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Professor associado do Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal

No documento Revista Sinais Sociais / Sesc (páginas 157-164)

de São Carlos. Tem experiência na área de sociologia,

com ênfase em relações raciais, atuando principalmente

nos seguintes temas: relações raciais, educação, ação

afirmativa, cidadania, afro-brasileiros e diáspora africana.

Pesquisador do CNPq e membro do Comitê Científico

Internacional do volume IX da História Geral da África, da

Unesco.

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Resumo

Após várias décadas de luta do movimento social negro por direitos, foi reconhecida pelo Estado a existência de discriminação racial no país, bem como a ação afirmativa como uma política para corrigir as desigualdades causadas por tal discriminação. Nesse cenário, a Lei nº 12.711/2012 estabeleceu um conjunto de mudanças substan- tivas no acesso ao ensino superior público no Brasil. Compreender o contexto social que levou à aprovação dessa lei requer uma análise do processo de democratização do Estado brasileiro. Este trabalho concentra-se em três aspectos: (1) a mudança na política de estado relacionada à inclusão de negros, população nativa, e pessoas pobres no ensino superior; (2) o impacto dessas ações no debate acadêmico; (3) o papel do movimento social negro nesse processo. Metodologica- mente, o trabalho reúne a legislação que mudou o campo normativo em relação às questões étnicas e raciais após a Constituição de 1988 e dados oficiais sobre a expansão da participação de negros, índios e pobres na educação superior pública.

Palavras-chave: Ação afirmativa. Raça. Desigualdades. Ensino superior. Brasil.

Abstract

After several decades of struggle by the black social movement for rights, the state recognized the existence of racial discrimination in the country, as well as the affirmative action as a policy to correct the inequalities caused by such discrimination. In this scenario, the passage of Law 12.711 on affirmative action, in 2012, established a set of substantive changes in the access to public higher education in Brazil. Understanding the social context that led to the adoption of this law requires an analysis of the Brazilian process of democratization, this paper focuses on three aspects: 1) the change in state policy related to the inclusion of blacks, native population, and poor people in higher education; 2) the impact of these actions in the academic debate; 3) the role of the black social movement in this process. Methodologically, the work comprehend the legislation that changed the normative field in relation to ethnic and racial issues after the 1988 Constitution and official data on the expansion of the participation of blacks, Indians, and poor people in public higher education.

A albumina branca depura o mascavo nacional… Negros puros já não há; mes- tiços, por fraqueza somática, sensualidade, nervosidade, sensibilidade à tubercu- lose, ou desaparecem pela morte precoce, ou se cruzam, sempre com elementos mais brancos: a raça se aclara. Em duzentos anos, longe de se extinguirem no Brasil os descendentes do povo de Cabral, terá passado inteiramente o eclipse negro, desses quatro séculos de mestiçagem

(PEIXOTO, 1938, p. 43).

Conhecido como o país da democracia racial, o Brasil surpreendeu o mundo em meados dos anos 1990 quando o então presidente da Repú- blica, Fernando Henrique Cardoso, reconheceu oficialmente a existên- cia de racismo. O choque foi ainda maior quando o secretário nacional de Direitos Humanos, Paulo Sérgio Pinheiro, elaborou um documento proclamando que as ações afirmativas eram compatíveis com a le- gislação brasileira e que o Estado deveria estimular a implementação de ações positivas para promover a equidade social mesmo que elas implicassem tratamento individual desigual (REICHMANN, 1999, p. 22; HTUN, 2004, p. 67).

A mudança de percepção de uma nação que pensava a si mesma como uma democracia racial para uma nação que reconhece a prática de dis- criminação racial e de racismo, bem como a necessidade de medidas para correção das consequências dessas práticas deletérias, só pode ser entendida pela análise mais ampla dos processos de democratização do Estado brasileiro.

