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Políticas de ação afirmativa e tentativas de inclusão no mercado de trabalho

No documento Revista Sinais Sociais / Sesc (páginas 62-70)

e municipal na garantia dos direitos humanos. No que diz respeito à questão racial, esse documento contou com uma sugestiva introdução do então presidente Fernando Henrique Cardoso, com o seguinte posi- cionamento:

Reconhecemos que o racismo ainda é um problema a ser enfrentado e que, nessa matéria, assim como em tudo que diz respeito à garantia de direitos humanos, é fundamental o engajamento de toda a sociedade brasileira, dos empresários e de todos aqueles que têm a possibilida- de de estimular a diversidade nos ambientes de trabalho, de promover políticas de promoção de igualdade e inclusão, procurando assegurar oportunidades mais equitativas aos que, historicamente, são vítimas de discriminação (BRASIL, 2002).

Essa análise, em última instância, sustenta a recomendação de que a União deveria adotar “e estimular a adoção, pelos estados e municípios, de medidas de caráter compensatório” que tivessem por objetivo “a eli- minação da discriminação racial e a promoção da igualdade de oportuni- dades”, como por exemplo: “ampliação do acesso dos afrodescendentes às universidades públicas, cursos profissionalizantes, áreas de tecnolo- gia de ponta e empregos públicos” e “apoiar ações da iniciativa privada no campo da discriminação positiva e da promoção da diversidade no ambiente de trabalho” (BRASIL, 2002, Art. 191, 194). Dessa perspectiva, existe uma clara orientação para que a administração pública se respon- sabilizasse por empreender medidas de promoção e inserção produtiva dos afrodescendentes, rompendo barreiras de acesso aos postos de tra- balho, ascensão e mobilidade funcional.13

Do ponto de vista da cultura institucional e de gestão do Estado brasi- leiro, essa recomendação não é trivial. Afinal, como vimos no início des- se artigo, no passado o Estado brasileiro operou exatamente em direção contrária, descartando, com efetiva medida administrativa, via Decreto no 528/1890, a inserção plena dos afrodescendentes nos setores mais vi- gorosos da economia da época, e depois permanecendo silente em re- lação aos efeitos perversos de suas políticas discriminatórias por quase um século.

Lançar luz sobre a inserção de afrodescendentes no mercado de trabalho, política e conceitualmente, força-nos a rever situações objetivas de pre- ferências e discriminações. Durante os anos 1970 e 1980, o movimento

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Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v. 12 n. 34 | p. 45-83 | set./dez. 2018 negro denunciou, reiteradamente, os “requisitos” de “boa aparência” para aceitação de afrodescendentes em postos de trabalho que, muitas vezes, eram exigidos como qualificações mínimas a candidatos. Na atualidade, ainda que essa “cultura de empregabilidade” permaneça como fratura exposta para uma larga parcela de afro-brasileiros, é inegável admitir o avanço formal desse debate quando o pertencimento étnico/racial passa a ser requisito, sem aspas, para a inserção desse segmento no mercado de trabalho. A Lei no 12.990/2014 nasce, assim, de uma ampla confluên- cia de fatos, argumentos e construções coletivas de negociação com o Estado, assumindo como premissa a responsabilidade direta do poder executivo de intervir no problema da desigualdade e da discriminação racial no mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, de forma indireta, dar exemplo à iniciativa privada de que é possível criar mecanismos e pro- cedimentos que garantam os princípios de igualdade de oportunidade e não discriminação nos ambientes e relações de trabalho.

A presente legislação é resultado de Projeto de Lei (PL 06738/2013) envia- do ao Congresso pelo poder executivo, em caráter de urgência, no segun- do semestre de 2014. Essa decisão foi anunciada na abertura da III Con- ferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (III Conapir), pela ex- -presidente Dilma Rousseff, diante de amplo conjunto de representantes de delegações estaduais, ministros, secretários estaduais e municipais, representações diplomáticas e de agências de cooperação internacional. Ou seja, um anúncio verdadeiramente público, em ambiente de repre- sentação convocado para discutir política pública, no qual foi destaca- do como justificativa para essa decisão o interesse e a necessidade de o Poder Executivo refletir em seu quadro de gestores a diversidade étnico/ racial presente na sociedade brasileira.14

Outro indício irrefutável de transparência da trajetória percorrida por essa proposta tem a ver com o fato de ter sido submetida ao Congres- so na forma de um Projeto de Lei, sugerindo desde o início a reserva de 20% das vagas nos processos de seleção de ingresso e sua aplicação aos cargos da administração direta e indireta. Assim, coube também ao Congresso debater e avaliar a proposta enviada e negociar internamente o texto final submetido à votação. No plenário, o PL nº 6738/2013 obteve votos favoráveis de 314 deputados/as, 36 foram contra e seis abstiveram- -se. No processo de negociação, vale mencionar ainda que a maioria dos

líderes partidários indicou voto favorável ao projeto.15 Enfim, relatar esse espectro de negociação, o voto favorável de grande maioria de deputa- dos/as e a participação de distintas esferas no Estado no estabelecimento dessa política de ação afirmativa específica é também sinalizar à gestão pública a responsabilidade que lhe cabe no cumprimento adequado da presente legislação.

