a abrigar mais de quinhentas famílias deveriam as- segurar aos imigrantes “casas para escolas e enfermarias” (Art. 20) e o proprietário que comprovasse o assentamento regular a cada cem famí- lias também obteria prêmio em dinheiro (Art. 35). O Decreto detalha, por exemplo, as subvenções devidas aos fazendeiros que tivessem que cons- truir estradas de ligação entre estações de via férrea ou “centro de consu- mo” mais próximo de sua sede e também “auxílio” para a construção de “caminhos internos” na propriedade. E esses detalhes não são nada tri- viais aos empreendimentos agrícolas daquela época e foram em grande parte responsáveis tanto por garantir o escoamento da produção como no desenvolvimento e fortalecimento de novos núcleos urbanos. Final- mente, temos, no penúltimo parágrafo do Decreto, o tratamento dispen- sado aos “nacionais” em relação aos europeus recém-chegados: “Sobre o número total de famílias de imigrantes que forem localizados, poderão ser admitidos 25% de nacionais, contanto que sejam morigerados, labo- riosos e aptos para o serviço agrícola, os quais terão direito aos mesmos favores concedidos àquelas” (Art. 42). Ou seja, os “nacionais”, que àquela

época incluíam ex-escravos e libertos, foram, francamente, preteridos. Não é um detalhe que a cada cem famílias assentadas estivesse prevista a admissão de apenas 25% de trabalhadores nacionais.

Em 5 de outubro de 1892, já sob presidência de Floriano Peixoto, a pro- mulgação da Lei no 97 permitirá a livre entrada de imigrantes de nacio- nalidade chinesa e japonesa, promoverá a execução do tratado firmado em 5 de setembro com a China e celebrará tratado de comércio, paz e amizade com o Japão (BRASIL, 1892).5 No que diz respeito à procedência de possíveis imigrantes indesejáveis, mantêm-se apenas os de origem africana, reiterando argumentos expressos desde a metade do século XIX que viam os africanos como racialmente inferiores e cujo ingresso no país “seria equivalente ao restabelecimento do tráfico de escravos” (SEYFERTH, 2008, p. 9).

A participação diferenciada e subordinada dos afrodescendentes no mercado de trabalho brasileiro na atualidade tem muito a ver com essas decisões tomadas pelo Estado brasileiro e francamente apoiadas pela eli- te da época. É muito comum interpretar essa participação diferenciada e subordinada, além da generalizada vulnerabilidade social dos afro-brasi- leiros, como “resultado” do nosso passado escravo e da tardia extinção da escravidão no país. No entanto, esse período de transição do trabalho es- cravo para o trabalho livre, com a acomodação preferencial de imigrantes à produção agrícola e industrial, foi fundamental para dar início ao perfil de desigualdade étnico/racial que exibimos no presente. A despeito des- sas práticas de discriminação e do sistema de preferências estabelecidas, muito pouco é mencionado e investigado sobre a decisão consciente do Estado, após a Abolição, de empreender uma política massiva de imigra- ção europeia em detrimento da alocação adequada da mão de obra recen- temente emancipada.6 É por este motivo que a crítica das organizações negras, ativistas contra o racismo e intelectuais negros insiste em apon- tar esse momento da história brasileira como sendo de crucial importân- cia para a compreensão do lugar subordinado dos afrodescendentes no mercado de trabalho. O ingresso massivo de imigrantes europeus não só se prestou a dar concretude aos ideais de embranquecimento da população brasileira como também impediu o pleno desenvolvimento e inserção da população afrodescendente – ex-escravos e libertos – às novas formas de relação entre trabalho e o capital. Em 1872, data de realização do primei-

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Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v. 12 n. 34 | p. 45-83 | set./dez. 2018 ro censo brasileiro, contávamos com 1.510.806 escravos, 477.504 (31,6%) foram declarados pardos e 1.033.302 (68,4%) pretos. Para uma população total de 9.930.478 pessoas, 3.787.289 (38,1%) se autodeclararam brancos, 1.954.452 (19,7%) pretos, e 3.801.782 (38,2%) pardos. Lembrando, que entre os autodeclarados pretos e pardos incluía-se a população escrava. Assim, 73,8% da população autodeclarada preta e parda já era livre da condição escrava. Finalmente, é importante registrar que a maioria da população era composta de pessoas pretas e pardas, 57% da população recenseada. É nesse contexto que as teorias raciais de superioridade, hierarquia racial e ideal de embranquecimento se afirmam e se conectam com a política de imigração preferencialmente europeia.

Do ponto de vista discursivo e prático, os incentivos públicos e privados à política de migração europeia de finais do século XIX e início do século XX tiveram também entre seus objetivos embranquecer o perfil da po- pulação brasileira. Entre 1884 e 1899, em um período de apenas quinze anos, adentram em portos brasileiros 1.541.442 imigrantes estrangeiros – ou 30.636 pessoas a mais que o número de escravos registrados em 1872. Analisando um período mais extenso, entre 1884 e 1933, o Brasil acolheu 3.963.599 imigrantes, a grande maioria, 83%, de origem europeia – 1.401.335 italianos, 1.145.737 portugueses, 587.114 espanhóis e 154.397 alemães (IBGE, 2018). É nesse contexto que as teorias raciais de superio- ridade, hierarquia racial e ideal de embranquecimento se afirmam e se conectam com a política de imigração preferencialmente europeia. Sobre a alteração do perfil étnico/racial nacional, o IBGE estima que a imigração estrangeira tenha contribuído de forma direta (os próprios imigrantes) e de forma indireta (seus descendentes), com 19% do aumento populacio- nal brasileiro entre 1840 e 1940.7