O presente texto analisa de forma breve e inicial alguns desses processos que de certo modo traduzem uma faceta das mudanças em curso no país. Darei especial atenção ao movimento negro, que ganha relevância pelo lugar que ocupa na mobilização dos afro-brasileiros contra as inu- meráveis formas de discriminação velada ou ostensiva e as desvanta- gens sociais e econômicas por elas produzidas. Examinaremos aqui, por um lado, a ação do movimento negro local insistindo durante décadas na existência de um racismo difuso no país que, a despeito da ampla mes- tiçagem, não tem permitido a mobilidade social de afro-brasileiros nos mesmos moldes daquela experimentada pela população euro-brasileira. Por outro lado, analisaremos a ação do Estado que, após a promulgação

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da Constituição de 1988, tem se orientado por reconhecer a existência de uma pluralidade de formas do ser brasileiro e, ao mesmo tempo, promo- vido uma reorientação nas políticas públicas que passaram a incorporar, de maneira tímida e não convergente, a ideia de diversidade cultural. Durante os anos 1980 foram produzidos vários trabalhos demográficos que corroboravam as denúncias do movimento em relação aos obstácu- los à mobilidade social da população negra, seja no mercado de traba- lho, na educação e mesmo no “mercado matrimonial”, com repercussões na vida de crianças, jovens e adultos. Os estudos de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva tratam de três temas centrais ao desenvolvimento econômico recente que permitem uma melhor compreensão do contex- to brasileiro, a saber:

(a) as rápidas mudanças na estrutura social ocorridas dentro dos limi- tes de um modelo de modernização conservadora, com todos os custos sociais que lhe são inerentes; (b) a reordenação dos perfis de estratifica- ção e os processos decorrentes de mobilidade social, que coexistem com fortes desigualdades distributivas2 e persistente pobreza;3 e (c) o papel

desempenhado pelas diferenciações raciais na alocação de posições na estrutura social (HASENBALG; VALLE SILVA, 1988, p. 9).

Em relação à diferenciação racial, Hasenbalg e Valle Silva realizam uma avaliação crítica das teorias que postulam a incompatibilidade entre ra- cismo e industrialização e explicam as desigualdades raciais do presente como um legado da escravidão. Eles demonstram que essas desigualda- des devem ser atribuídas “à discriminação racial e à segregação geográfi- ca dos grupos raciais, condicionada inicialmente pelo regime escravista e reforçada depois pela política oficial de promoção da imigração europeia para o sudeste do país” (HASENBALG; VALLE SILVA, 1988, p. 10). As duas principais conclusões desses estudos são as seguintes: (1) a superação das desigualdades raciais, com a consequente mobilidade ascensional dos negros, só se dará pela implementação de políticas de promoção di- ferencial que eliminem os mecanismos discriminatórios presentes no cotidiano nacional; (2) a experiência brasileira contradiz uma proposição básica da chamada “tese do industrialismo”, segundo a qual o cresci- mento industrial produz um aumento da fluidez social.

Tais conclusões foram incorporadas pelas várias organizações negras que passaram a introduzir dados empíricos nos discursos que já pro-

feriam sobre os impactos da discriminação racial e do racismo sobre os negros, em especial no mercado de trabalho e na educação. O período imediatamente anterior à promulgação da Constituição de 1988 foi ex- tremamente rico em termos da mobilização social de negros e indígenas, entre outros setores discriminados, cujo objetivo era assegurar direitos de forma explícita no texto constitucional. De fato, a Carta de 1988 de- fine o racismo como crime, afirma a necessidade de proteção das prá- ticas culturais dos afro-brasileiros e assegura a titulação das terras de quilombos (HTUN, 2004, p. 66). Além disso, a educação – enquanto valor que acompanha as lutas dos negros desde suas primeiras organizações fundadas após a abolição – ganha um lugar estratégico no discurso rei- vindicatório das organizações negras.