Na administração pública existe um generalizado senso comum sobre a inexistência de discriminação; que o acesso através do concurso, alicer- çado na meritocracia e na transparência, é suficiente para evitar o per- fil de desigualdade racial presente no mercado de trabalho mais amplo. No entanto, os indicadores do funcionalismo público, especialmente no âmbito federal, não demonstram isso. Silva e Silva (2014), pesquisadores do IPEA, elaboraram a nota técnica que serviu de subsídio ao debate do PL nº 6738/2013. Usando os dados da PNAD 2012 como base, aos autores identificaram que, entre os trabalhadores no setor público, 53,2% perten- ciam aos quadros da administração municipal, 31,5% estadual e apenas 15,3% eram servidores públicos federais – com 11.406.597 pessoas empre- gadas nesse ramo de atividade. Entre os 1.743.259 servidores alocados na administração federal, 1.021.091 eram brancos (58,6%) e 695.788 (39,9%) afrodescendentes. Na administração estadual, entre 3.590.204 servidores, 1.593.157 (44,4%) eram afrodescendentes, e na administração municipal, com 6.073.134 servidores, os afrodescendentes eram 3.122.843 (51,4%). A despeito das proporções entre brancos e afrodescendentes não serem tão diferentes da populacional, Silva e Silva (2014) observam desigual- dade entre os ganhos salariais dos servidores das distintas esferas da administração pública. Segundo a PNAD 2012, a remuneração média dos ocupados no serviço público federal era de R$ 3.954,37, na adminis- tração estadual e municipal o rendimento salarial médio correspondia, respectivamente a 66,4% e 33,3% dos seus pares da administração fe- deral. Já nesse plano mais geral da comparação, podemos verificar que, para os afrodescendentes, ser maioria dos ocupados na administração municipal é também auferir os menores níveis de remuneração. Indo mais além, os autores identificam que o rendimento médio vis-à-vis os anos de escolaridade também refletem as desigualdades evidenciadas no mercado de trabalho. O rendimento médio mensal de uma mulher negra ocupada no setor público com escolaridade de 12 anos ou mais

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Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v. 12 n. 34 | p. 45-83 | set./dez. 2018 de estudo corresponde a 43,1% do rendimento obtido por um servidor público branco do sexo masculino.16

Nessas duas situações, de desigualdades salariais e distribuição da po- pulação ocupada no setor público, parece haver uma combinação de fa- tores concorrentes na desvantagem percebida para os afro-brasileiros, entre os quais desponta a questão da segregação ocupacional. Analisan- do dados disponíveis no Sistema Integrado de Administração de Recur- sos Humanos (SIAPE), do Ministério do Planejamento, Silva e Silva (2014) constataram também a reduzida participação de afrodescendentes em carreiras da administração pública com maior prestígio, valorização e ganhos salariais. E isso é evidente nos indicadores de ingresso de ser- vidores públicos no período 2007-2012, analisados por esses autores e selecionados no Quadro 1:17

* Inclui raça/cor branca, indígena e amarela. ** Classificação utilizada no SIAPE, diferente da adotada pelo IBGE. *** CVM (Comissão de Valores Imobiliários), SUSEP (Superintendência de Seguros Privados).

Fonte: SIAPE, dados relativos a agosto de 2012, citados por Silva e Silva (2014).

Os dados acima demonstram com grande transparência que, enquanto o ingresso de afro-brasileiros é extremamente reduzido nas carreiras de

QUADRO 1: Raça/cor dos servidores que ingressaram no serviço público federal por grupo/cargo, 2007 a 2012