Se o processo de substituição da mão de obra escrava e estabelecimento do trabalho livre não explicam toda a desigualdade étnico/racial atual na conformação do mercado de trabalho, é inegável constatar que está di- retamente ligado a esse momento de transição, porque descreve fatores que mobilizaram e organizaram estruturas de discriminação e exclusão na organização das novas relações de trabalho que se seguiram após a Abolição. Em primeiro lugar, esse histórico elucida a atuação do Estado e das elites nacionais na definição de preferências no que viria a ser uma nova forma de organização da relação capital e trabalho. Segundo, ele

descreve a preferência e privilégio por um determinado grupo (imigran- tes) sobre outro (libertos e trabalhadores nacionais).

Finalmente, o histórico desse processo descreve o descarte de uma par- cela considerável da população brasileira, à época representada por ex- -escravos e libertos pretos e pardos. Em outras palavras, o Estado e as elites nacionais atuaram efetivamente para que as desigualdades étnico/ raciais no mercado de trabalho tivessem, em amplo sentido, as caracte- rísticas que têm hoje. Como salienta o economista Mário Theodoro:

No período que vai da Abolição da Escravatura até nos anos 1920, a ação do Estado no Brasil foi decisiva tanto em face do desenvolvimento geral da história econômica do país quanto, mais especificamente, para a his- tória da conformação de seu mercado de trabalho. [...] o mercado de tra- balho no Brasil, no sentido clássico do termo, que pressupõe a existência do trabalho livre, foi “criado” por intermédio da ação estatal pela abolição da escravidão, e foi moldado por uma política de imigração, favorecida por taxações e subvenções, em detrimento da mão de obra nacional. Este mercado de trabalho nasceu, assim, dentro de um ambiente de exclusão para com uma parte significativa da força de trabalho. Criando assim o trabalho livre, o Estado criou também as condições para que se consoli- dasse a existência de um excedente estrutural de trabalhadores, aqueles que serão o germe do que se chama hoje “setor informal” (THEODORO, 2005, p. 104-105).8

Portanto, faz sentido que a adoção de ações afirmativas no mercado de trabalho utilize como justificativa e argumento os acontecimentos e de- cisões desse período histórico do país em sua defesa, fundamentação e aplicação. A inserção fragilizada da população afrodescendente no mer- cado de trabalho, que constitui um dos problemas mais preocupantes no debate sobre os direitos dessa parcela da população brasileira, tem ori- gem e responsabilidades bem definidas. Desemprego, informalidade, bai- xos salários, perfil precário de empregabilidade, segregação ocupacional, discriminação no ingresso e permanência nos postos de trabalho fazem parte das mazelas impostas aos afrodescendentes – homens, mulheres, jovens. Esse perfil de vulnerabilidade e exclusão foi forjado a partir de relações de poder bem definidas e sobre as quais libertos e ex-escravos não puderam opinar e reagir de forma adequada: a república brasileira surge com forte acento oligárquico e altamente restritiva na extensão da franquia eleitoral.9 Na atualidade, cabe aos seus descendentes apresen- tar fatos do passado e lutar por alternativas que, relembrando decisões

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Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v. 12 n. 34 | p. 45-83 | set./dez. 2018 fartamente registradas do ponto de vista histórico, possam estabelecer um novo futuro.

No Brasil, a reivindicação do movimento negro para coleta e divulgação de dados desagregados de cor/raça tem sido fundamental à elaboração de estudos sobre discriminação e desigualdade étnico/racial em variadas áreas de conhecimento – relações de trabalho, educação, condições de moradia, entre outras. Há muito a avançar nesse terreno, o que inclui a obtenção de registros administrativos sob a direta responsabilidade de órgãos públicos tais como ministérios, secretarias, autarquias e funda- ções, entre outros. Informações desagregadas por cor/raça desses órgãos poderiam, por exemplo, avaliar melhor o desempenho de programas e políticas públicas no que diz respeito ao atendimento dos interesses e necessidades da população afrodescendente.10

Feita essa ressalva, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) tem produzido ao longo dos anos a melhor e mais ampla base de dados para análise de situações de desigualdade étnico/racial do país. O Cen- so, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e a Pesquisa Mensal de Emprego (PME) são as principais iniciativas dessa instituição pública, cujos dados permitem comparações mais sistemáticas sobre o perfil de desigualdade, inclusive de caráter longitudinal.

Essas bases de dados têm permitido tanto análises descritivas geralmen- te produzidas pelo próprio IBGE, nas quais a variável cor/raça é cruzada com dados de outras variáveis da pesquisa, e análises estatísticas mais complexas, elaboradas por pesquisadores que aplicam às bases de dados produzidos por essa instituição métodos mais sofisticados como regres- sões, medidas de decomposição de salários de Oaxaca-Blinder, e aplica- ção do coeficiente de Gini para análise da desigualdade a partir da renda domiciliar per capita, entre outros.

Como bem assinala Chadarevian, “nenhum indicador substitui uma aná- lise histórica, sociológica, demográfica, institucional e econômica das relações sociais; ele apenas as complementa” (CHADAREVIAN, 2011,

Indicadores da desigualdade: cenários de exclusão e discriminação

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