Na década de 1990, houve dois eventos marcantes. O primeiro foi a rea- lização da marcha Zumbi dos Palmares, em 20 de novembro de 1995, que forçou o então presidente da República Fernando Henrique Cardoso a reconhecer oficialmente a existência da discriminação racial e do ra- cismo, além de abrir o caminho para publicação do decreto que criou o Grupo de Trabalho Interministerial de Valorização da População Negra. O segundo foi apromulgação do I Programa Nacional de Direitos Huma- nos em 1996, que propunha políticas públicas específicas para negros, tais como as ações afirmativas com o objetivo de ampliar o acesso às universidades públicas e incentivar o setor privado na mesma direção (HTUN, 2004, p. 67).

A partir do final da década de 1990, ao longo do processo de construção de uma agenda antirracista para a Conferência da ONU contra o Racis- mo, ocorrida de 31 de agosto a 7 de setembro de 2001 em Durban, África do Sul, ficou evidente um diálogo entre o Movimento Negro e o Estado brasileiro, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Foram im- portantes atores desse processo as ONGs de mulheres negras em vias de profissionalização e o Grupo Interministerial para a Valorização da Po- pulação Negra (GTI-Negros), entre outros órgãos. Tal diálogo foi um fator preponderante para a construção de consensos políticos, calcados não mais no credo da harmonia racial (a “democracia racial”), mas no mul- ticulturalismo. Em primeiro lugar, o evento ocorrido em 2001 mobilizou um intenso processo de preparação levado a cabo tanto pelo Movimento Negro quanto pelo Estado brasileiro sob a forma de vários seminários

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que, ao longo dos anos 2000 e 2001, concorreram para colocar as questões do racismo e do antirracismo na agenda pública nacional. Em segundo lugar, tem-se a destacada participação da delegação brasileira na Con- ferência propriamente dita – já na Conferência Regional das Américas, preparatória para Durban, realizada em Santiago do Chile em 2000, a de- legação brasileira também tinha desempenhado papel importante, como veremos a seguir. Em terceiro lugar, as temáticas e propostas discutidas em Durban passaram a ter centralidade tanto nas estratégias de ação do Movimento Negro como na política antirracista brasileira de uma forma mais geral.

Também foi importante nesse percurso o Seminário Internacional Mul- ticulturalismo e Racismo: o Papel das Ações Afirmativas nos Estados Democráticos, ocorrido em 1996. O evento, que comparou a questão racial no Brasil e nos Estados Unidos, abriu espaço, do ponto de vista intragovernamental, para a construção da posição brasileira na Confe- rência de Durban.4

Todo o intenso debate observado no Brasil durante a primeira década do século XXI sobre racismo, antirracismo, desigualdades raciais, discrimi- nação, ações afirmativas (mais conhecidas pelo termo reducionista “co- tas”), multiculturalismo, tolerância, identidade étnica e racialização, en- tre outros temas, tem relação e/ou passa de alguma forma, por Durban. De acordo com Gilberto Vergne Saboia e Alexandre José Vidal Porto (2002, p. 22-26), entre os pontos mais importantes dos documentos de Durban estão as seguintes recomendações para o Brasil: (a) reconhecimento aos afrodescendentes dos direitos à cultura e identidade próprias, à partici- pação igualitária na vida econômica e social, ao uso e conservação dos recursos naturais de terras ocupadas ancestralmente (quilombos), à par- ticipação no desenvolvimento de sistemas e programas educacionais e à livre prática de religiões de matriz africana, além da necessidade de adoção de medidas especiais e ações positivas para as vítimas de racis- mo e para a necessidade de apropriada representação em instituições educacionais, partidos políticos, e no parlamento; (b) reconhecimento da necessidade de que políticas de desenvolvimento social baseadas em dados estatísticos confiáveis fossem estabelecidas com vistas a assegurar aos grupos vítimas de racismo e discriminação, até o já transcorrido ano de 2015, as metas de desenvolvimento humano fixadas pela Conferência

sobre Desenvolvimento Social de Copenhague (1995); (c) condenação do ressurgimento de movimentos e organizações neonazistas, neofascistas ou xenófobas; (d) por fim, a recomendação de leis e códigos de conduta para combater o uso da internet para a difusão de propaganda e ideias de cunho racista.