Grupo/Cargo Cor branca e

outras (%)* Cor parda e negra (%) **

Diplomacia 94,1 5,9

Cargos da CVM/SUSEP – Superior *** 93,8 6,2

Carreira de Desenvolvimento Tecnológico – Superior 90,7 9,3

Auditoria da Receita Federal 87,7 12,3

Carreira de Oficial de Chancelaria 86,7 13,3

Carreira de Procurador da Fazenda Nacional 85,8 14,2

Advocacia Geral da União – Carreira na área Jurídica 85,0 15,0

Cargos das Agências Reguladoras – Superior 84,5 15,5

Carreira de Fiscal do Trabalho 83,4 16,6

Plano Geral de Cargos – Poder Executivo – Nível Intermediário 61,2 38,8

Carreiras de Suporte Técnico – Vários Órgãos – Intermediário 61,2 38,8

Carreira de Reforma e Desenho Agrário – INCRA 58,3 41,7

maior prestígio e remuneração, como na diplomacia e na auditoria da Receita Federal, essa participação e presença se expandem nas carreiras de nível intermediário. Aliás, a histórica ausência de afrodescendentes no corpo diplomático brasileiro motivou a criação, em 2002, do primeiro programa de ação afirmativa no âmbito da administração pública fede- ral – o Programa Bolsa-Prêmio de Vocação para a Diplomacia do Instituto Rio Branco (IRBr).18 Essa iniciativa pioneira consiste na concessão de um valor monetário (bolsa), no período de um ano, com objetivo de subsi- diar a preparação de candidatos ao concurso de ingresso na carreira di- plomática. Como descreve Oliveira (2013), até 2012, 19 bolsistas haviam atingido esse objetivo, isto é, uma média de 1,9 novos diplomatas negros/ as por ano. Considerando os dados apresentados no SIAFE, muito prova- velmente não teríamos formados 19 diplomatas afrodescendentes sem o incentivo do Programa. Contudo, é preciso também reconhecer que os re- sultados são pífios perante o nível de desigualdade racial nessa carreira e que a aplicação da nova legislação, seguramente, ampliaria o número atingido pelo programa de bolsas.19 Enfim, voltamos a ressaltar que a Lei nº 12.990/2014 é resultado de um longo e negociado processo. Indo além, é possível afirmar que essa é a primeira medida de efetiva abrangência, no plano federal, de intervir no mercado de trabalho em favor dos afro- -brasileiros. Mencionamos a ideia de efetiva abrangência pelos seguintes motivos:

• Os processos de seleção pública de ingresso, comumente, con- templam cargos de formação de nível médio e superior. O que na prática significa dizer que afro-brasileiros com formação de nível médio e técnico ampliam as suas chances de inserção no mercado de trabalho formal.

• Ao definir a provisão de cargos da administração pública di- reta e indireta, que inclui autarquias, fundações públicas, em- presas públicas e sociedades de economia mista controladas pela União, a legislação abre a oportunidade de ingresso para profissionais de diversas áreas de formação e habilidades – ad- ministradores, contadores, engenheiros, advogados, médicos, enfermeiros, geólogos, entre muitas outras categorias.

• Os processos de seleção pública têm caráter nacional e isso contribui para que afro-brasileiros de distintas regiões do país

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• A administração pública direta e indireta conta com planos de cargos e salários que permitem, efetivamente, a progres- são funcional e ganhos salariais. O que pode refletir, em mé- dio prazo, rendimentos mais significativos para afro-brasileiros que decidam fazer uso dessa nova legislação para ingresso no serviço público.

• A legislação exige que os gestores responsáveis pela condu- ção dos processos de seleção de ingresso criem procedimentos adequados e rastreáveis que comprovem a lisura dos certames tal como, até o presente, é exigido nesses casos.

Esse último ponto ressaltado, especialmente endereçado aos gestores das empresas que devem cumprir a Lei nº 12.990/2014, sublinha a ne- cessidade de introduzir procedimentos e medidas fiscalizadoras que assegurem a eliminação de situações de discriminação e desigualdade étnico/racial nos ambientes e relações de trabalho. Ou seja, as institui- ções responsáveis pela condução dos processos de seleção precisam se conectar a um dos principais argumentos de defesa das políticas de ação afirmativa destinadas ao acesso da população negra ao universo produ- tivo, que é, justamente, a inclusão de um segmento da população his- toricamente interditado no seu direito de acesso amplo ao mercado de trabalho. É preciso garantir que os profissionais diretamente envolvidos na condução dos processos de seleção e acolhimento dos novos servido- res sejam devidamente capacitados, buscando evitar que condutas res- valem para situações tipicamente identificadas como preconceituosas e discriminatórias.

Negligenciando esses pontos de atenção e cuidado, todo o processo corre o risco de ser malsucedido. Enfim, sem a apropriação de realidades histó- ricas, isto é, sem o reconhecimento institucional dos múltiplos processos que impediram e continuam a impedir a plena inserção e ascensão dos afro-brasileiros no mercado de trabalho, essas instituições não farão o necessário para assegurar a plena e adequada aplicação da nova legisla- ção. Nessa direção há muito a ser feito para garantir que as instituições apliquem a lei de forma adequada. Por exemplo, os dirigentes dos órgãos da administração pública federal, ao lançarem os editais de seleção de

ingresso, devem comunicar ao seu público interno que estão comprome- tidos com a implementação da nova legislação. As gerências de recursos humanos desses órgãos devem ser capacitadas a compreender o histó- rico de discriminação e desigualdade que afetam os afro-brasileiros no mercado de trabalho e assumir o compromisso de coordenar os certames tendo em vista a alteração desse histórico de interdição.

Os órgãos da administração pública federal, direta e indireta, devem criar estratégias de comunicação que informem ao seu público interno o compromisso institucional com a igualdade racial, não discriminação e igualdade de oportunidade. E isso deve acontecer independentemente da abertura dos editais de contratação de novos servidores. Os editais de seleção pública de ingresso devem informar que a nova legislação está relacionada também ao cumprimento do Estatuto de Igualdade Racial e outras convenções e tratados ratificados pelo Estado brasileiro junto à comunidade internacional. As áreas jurídicas dessas instituições devem ser estimuladas e orientadas a acompanhar, como de praxe é exigido, essa nova modalidade de ingresso. Os códigos de ética e guias de conduta dessas instituições devem tornar explícitos que a discriminação racial, em especial, é algo intolerável nos ambientes e relações de trabalho, e que os princípios de igualdade de oportunidade, não discriminação e res- peito à diversidade humana e cultural são valores que devem ser perse- guidos por todos seus servidores/as e unidades administrativas.

Em outras palavras, a aplicação da Lei nº 12.990/2014 deve acomodar uma perspectiva política/pedagógica que ultrapasse a querela de quem é suficientemente “negro” para ter “direito” ao que a lei determina como seu público beneficiário. Executar essa tarefa pedagógica exige debate transparente e negociações internas destinadas à consolidação do com- promisso institucional em relação à adequada aplicação da lei. Nesse processo cabe, também, questionar e informar ao seu público interno por que, ao longo de tantos anos e séculos, a população autodeclarada branca esteve tão ciosa em garantir os seus próprios critérios de inclu- são, criando, ao mesmo tempo, critérios que excluíam e/ou interditavam aos afrodescendentes o acesso a direitos fundamentais para a realiza- ção de sua cidadania. Enfim, cumprir a Lei no 12.990/2014 exige mudança no que se compreende, na administração pública e também fora dela, como gestão de pessoas e cultura organizacional, formatando práticas e

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Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v. 12 n. 34 | p. 45-83 | set./dez. 2018 procedimentos verdadeiramente inclusivos. A abertura de um processo seletivo para o ingresso de novos servidores, em qualquer instituição pública, é tarefa complexa que exige, em todos os casos, muito plane- jamento, não raro, entre dois e três anos de preparação. As sugestões mencionadas acima, e que dizem respeito à consolidação do compro- misso institucional de se implementar a nova legislação, precisam ser incorporadas a esse processo de preparação. É essa antecedência, plane- jamento e organização interna para o cumprimento da lei que permitirá o sucesso ou não de sua execução.

Dessa perspectiva, os procedimentos mencionados estão além da polêmica sobre quem são, ou não, os destinatários finais da legislação, e isso porque os processos de seleção de ingresso devem tomar essa aferição como uma entre muitas e não a última das etapas do certame. É esse conjunto de normas e procedimentos observáveis e rastreáveis que poderão, em última instância, isentar os processos seletivos de pro- blemas jurídicos e questionamentos sobre sua lisura, transparência e condução adequada. Essa é a experiência da Petrobras no seu processo de seleção pública de ingresso de novos empregados/as, utilizando a Lei nº 12.990/2014, que detalhamos a seguir.

Passamos aqui a descrever um caso exitoso na efetivação da Lei no 12.990/2014, ressaltando alguns aspectos paradigmáticos dessa experiên cia. O caso em questão é o da Petrobras, na realização de proces- so de seleção pública de ingresso realizado em 2014 – PSP-RH-2014.2.20 O caráter paradigmático da Petrobras tem a ver com algumas caracterís- ticas relacionadas ao número de candidatos inscritos, vagas oferecidas no certame, tipo de habilidades requeridas dos candidatos interessados e, finalmente, o processo de gestão realizado pela companhia com o objetivo de conduzir essa primeira experiência de forma bem-sucedida. Essa não é a primeira experiência da Petrobras no tratamento da ques- tão racial junto ao seu quadro de empregados. Em 2008, a companhia realizou o seu primeiro Censo de Diversidade na Petrobras, contando a partir dessa data com informações atualizadas do perfil étnico/racial de

A experiência da Petrobras na implementação

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