Outros pontos ainda merecem destaque: (1) a escravidão foi reconhecida, com parâmetros do tempo presente, como um crime contra a humani- dade; (2) às duzentas e trinta populações nativas de povos indígenas foi concedido o direito a aproximadamente 12% do território nacional, o que corresponde a mais de oitenta milhões de hectares; (3) foi admitida a necessidade de reparação das injustiças, passadas e presentes, por meio de políticas de ação afirmativa.5 O texto ainda reconhece que no proces- so nacional de preparação para a Conferência de Durban ocorreu uma coalizão entre afrodescendentes e povos indígenas; indica que o governo brasileiro apoiaria o treinamento de advogados, sociólogos e professores indígenas para a efetiva promoção de seus direitos e de sua identidade cultural; e ressalta a incompatibilidade entre estado de direito e racismo. Nesse contexto, povoado por inúmeras forças contraditórias, foi produ- zida a posição da Constituição Brasileira de 1988 no que toca às ques- tões étnico-raciais. De certo modo, as aspirações de parcela significa- tiva da população organizada possibilitaram a incorporação, por parte da Assembleia Constituinte, das demandas da sociedade civil. Assim, a posição brasileira na Conferência de Durban encontra-se na intersecção da intensa mobilização do movimento negro, especialmente das mulhe- res negras e das populações indígenas, em um contexto internacional/ transnacional favorável, com um governo nacional progressista, eleito democraticamente pelo seu povo. Os debates e embates que se estabele- ceram após a conferência, em especial em relação às ações afirmativas, em grande medida são o resultado das divergências entre grupos e indi- víduos que passaram a disputar junto à opinião pública o melhor cami- nho para superar nossas iniquidades sociais. As posições que vieram a público expressavam leituras distintas, como demonstram os argumen- tos utilizados pelos autores acerca do lugar da questão étnico-racial na contenção ou ampliação do aprofundamento da democracia na forma procedimental ou participativa.

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De acordo com João Feres Júnior (2011, 2013, 2015), os argumentos contrá- rios às ações afirmativas que precederam no debate público a aprovação da Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, foram de duas naturezas: des- critivos ou normativos. Segundo o autor, os primeiros são afirmações de fato que podem ser testadas pela apresentação de evidências empíricas, ou pela constatação de sua inexistência. Os segundos são argumentos morais que dizem respeito a como nossa vida coletiva e instituições – ou seja, nossas escolhas públicas – devem se dar, nomeando o que é bom e o que é ruim.

Após operar essa distinção Feres Júnior agrupou os argumentos, segun- do sua temática predominante, da seguinte maneira: argumentos de ordem sociológica e antropológica; argumentos de ordem econômica, ou que dizem respeito ao estudo de políticas públicas; e, finalmente, argumentos mais afeitos ao direito, teoria política e teoria moral. Assim, na primeira ordem de argumentos a incidência se dava sobre uma longa tradição de estudos acerca da formação social brasileira e da identidade nacional na sua relação com a chamada questão racial. Em contraste com outras sociedades multiétnicas e multirraciais, em especial os Estados Unidos da América e mais recentemente a África do Sul, o Brasil apareceu para o mundo propagandeando sua singularidade por supos- tamente tratar diferenças raciais de forma harmônica, constituindo as- sim um arranjo social moderno e original. Uma vez adotada essa ideia, surge o paradoxo: por que uma democracia racial necessitaria imple- mentar ações afirmativas?

Uma resposta possível se encontra na visão das elites sociais e acadêmi- cas paulistas as quais imaginavam, e queriam construir, um país com ca- racterísticas europeias. Como expressou Paulo Duarte, um representante da elite paulista, no jornal O Estado de S. Paulo em 16/04/1947:

Hoje, alguns romancistas que passaram a girar em torno da sociologia do sr. Gilberto Freyre, agradável pela leveza, muitas vezes real, mas em muitos pontos colorida de fantasia, pretendem impor um tipo brasileiro negro ou mulato como o único legítimo tipo brasileiro (DUARTE, 1947, p. 5 apud GUIMARÃES, 1999, p. 75-95).

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